Cartazes artesanais de protesto
(da Troika às manifestações pelo ambiente)
Do Arquivo Ephemera
Um dos cartazes mais humildes que temos é um pequeno fragmento de cartão, talvez uma aba de uma tampa de caixa, no qual está escrito «Não me calo!», com ponto de exclamação e tudo. É humilde no seu tamanho e expressão, não tem nenhuma qualidade gráfica especial, mas diz tudo o que há a dizer. Apesar de passar despercebido na parafernália dos livros e papéis, temos muita honra e muito gosto em tê-lo. Não é só um cartaz, é uma palavra de ordem. Não sei quem o fez, mas quem o levou a uma manifestação percebia que falar ou estar calado faz uma diferença gigantesca quando se quer protestar.
A colecção de cartazes artesanais do arquivo ephemera é única no país e bastante rara fora dele. Neste momento, tem mais de 300 cartazes recolhidos em manifestações por todo o país e alguns fora de Portugal. Há cartazes catalães, independentistas, ingleses, contra Trump, e franceses, do movimento dos gilets jaunes, e anteriores, contra a lei do trabalho e Macron. As regras para ser incluído na colecção é o cartaz ter sido feito pelo próprio que o exibe, sendo por isso único, e ser artesanal na sua confecção, mesmo que haja alguns feitos por artistas plásticos e designers com uma mão mais treinada. São quase todos de cartão, o cartão das caixas, cortado ou rasgado, escrito com marcador ou tinta, com várias cores ou monocolor, alguns com desenhos ou colagens. O cartão é colado numa vara, ou num pedaço de estore. Alguns têm duas faces, para valerem por dois. Vistos no seu conjunto, mostram a multiplicidade dos protestos e das vozes que representam.
É uma colecção ecléctica do ponto de vista cultural e político. Vai desde a manifestação pela leitura, passando pelo «que se lixe a troika», até aos protestos a propósito dos incêndios. Nela estão contidos protestos esquerdistas e de extrema-direita, feministas, nacionalistas, ecologistas, laborais, anti-racistas, contra a gentrificação, estudantis, ou por causas várias. É um retrato do protesto na sua dimensão mais pessoal: alguém vai manifestar-se e faz o cartaz com que vai atacar ou apoiar alguma coisa, a greve climática, o combate ao patriarcado e ao machismo, os baixos salários, a corrupção, a expulsão dos velhos habitantes do centro das cidades.
Os cartazes dizem muito sobre quem os faz: percebe-se a idade, o léxico, os erros de ortografia, os palavrões, os estrangeirismos. Percebe-se o sexo, e percebe-se que são raparigas e mulheres as mais ousadas e criativas, e, dentro desse universo, no caso português, as brasileiras, que animam como ninguém muitas manifestações, principalmente feministas. Lá no meio aparece Lula e a sua némesis Temer. Mas há também espanholas, estudantes de Erasmus, uma das quais fez o mais famoso cartaz da colecção, que deu origem à habitual guerra fátua das redes sociais e a um artigo do Público, abundantemente partilhado: «farta até à cona…». É da natureza das coisas que, fosse qual fosse a razão de estar «farta», a atenção parasse na palavra obscena. O mundo do protesto é mais complexo e rico do que se imagina.
Os cartazes, muitas vezes abandonados depois das manifestações ou deitados ao lixo, são diligentemente recolhidos pelos amigos e voluntários do arquivo e, agora cada vez mais, oferecidos pelos próprios autores depois de exercerem a sua função. No trabalho do ephemera ganham uma segunda vida que não os «amansa», nem os torna objectos de um mostruário morto, mas prolonga a sua acção. A Helena Sofia foi a primeira a perceber o potencial da colecção para quem se dedica ao estudo do design, do protesto e da sua gramática traduzida em objectos e palavras. A exposição feita no Barreiro com um título paralelo da integrada na Porto Design Biennale, O Que Faz Falta é Agitar a Malta, foi, por isso, um grande sucesso, num armazém perdido no meio do mundo póstumo do maior complexo fabril da história portuguesa.
O rastro das manifestações continua a interessar-nos. O arquivo ephemera de há muito que se interessa pelo carácter físico das coisas, pelos objectos, num mundo que crescentemente se deslumbra com o virtual e digital. Os objectos são da dimensão do humano, dos nossos sentidos, transportam uma verdade especial, a da sua materialidade. Sartre, quando quis explicar o que era o existencialismo, usou o exemplo de uma garrafa. Lenine, quando quis gozar com a obra do bispo Berkeley, sugeriu-lhe atravessar uma rua sem olhar para os carros. Por aí adiante.
Quando o museu Victoria & Albert, em Londres, iniciou uma colecção inovadora a que chamou Rapid Response Collecting, em 2014, já fazíamos o mesmo tipo de recolhas, mas a natureza da colecção do museu ajudou-nos a precisar o objectivo: perceber que alguns objectos triviais são tocados pela história. Na colecção do Victoria & Albert, apresentada inicialmente no próprio museu de uma forma marginal, numa passagem, como se não tivesse a dignidade dos cristais de Lalique ou das tapeçarias de William Morris — o local fazia sentido para se perceber que não é só design, nem artesanato, nem arte, mas história material. Há uns sapatos Louboutin, os computadores do The Guardian destruídos à marretada por lá terem estado os documentos de Snowden (um gesto puramente simbólico, porque eles já estavam em todo o lado), ou umas calças de ganga feitas numa fábrica oriental de salários de miséria, que ardeu matando muitos operários.
Nós temos o prego usado no referendo de Timor para furar o boletim de voto, uma lâmpada de mineiro asturiano oferecida por mineiros (percebe-se como é pesada), os carimbos usados para fazer falsificações de passaportes de activistas exilados, e, como no Victoria & Albert, um pussyhat. E muitos cartazes da escola do «Não me calo!»
José Pacheco Pereira
(Faça aqui o download da Folha de Sala)