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«Por que é que é importante uma coisa que é específica? É importante porque esta população tem características particulares no âmbito da violência doméstica. Aquela que eu posso salientar como mais óbvia, e que está no Manual, é que há uma forma de violência doméstica que só existe nestes casais: as ameaças de ‘outing’.»
Entrevista a Carla Moleiro, diretora do CIS-IUL e autora do estudo ‘Violência Doméstica: boas práticas no apoio a vítimas LGBT’.
Se pudesse, em poucas palavras, sublinhar a importância deste estudo, que é conotado como ‘inovador’ no panorama nacional e dentro dos estudos realizados na área da violência doméstica, como é que apresentaria a sua componente de inovação e necessidade em Portugal?
Tradicionalmente o estudo sobre a violência doméstica tem incidido na violência em relações íntimas em casais de sexo diferente. Não só do ponto de vista do trabalho de campo, portanto dos estudos empíricos, mas também do ponto de vista teórico, muita da literatura versa sobre a violência nas relações íntimas de casais de sexo diferente. E em que no mais, na maior parte das vezes, a vítima é mulher ou a mulher é enquadrada enquanto vítima, e o homem enquadrado enquanto agressor. De há uns tempos a esta parte, de facto, tem sido reconhecida a importância de pensarmos na violência em relações íntimas, ou nas relações domésticas, pessoas que coabitam, de uma forma mais ampla. Perspetivando, por um lado, a possibilidade de um homem ser vítima de agressão, mesmo numa relação de sexo diferente, a possibilidade de a mulher ser agressora e outras possibilidades como a possibilidade da violência ocorrer em relações do mesmo sexo.
Ou seja, é aqui às vezes fácil de ligar as questões de violência às questões de género e assumir que, e esse é um dos mitos que vem no final do manual como um mito que não é verdadeiro que é esta ideia de que a relação entre pessoas do mesmo sexo é uma relação entre iguais, logo não há assimetrias de poder nem de género. E isso não é verdade. Existe violência de género em relações entre pessoas do mesmo sexo. Porquê? Porque todos nós nascemos e crescemos numa cultura que enfatiza o poder, o domínio, a força, a competição, a competência, que são associados à masculinidade, e portanto as mulheres lésbicas, os homens gay, as mulheres e os homens bissexuais, as pessoas trans crescem também neste ambiente e não são imunes ao sexismo, ao heterossexismo, não são imunes a todas estas coisas que todos nós bebemos da sociedade. Portanto, também nas relações que eles e elas constroem na intimidade aparecem estes fantasmas de género e esta violência, que é uma violência que tem que ver com a necessidade de controle do outro, de manipulação do outro, que pode ter a ver com isso. Às vezes isto é uma surpresa para algumas pessoas por que o mito é ‘então é uma relação entre iguais, logo as pessoas são do mesmo sexo, logo não há aqui questões de violência de género, e não há aqui questões de assimetria de género’, e isso não é verdade.
Isto pode até promover alguma desvalorização das situações de violência entre pessoas do mesmo sexo?
Exatamente. Decorre disso precisamente que a CIG, e outros organismos, mas em particular a CIG, que promoveu o estudo que realizámos e depois a edição do Manual tenha reconhecido que era importante capacitar os seus profissionais para estarem atentos a estas situações e para saberem intervir de forma adequada nestas situações. Por um lado, porque há este reconhecimento, do ponto de vista científico, de que esta realidade existe, mas também porque houve mudanças legislativas em Portugal, nos últimos 5-6 anos, com o casamento, com a lei de identidade de género, com a adoção e coadoção, com a PMA, etc, que tornam mais visíveis estes casais e estas famílias e, portanto, a CIG considerou necessário dar formação aos profissionais das estruturas de apoio a vítimas, para estes poderem de forma mais competente e mais sensível também poderem intervir nestas situações.
Esta capacitação é muito importante, porque esta população já é vítima de preconceito e discriminação pela sociedade no geral, já é mais vulnerável a um conjunto de fatores de risco para a sua saúde, para a sua saúde mental, para a sua qualidade de vida, que incluem, como vem no Manual, o insulto da sua identidade, o isolamento e a sua invisibilidade. E, porque na literatura nós também verificamos que esta discriminação não acontece só na sociedade em geral, existe também nos serviços, nas escolas, nos serviços de saúde, nos serviços de apoio à vítima, na família. E portanto, pelo menos deste ponto de vista, dos profissionais de saúde, o Estado, neste caso a CIG assume a responsabilidade de capacitar os seus profissionais para não perpetuarem, também institucionalmente, esta discriminação e para serem mais capazes de identificar, de apoiar e de responder de forma sensível a estas populações.
Por que é que é importante uma coisa que é específica? É importante porque esta população tem características particulares no âmbito da violência doméstica. Aquela que eu posso salientar como mais óbvia, e que está no Manual, é que há uma forma de violência doméstica que só existe nestes casais: as ameaças de ‘outing’. Portanto, usar como forma de poder e manipulação na relação ‘eu vou dizer à tua família que tu és gay/lésbica’; ‘se tu me deixares, eu vou contar no teu local de trabalho’.
As pessoas podem estar mais ou menos assumidas na sua vida pessoal, privada, de amigos, familiar ou de trabalho, e é uma escolha de cada um ou de cada uma, ninguém é obrigado a estar assumido em todas as esferas da sua vida, mas o facto de as pessoas terem internalizado este insulto, este isolamento e esta invisibilidade, às vezes coloca-as na situação de poderem ser manipuladas(os) pelo outro que ameaça contar. E isso em particular é de especial relevância, sermos capazes – como profissionais – de avaliar, em particular numa fase de grande vulnerabilidade, que é a adolescência. E, portanto assumimos aqui também, neste contexto, as questões da violência no namoro, cada vez mais visíveis, portanto a violência doméstica não acontece só quando as pessoas são casadas no papel, também nas uniões de facto e também nas relações de namoro. Ora a adolescência dos jovens LGBT é particularmente vulnerável do ponto de vista de um conjunto de fatores de risco, porque não estão independentes do ponto de vista financeiro, mas também cognitivo, emocional e profissional das suas famílias que muitas vezes elas próprias são rejeitantes e onde muitas vezes eles e elas ainda não estão assumidos. E depois a violência no namoro reveste-se desta ameaça ‘ se tu me deixares eu vou dizer aos teus pais’. E, portanto, como é que os profissionais reconhecem estas situações e conseguem de forma sensível intervir e apoiar estes(as) jovens. E isso são aspetos específicos e que mereciam uma abordagem diferente. Até porque a maior parte de nós, pensando que estes profissionais são polícias, investigadores/as, técnicos/as de serviço social, psicólogos/as, médicos/as e enfermeiros/as, nas suas formações de base nas faculdades, pouco ou nada tiveram acesso a esta informação. Por diversas razões, uma delas porque estas mudanças legislativas são muito recentes, e as pessoas já se formaram há muito tempo, mas também porque de facto não há… uma das formas de invisibilidade é que na própria academia são poucas as pessoas que trabalham de forma explícita, que ensinam, que supervisionam, de forma explícita e sistemática acerca destas coisas. Daí este caráter inovador deste Manual.
Será essa uma das características que diferencia, tanto do lado das vítimas como do lado das entidades que prestam apoio – alguns testemunhos estão explanados no Manual – e tendo em conta o tipo de recomendações apresentadas.
Nestas questões que têm a ver com a diversidade, e a diversidade não só em termos da orientação sexual e de identidade de género, mas muitas outras: religiosa, étnica, racial… o que é importante de facto é fazer uma formação que tenha 3 componentes que vêm aqui explanadas. Por um lado, é preciso dar conhecimento às pessoas, que é o que elas estão à espera, é receber mais matéria; mais competências, ou seja, como é que isto depois se faz na prática. Mas um terceiro componente, que para nós é o primeiro, é ampliar a consciência das pessoas, ou seja, ajudar os(as) profissionais a saírem um pouco da sua caixa que é também ela própria uma forma de agressão destas pessoas, que é a da heteronormatividade. Todos nós sabemos que quando conhecemos uma criança pequenina e estamos a fazer conversa, rapidamente dizemos ‘então e na escola tens amigos, e já tens namorado?’ Assumimos a heterossexualidade do outro muito rápido, muito cedo. E portanto se eu como profissional de apoio à vítima, numa entrevista me coloco numa posição inquestionada de heteronormatividade e pergunto a uma mulher que se apresenta com uma queixa ‘sobre o marido dela’, já a ‘perdi’ na entrevista se por acaso ela for bissexual ou lésbica e a agressora for uma mulher. Ela vai sentir que está a ser discriminada duplamente e isso é uma das razões pelas quais muitos dos testemunhos que nos chegaram e que chegam às ONGs, às associações desta matéria, que é ‘eu não vou fazer queixa porque um dos meus receios é, eu vou ser gozado pelo polícia’, como homem gay. Ou ‘eu não vou fazer queixa porque não vai haver uma recetividade à minha situação. Eu vou ser duplamente vitimizada pelos serviços’. Essa é uma barreira grande para as pessoas avançarem e fazerem queixa.
Nós como investigadores e investigadoras tivemos muita dificuldade, fizemos anúncios por vários meios, social media e contactos pessoais, e redes profissionais e profissionais, e tivemos muita dificuldade em encontrar pessoas que dessem voz à sua história de violência doméstica nestes casos. Em qualquer uma destas situações mas mais em homens e mais em pessoas trans, portanto mais mulheres deram voz e testemunhos. Não acredito que não exista ou seja rara, e aliás a literatura internacional diz-nos, que do ponto de vista da prevalência, ela deve ser equivalente à de pessoas de sexo diferente. Não há razões para achar que em Portugal seria diferente doutros países, mas em boa verdade as queixas não aparecem também por medo das respostas institucionais. Portanto mais uma vez, da importância de capacitarmos profissionais para não repetirem este preconceito nos seus serviços.
Para finalizar, e pegando nesta última ideia, há uma autoconsciência, por parte dos próprios serviços, de que não existe uma resposta adequada para estas populações?
A CIG colocou no seu plano nacional de intervenção um conjunto de medidas para dar resposta à constituição, e portanto para trabalhar nas áreas LGBT e decorrendo também do investimento que fizeram no estudo que nós realizámos aqui no CIS, neste Manual, pediram-nos também para desenhar uma formação – que fizemos – uma formação de 3 dias e para planearmos ações de formação em 4 sítios do país: Lisboa, Coimbra, Porto e Évora. Abriram inscrições para 4 grupos de formação, mais ou menos, 25 pessoas cada, ou seja 100 no país. Inscreveram-se 400 pessoas. Eles tiveram que selecionar e nós fomos aos 4 sítios do país dar formação, mas só fomos dar a um grupo, entre 25 a 30 pessoas cada.
Agora a CIG abriu novas calls para se fazerem mais formações no futuro, mas a ideia é de que há uma consciência dos e das profissionais de que necessitam de formação nesta matéria, de tal forma que se inscreveram para estar nestas formações, que foram as primeiras do país e que ocorreram no ano passado, excedendo as expectativas que a própria CIG tinha de quantidade de profissionais que estariam interessados.
As calls ainda estão abertas e é a CIG que está a fazer essa gestão, ainda não sabemos quando irão decorrer.
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