De forma a assinalar o cinquentenário da nossa instituição, o Expresso irá publicar mensalmente um artigo redigido por investigadores e docentes do Iscte.
Ricardo Paes Mamede
Economista, diretor Iscte-Sintra – Escola de Tecnologias Digitais, Economia e Sociedade
Expresso, 09.12.2022
As tecnologias digitais dão-nos acesso a cada vez mais dados e informação. Grande parte desses dados somos nós que os fornecemos. O uso que deles se faz merece mais atenção do que lhe damos.
Oferecemos em permanência informação sobre nós próprios: do que gostamos, com quem interagimos, onde estamos, as nossas expressões faciais, os nossos movimentos corporais, os nossos dados biométricos, e muito mais. Toda esta informação é recolhida, comprada e vendida por empresas especializadas, e cruzada com outras fontes de informação sobre nós. Depois é tratada com métodos analíticos, com o objetivo de conhecer os nossos hábitos, os nossos valores, as nossas preferências, o nosso estado de saúde, o estado das nossas finanças, os nossos desejos e medos. O objetivo, quase sempre, é antecipar os nossos comportamentos e influenciar as nossas decisões.
A maioria das pessoas não parece muito preocupada com a perda de privacidade. Consciente ou inconscientemente, aceitamos expor aspetos da nossa vida e da nossa intimidade que no passado recente seriam impensáveis. Em parte, porque nos é cómodo: valorizamos os serviços a que acedemos, muitas vezes de forma gratuita, em troca de informações sobre nós próprios. Em parte, porque confiamos, ou queremos confiar, no uso que fará dessa informação quem a ela tem acesso. Em parte, também, porque só percebemos o valor da privacidade quando a falta dela é usada contra nós. E porque ainda não sabemos bem como isto altera a forma de vivermos em sociedade.
Uma face visível da transformação em curso é a relação de dependência que estabelecemos com as tecnologias digitais. Essa dependência não resulta de uma propensão natural para passarmos horas a fio a olhar para um retângulo e a deslizar os dedos numa superfície suave, para ver imagens, ouvir sons e deixar likes e emojis de forma compulsiva no ciberespaço. O negócio das plataformas digitais depende do tempo que gastamos nelas — e elas usam tudo o que sabem sobre nós para nos levar a prolongar esse tempo.
Não são só aqueles que vivem da publicidade que nos manipulam ou podem manipular. A denúncia de Edward Snowden sobre a vigilância de milhões de cidadãos pela Agência Nacional de Segurança dos EUA, o sistema de créditos sociais na China (onde cada cidadão ganha ou perde direitos por aquilo que faz em público ou em privado) ou o caso Cambridge Analyitica (em que informações detalhadas sobre os cidadãos foram utilizadas para influenciar as intenções de voto que conduziram ao ‘Brexit’ ou à vitória de Trump) servem para nos lembrar que a vida pós-privacidade se estende a esferas cada vez menos inócuas das nossas sociedades.
As vantagens potenciais das tecnologias digitais são múltiplas, sem dúvida. Os seus riscos também e incluem o isolamento social, comportamentos aditivos, reprodução de discriminações várias, o aumento das desigualdades, a concentração do poder, a manipulação da opinião pública ou o aumento da polarização social. Perder a privacidade não é apenas expor-nos para lá do razoável. É transformar o nosso modo de vida para lá do que imaginamos. Falta-nos discutir se é isso mesmo que queremos — e o que podemos fazer para o evitar.
Luís Capucha
Docente e Investigador Iscte
Expresso, 28.10.2022
Era o Iscte um recém-nascido a abrir caminho em diversas áreas da ciência e da educação superior em Portugal, quando o país renasceu. Em 1972 o Iscte deu um sinal precursor do que estava para vir. E o que veio foi a democracia e a liberdade, e com elas a paz e o desejo de progresso e bem-estar. Do desejo à ação foi um pequeno passo e com a revolução vieram também as primeiras políticas sociais, ainda tímidas, mas suficientemente fortes para lançar as raízes do Estado social.
Sob o impulso da preparação da adesão à CEE, ocorrida em 1986, criaram-se (nalguns casos aproveitando iniciativas políticas anteriores) as estruturas institucionais e normativas das principais políticas sociais nas áreas da saúde, da proteção e segurança social e da educação. Nos anos seguintes os sistemas cresceram e tornaram-se mais efetivos. E, uma vez mais com o estímulo da participação em dinâmicas europeias, diversificaram-se e diferenciaram-se depois, já perto do final do século passado, inovando quer nas lógicas de ação (nasceram ou popularizaram-se então conceitos como os de políticas sociais ativas, participação, parcerias, etc.), quer nas problemáticas e nos públicos visados.
Ao longo desses 50 anos de profunda mudança, houve sempre vários professores e investigadores do Iscte que se destacaram na ação política em todas estas áreas. Desde os que se bateram pela democracia, pelo desenvolvimento, pela modernização da economia e da sociedade antes do 25 de Abril, até aos muitos que desempenharam e desempenham cargos de grande responsabilidade no Governo, nas empresas, na Administração Pública e na sociedade.
Será fácil encontrar domínios em que o país caminhou mais lentamente e problemas que, entretanto, emergiram. A baixa remuneração do trabalho e a precariedade (do emprego e não só) são dois deles. Podemos também referir a habitação, a justiça e a violência doméstica, entre alguns outros problemas que persistem. Podemos e devemos, ainda, estar insatisfeitos pela pausa que a economia portuguesa tem conhecido no novo século em termos de convergência e consequente capacidade para sustentar novas e melhores políticas salariais, sociais, culturais, ambientais. Entretanto, as alterações climáticas, as ameaças à paz e à democracia, a revolução científica e a revolução digital têm de ser também enfrentadas. E isso requer conhecimento, capacidade crítica, inovação e novas competências.
É por isso com grande expectativa que vemos a comunidade do Iscte e os seus novos protagonistas empenhados e mobilizados para continuarem a dar um contributo para a resolução desses velhos e novos problemas. Sempre usando uma fórmula que distingue a instituição: a combinação do rigor científico no estudo das questões que a sociedade faz à comunidade científica, com a valorização do esforço para transferir conhecimento e qualificar os estudantes. Num ambiente de culto da liberdade, da pluralidade, da solidariedade, da tolerância, da responsabilidade e da abertura à sociedade e aos seus problemas. Valores e atitudes que fazem parte do ADN do Iscte — Instituto Universitário de Lisboa e que nos continuarão a guiar no futuro.
Alexandra Paio
Docente e Investigadora Iscte
Expresso, 07.10.2022
As mudanças tecnológicas, através da utilização de ferramentas e processos computacionais, têm influenciado e alterado o desenho de soluções arquitetónicas e urbanas pelos arquitetos. Desde os anos 60 do século passado, quando foram dados os primeiros passos nas tecnologias da informação, os meios digitais têm sido incorporados na prática arquitetónica, lançando novos modos de dialogar com a sociedade e indústria da construção.
A revolução industrial 4.0 exige a automatização e otimização através de sistemas de aprendizagem automática, aliados à robótica e impressão 3D para lidar e criar soluções inovadoras para os problemas globais complexos que planeta enfrenta. Em simultâneo, a sociedade 5.0 exige uma visão centrada no ser humano que equilibre o avanço tecnológico com a resolução de problemas sociais de inclusão e justiça social.
Neste contexto, as práticas de inovação digital emergem como uma resposta para atingir os objetivos de transição digital sustentável no sector da Arquitetura, Engenharia e Construção (AEC). A Arquitetura começou a sua transformação, primeiro alavancando novas técnicas de construção e elaboração de formas espaciais arquitetónicas experimentais, depois desenvolvendo tecnologias ubíquas e algoritmos generativos e, hoje em dia, introduzindo processos avançados de computação de grande quantidade de dados, em tempo real, para a medição, quantificação e simulação.
Porém, em Portugal, a Praxis da Arquitetura, os seus métodos, tradições e saber fazer estão, ainda, no centro de debates apaixonados sobre o ser ou não ser digital. Esta visão dualista continua a dificultar uma contaminação transversal frutuosa nos vários territórios de atuação da arquitetura.
A relevância disciplinar não pode deixar de abraçar um conjunto de competências indispensáveis à investigação e desenvolvimento de novos processos e produtos, através da computação, da sensorização, da simulação imersiva e da inteligência artificial. Não se trata de uma rutura, mas uma continuidade histórica da evolução tecnológica associada às ferramentas disponíveis em cada época. Desde sempre, tratados e manifestos de Arquitetura discorreram sobre avanços tecnológicos baseados em inovação e experimentação, respondendo aos respetivos desafios sociais, económicos, políticos, culturais e estéticos.
As dinâmicas de inovação interdisciplinar, que caracterizam o Iscte, permitem que a Arquitetura represente, no contexto nacional, um papel central na inovação e liderança no sector AEC. A componente laboratorial assume um papel estratégico na experimentação e validação de resultados, nos três laboratórios: fabricação digital – Vitruvius FABLAB; Mixed Reality Lab e IoTLab.
A aposta do Iscte em novos mestrados profissionalizantes de um ano, é mais uma resposta às novas exigências do mercado de trabalho e urgente capacitação de profissionais. Os protocolos de colaboração com os municípios, gabinetes de arquitetura e indústria têm permitido a participação de adultos em programas de atualização e reconversão de competências. O Iscte contribui para a formação de arquitetos aptos a enfrentar o futuro digital.
José Crespo de Carvalho
Docente e presidente da Iscte Executive Education
Expresso, 12.08.2022
Três exemplos contemporâneos são emblemáticos ao ilustrarem a importância da logística e gestão de operações no mundo que nos rodeia. Porém, se nada mais pudesse ser dito, o processo de vacinação pelo qual temos passado, o desenvolvimento das entregas de última milha e a disrupção global das cadeias de abastecimento são apenas exemplos fortíssimos que demonstram a sua criticidade.
Temas clássicos como os de filas de espera, de capacidade instalada e utilizada, de planeamento, de marcação ou reserva de um slot (lugar) foram e são tão, mas tão críticos, que ninguém ousa contrariar a importância da logística e gestão de operações. Repare-se que o vacinando é marcado, comparece, entra em fila de espera, apresenta os seus dados num local de receção, espera de novo, sempre tratado por uma lógica first in, first out, é inoculado, é passado a uma fase de recobro, nova espera, e depois sai. O processo, porque a grande maioria da população portuguesa passou por ele, é auto-explicativo. E não é um processo de saúde a não ser quando uma vacina entra no braço de alguém. Tudo o resto é logística e operações com cadeia de frio.
A última milha, englobando entregas em casa dos clientes, tem sofrido um desenvolvimento colossal. E basta exemplificar com restauração pois nem precisamos de ir mais longe, com todos os consumíveis, e não só, que podemos ter em casa fruto do e-commerce. As plataformas que operam com restaurantes, com clientes finais e com estafetas deverão ser entendidas como trabalhando com sistemas logísticos de picking (recolha), transporte e entrega. Absolutamente essenciais sob o ponto de vista da logística e da gestão de operações, incluindo previsões, planeamento, routing, entregas e receções efetivas. Prevendo as quantidades a serem procuradas, planeando o sortido e as capacidades instaladas em cozinha (e temos cada vez mais dark kitchens a entregar, i.e., cozinhas que não têm sala de restaurante mas só trabalham para fora, para cliente final ou para outras cozinhas – para simplificar).
Finalmente, o exemplo da disrupção das cadeias de abastecimento a que temos vindo a assistir. Portos de mar parados, fábricas que interrompem produção, ausência de força de trabalho, contentores vazios mal posicionados em termos globais e, no geral, ausência de oferta ou disrupção da oferta face aos níveis de procura. Este fenómeno tem interrompido cadeias de abastecimento, mostrado escassez em variadíssimos produtos que não são produzidos como não chegam aos mercados de destino e, concomitantemente, fazem aumentar preços. Os mercados ficam nervosos e os reflexos impactam nas várias bolsas mundiais, criando volatilidade. Tensões geopolíticas e outras ameaças de mercados renitentes ou fechados impactam essas mesmas cadeias. Questões de saúde, trazidas pela pandemia, impactam igualmente em todos estes exemplos.
Estes e outros temas têm merecido um aprofundamento de anos por parte do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa ao longo destes 50 anos do seu desenvolvimento. Primeiro com a gestão de operações mais clássica, depois, com todos os temas logísticos e de gestão da cadeia de abastecimento.
(*) Peter Drucker
Sandra Marques Pereira
Investigadora do Iscte
Expresso, 05.08.2022
A criação da Secretaria de Estado da Habitação em 2017 é indissociável da assunção política do problema da habitação acessível: habitação para os segmentos com rendimentos intermédios, entre nós um eufemismo. Na Área Metropolitana de Lisboa há 6 concelhos onde só os 20% de agregados com rendimentos mais elevados conseguiriam arrendar uma casa de 80m2, no concelho onde vivem, com uma taxa de esforço inferior ou igual a 35%: Almada, Amadora, Cascais, Lisboa, Odivelas e Oeiras (LxHabidata).
Em 2018 a Nova Geração de Políticas de Habitação, consciente do alastramento social do problema, traz uma ambição renovada às políticas de habitação: alargar os seus públicos, para além dos mais carenciados, às classes médias - uma política generalista e já não residual. Em 2019, ainda antes das legislativas, a habitação sobe a ministério.
Estes três marcos ilustram a vontade do governo nacional recuperar o protagonismo perdido a partir dos anos 1980 com a extinção do Fundo de Fomento da Habitação. Mas agora nesse modo generalista.
Depois de algumas medidas lançadas pelo Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana/IHRU que, embora relevantes, ficaram aquém das expectativas, o PRR trouxe financiamento para uma política de habitação acessível com alguma expressão: 774,8 M€, em empréstimo, destinado a 6800 casas, um objectivo já comprometido pela subida dos preços da construção. Desses 774,8 M€, o Estado central fica com quase 80% para promoção direta de 5210 casas pelo IHRU. Acresce que a promoção de habitação acessível pelo IHRU é territorialmente desigual: é que as casas a construir por este Instituto sê-lo-ão nos seus terrenos, pelo que os concelhos que os concentram serão beneficiados. Dos quase 2000 alojamentos que o IHRU já submeteu a concurso para projetos de arquitetura, a esmagadora maioria fica em Almada e Setúbal.
Situação diferente é a do financiamento do PRR destinado à habitação dos mais carenciados, concentrado no Programa 1º Direito a executar sobretudo pelas autarquias. Esta partição do investimento do PRR para habitação sugere uma dualização de responsabilidades: o Estado central concentra os recursos para a execução das políticas de habitação para as classes médias e as autarquias os dos grupos mais vulneráveis.
O novo protagonismo que o governo reivindica na habitação acessível levanta desde logo a questão da articulação entre as políticas nacionais e as municipais, tão mais complexa quanto a diversidade geográfica de problemas e a sua concentração nas Áreas Metropolitanas: é aqui que se concentram as maiores desigualdades no acesso à habitação, não apenas entre os mais ricos e os mais pobres, mas entre os mais ricos e os restantes, as ditas classes médias a quem se destina a habitação acessível. Mas há outras questões: desde a capacidade de gestão por parte do IHRU dos seus novos milhares de alojamentos ao desenvolvimento de outras medidas destinadas a esta política generalista. E se nesta matéria a regulação é importante, é mais complexa do que parece: pelos efeitos colaterais de certas medidas (ex. congelamento das rendas), pela extrema dependência económica do investimento imobiliário e do turismo ou porque a internacionalização do mercado de habitação catapulta as políticas do sector, em especial a regulação, para o nível europeu.
Jorge Costa e Sérgio Matos
Investigadores Iscte
Expresso, 01.07.2022
O baixo custo, adaptabilidade e durabilidade extraordinárias do plástico tornaram-no numa espécie de material perfeito, tendo a sua produção, especialmente a destinada a utilização única, crescido exponencialmente desde os anos 50 do século XX.
No entanto, sendo uma das suas forças, a durabilidade tem-se vindo a revelar igualmente uma das suas principais fraquezas, conduzindo a que uma parte considerável do planeta esteja atualmente contaminada com estes materiais de longa duração.
Mais recentemente – como ainda agora na Conferência dos Oceanos, que se realizou em Lisboa –, temos vindo a ser alertados para a contaminação das águas marinhas com plásticos. Pior, com microplásticos.
O plástico tornou-se a maior fonte da poluição marinha (60 a 80% a nível mundial). A Organização Marítima Internacional estima mesmo que, em 2050, a quantidade de plástico nos oceanos suplantará a de peixe.
Os blocos de maior dimensão, chamados de macroplásticos, são um perigo para a vida marinha, quando os peixes e outros animais ficam neles enredados ou os comem. Mas são os pedaços de dimensão inferior a 5 milímetros, os microplásticos, resultantes da fragmentação dos maiores, que causam maior preocupação. A sua ingestão pelos peixes tem efeitos nocivos nos animais, mas igualmente nos seres humanos, através da alimentação. O grande desafio para a Humanidade é a deteção destes materiais, estimando-se que cerca de 99% dos plásticos que deveriam estar a flutuar no mar estão simplesmente desaparecidos.
A deteção de lixo marinho é efetuada atualmente a partir da costa por navios, aviões, veículos aéreos não tripulados, ou por um número limitado de satélites. Com exceção dos últimos, a cobertura geográfica destas plataformas é muito limitada. Uma monitorização global do lixo marinho à deriva na superfície do oceano seria extremamente útil para melhor compreender os mecanismos de transporte e de degradação do plástico e, assim, inferir dados relevantes sobre a poluição no fundo dos oceanos. No entanto, ainda não existe um sistema global com estas características, uma vez que as missões de satélite existentes não foram especificamente projetadas para deteção e classificação de lixo marinho. A maior parte da investigação atual centra-se na deteção ótica por satélite, no espectro visível e infravermelho. Contudo, estas técnicas são dificultadas pelo mau tempo e condições de luminosidade, impedindo a sua leitura contínua.
A alternativa mais eficaz poderá passar por equipar satélites com equipamentos de micro-ondas, relativamente imunes a deficiências atmosféricas e com capacidade de deteção e classificação bem superiores aos instrumentos óticos. É nessa frente que trabalham os investigadores do Iscte que integram uma equipa do Instituto de Telecomunicações (IT), num projeto de investigação, financiado pela Agência Espacial Europeia (ESA), que visa encontrar as melhores técnicas de aplicação de micro-ondas a localização lixo marinho.
Catarina Roseta Palma
docente e diretora de Sustentabilidade do Iscte
Expresso, 27.05.2022
Foi em junho de 1972, em Estocolmo, que a ONU realizou a primeira conferência dedicada ao ambiente. Eram já bem claros os sinais de que a pressão humana sobre os recursos naturais estava a causar impactos negativos importantes. Nessa conferência foi criado o Dia Mundial do Ambiente (5 de junho), nasceu o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e foram construídas as bases para a ação coletiva a nível da proteção da natureza. Cinco décadas passadas, a pressão aumentou e temos agora consciência de que vivemos três crises globais em simultâneo: a crise climática, com a acumulação continuada de gases com efeito de estufa, de origem antropogénica, na atmosfera; a crise da biodiversidade, com a redução de habitats e a aceleração da taxa de extinção de espécies; e ainda a crise da poluição, que inclui os desequilíbrios bioquímicos dos ciclos do azoto e do fósforo e também os contaminantes emergentes cujos impactos nem estão devidamente estudados. Parece que ainda nem todos perceberam que o planeta Terra, a nossa casa comum, tem limites...
A título de exemplo, refira-se que a nível mundial, as atividades humanas continuam extremamente dependentes dos combustíveis fósseis, que segundo dados da International Energy Agency asseguravam 87% da produção de energia primária em 1973 e ainda 81% em 2019...dados especialmente aflitivos se levarmos em consideração que a quantidade total de energia produzida quase triplicou. Quanto à biodiversidade, nenhum dos objetivos que as Nações Unidas tinham estabelecido para 2020 foi inteiramente alcançado. Sucedem-se as notícias sobre colapso de ecossistemas e desaparecimento de espécies. De que estamos à espera? Seremos capazes de fazer diferente nos próximos anos?
Os problemas ambientais globais afetam todos, mas também requerem o esforço de todos. Não vale dizer que o meu país, a minha empresa, a minha instituição ou a minha família não é responsável pelos desastres e que os outros é que terão de mudar. Que agora não é a melhor altura porque estamos numa pandemia, porque há uma guerra. A urgência da sustentabilidade é real e diz respeito a cada um e cada uma. Ninguém pode pôr-se de fora.
Foi também há cinquenta anos que o Iscte foi fundado, com o desígnio de contribuir para o desenvolvimento económico e social do país. Muito trabalho se tem feito para esse fim, incluindo mais recentemente a componente ambiental. O Iscte criou há mais de uma década o mestrado multidisciplinar em Estudos do Ambiente e Sustentabilidade. Implementámos também um programa de sustentabilidade que permitiu, em 2018, o reconhecimento como a primeira instituição de ensino superior portuguesa a obter certificação ambiental com a norma ISO14001. É suficiente? Claro que não. Temos de continuar a trabalhar, com toda a comunidade, para reduzir os nossos impactes negativos e potenciar os positivos, fazendo parte das soluções e não só dos problemas.
É urgente mudar a forma de pensar na sociedade humana, como algo distinto da natureza, pois só existimos no contexto da vida que nos rodeia. Cada planta, cada fungo, cada inseto, enfim, cada ser vivo, merece a nossa atenção e respeito. Os processos naturais são incrivelmente complexos e devem ser protegidos e regenerados. Se não percebermos isto, não iremos prosperar nos próximos 50 anos.
Luísa Pedroso de Lima
Presidente do Conselho Científico do Iscte
Expresso, 29.04.2022
Dizem que é um provérbio africano: sozinhos vamos mais rápido, mas juntos vamos mais longe. Não sei se o é. Todavia, o seu teor espelha muitos dos resultados alcançados na investigação na minha área de estudo, a Psicologia Social. As soluções colaborativas e que se constroem a partir da diversidade são as mais estáveis e consensuais. É verdade no que se refere à atividade dos grupos humanos e, na minha ótica, também o é no que respeita ao desenvolvimento da ciência. Os problemas com que nos deparamos hoje são demasiadamente complexos para serem abordados a partir de uma única perspetiva científica e os grandes progressos a que temos assistido em áreas como as da saúde - para me limitar a um caso específico – são produto da colaboração entre disciplinas. No caso da dor crónica, por exemplo, o avanço no conhecimento requer o trabalho conjunto não só de especialistas em ciências médicas, mas também em tecnologias de imagem, eletrofisiologia celular, neuro-química, genética, da psicologia, da sociologia e dos estudos culturais.
Foi por acreditar nas potencialidades da interdisciplinaridade que me empenhei, no âmbito do Conselho Científico do Iscte, na construção de um conjunto de estruturas dedicadas ao desenvolvimento de investigação interdisciplinar. Estas constituem espaços de partilha onde os investigadores, docentes e estudantes de doutoramento se podem encontrar para trabalhar nos mesmos temas, combinando os conhecimentos de diversas disciplinas para procurar atingir resultados inovadores na formação, na intervenção e, claro, na investigação.
O primeiro destes espaços, dedicado à Saúde (o Iscte-Saúde), torna possível criar quadros de diálogo e de aplicação neste âmbito, a partir da nossa diversidade multidisciplinar. O caso da saúde digital é exatamente uma das áreas em que uma perspetiva societal, ligando as ciências da vida, as ciências sociais e as ciências tecnológicas, pode contribuir não só para o conhecimento científico, como para o desenvolvimento económico. O outro espaço interdisciplinar criado foi o SocioDigital Lab for Public Policies, Laboratório Associado apoiado pela FCT. Neste, as diversas unidades de investigação do Iscte articularam-se para produzir investigação aplicada que, através da conjugação entre os contributos da inteligência artificial e os das ciências sociais, venha permitir o desenvolvimento de políticas públicas baseadas na evidência científica.
Finalmente, decidimos construir o Centro de Valorização e Transferência de Tecnologia (CVTT, Iscte Conhecimento e Inovação), um edifício que materializa essa perspetiva de encontro e colaboração entre disciplinas e olhares diferentes. Trata-se de um lugar inovador destinado ao acolhimento de todas as unidades de investigação, laboratórios, observatórios e cursos de doutoramento do Iscte. Foi concebido de raiz para possibilitar e facilitar o diálogo, não só entre disciplinas diferentes, mas também entre o universo académico e científico e a sociedade. Virá permitir a colaboração e a cocriação de projetos que envolvam as tecnologias digitais e as ciências comportamentais e sociais e, ao mesmo tempo, estará aberto aos atores sociais, na resposta aos desafios colocados pelas sociedades entre os quais os que se colocam à cidade em que estamos inseridos, Lisboa, e à sua área metropolitana. Representa um salto qualitativo enorme, só possível por acreditarmos que juntos iremos mais longe.
Luís Nunes
docente e investigador do Iscte
Expresso, 28.03.2022
A aplicação de Inteligência Artificial (IA) na melhoria da tomada de decisões na Administração e nas Políticas Públicas é um tema de crescente importância. Ao contrário da faceta da IA que é muitas vezes discutida (a possibilidade de criação de uma inteligência de nível humano), muitas das ferramentas associadas a esta área têm aplicações práticas e úteis no imediato: a capacidade de melhorar o aconselhamento de formação a candidatos a emprego, a possibilidade de triagem semiautomática de reclamações, a análise de risco de projetos que usam fundos públicos, entre muitas outras.
O Centro de Competências de Inteligência Artificial para a Administração Pública (IA>AP), que o Iscte está a desenvolver, tem como objetivos: a sensibilização da Administração Pública (AP) para a utilização de ferramentas de IA; a prática de utilização de casos reais da AP em sala de aula e nas dissertações de mestrado na área de Ciências e Tecnologias da Informação; e o prestar contas, por parte da academia, da utilização dos dados e das descobertas feitas às entidades que connosco colaboram. Como tal, este centro funciona como um laboratório vivo para a AP, para suporte à descoberta e teste de modelos de inovação aplicáveis em vários domínios de ação com impacto na eficiência, eficácia e qualidade dos serviços públicos.
A inovação pela tecnologia tem custos de infraestrutura, de exploração e compreensão, de processos de recolha, tratamento e utilização de dados, que nem sempre é passível de suportar por si só na AP. A academia pode ajudar a ultrapassar essa barreira inicial, podendo explorar múltiplas abordagens aos conjuntos de dados disponibilizados e encontrar diferentes modos de os valorizar. Os processos devem ser sistematicamente documentados e os resultados apresentados à AP para uma eventual posterior adoção, apoiando os processos de prestação de serviços públicos.
Muitas instituições perceberam as vantagens deste tipo de cooperação e projetos, havendo já, por todo o país, exemplos pontuais de cooperações entre a AP e a academia. Alguns destes são por iniciativa da AP, como é o caso inspirador da utilização dos dados da Câmara Municipal de Lisboa (CML) para desafios, que, há vários anos, são abordados por estudantes universitários.
Os estudantes do Iscte estão a ser formados para enfrentar os mesmos desafios digitais levantados pela necessidade de valorizar a informação que a AP tem na sua posse. A sua preparação inclui a dimensão ética e responsável para que a transformação desta informação em conhecimento seja útil para apoiar os decisores, mas também que seja justa, equitativa e transparente. Para a prossecução destes objetivos, a utilização de dados e problemas reais é da maior importância. A educação de uma geração formada para saber tirar partido destas tecnologias e, simultaneamente, sensibilizada para os desafios de gerir e administrar o património público para um bem comum e para o respeito pelas entidades públicas e por todos os cidadãos, é um passo no caminho certo de um futuro melhor e mais sustentável.
Tiago Fernandes
Departamento de Ciência Política e Políticas Públicas
Expresso, 25.02.2022
A democracia portuguesa atravessou três grandes fases. Entre 1974 e 1986, estabeleceram-se as instituições democráticas que ainda hoje regulam a vida política. Em 1986, a entrada nas comunidades europeias reforça o consenso entre PS e PSD sobre o modelo de economia e Estado social, alternando estes dois partidos no governo e excluindo a esquerda radical. Este período termina, em 2010-11, quando, sob o impacto da grande recessão, é formada uma aliança neoliberal entre PSD e CDS, rompendo com as tradições social-democrata e democrata-cristã da direita. E a esquerda forma, pela primeira vez, uma aliança explícita, iniciada ainda durante o ciclo de protesto anti-austeridade de 2011-13, em que movimentos sociais, sindicatos, PCP, BE e uma parte do PS lançam as bases de um bloco alternativo, possibilitando a governação minoritária do PS em 2015.
A maioria absoluta do PS, em 2022, é o último epísódio desta viragem à esquerda, o que é surpreendente, dada a decadência dos partidos socialistas por toda a Europa. Mas é resultado directo da memória da revolução, ainda uma linguagem comum da esquerda, e da rejeição da austeridade por parte do PS. A “Geringonça” aprofundou a qualidade da democracia portuguesa, ao permitir a integração política da esquerda radical e dos grupos sociais que esta representa e ao governar ao centro e à esquerda simultaneamente.
O grande beneficiário disto foi o PS. A “Geringonça” mudou a cultura política do eleitorado, que é maioritariamente de esquerda mas prefere reformas gradualistas, o que penalizou o PCP e o BE nas ultimas eleições, após estes interromperem o ciclo de governo. A maioria absoluta deve-se também à derrota da estratégia centrista do PSD. Com uma esquerda relativamente unida, e que já ocupa o centro, só um projecto de ideias claras à direita pode um dia vencer. Por seu lado, o PS tem condições únicas para realizar um programa reformista à esquerda, que combine redução de desigualdades, aprofundamento da democracia e modernização económica. Isto num contexto europeu mais permissivo em relação a constrangimentos orçamentais e favorável ao investimento público.
O paradoxo é que, para isso, o PS precisa da colaboração dos sindicatos e da esquerda radical. Não basta uma maioria parlamentar, é preciso uma maioria social. Tanto mais porque, após a derrota da estratégia centrista de Rui Rio, a direita, que aliás cresceu em número de votos e no eleitorado jovem, irá mais tarde ou mais cedo aglunitar-se num movimento mobilizador. Esse será certamente ultra-liberal. Mas pode ainda includir o Chega, agora mais robusto. Para se afirmar, a alternativa do PS tem assim que ultrapassar a posição defensiva que foi a “Geringonça”, para se constituir como o polo aglutinador de todas as forças progressistas da sociedade portuguesa. Se conseguir isso, poderemos assistir, na próxima década, a uma espécie de versão sul-europeia da hegemonia socialista que os escandinavos fizeram desde os anos 1930.