Título
Donas de rua, vidas lixadas: interseccionalidades e marcadores sociais nas experiências de travestis com o crime e o castigo
Autor
Ferreira, Guilherme Gomes
Resumo
pt
É possível observar no contexto brasileiro a relação, estabelecida para o senso comum, da
categoria “travesti” com aquilo que é significado como marginal, violento, precário e
criminoso. No mesmo sentido, tem ocorrido nos últimos anos um agravamento das expressões
de violência a que está sujeita essa população, resultante, por um lado, do aprofundamento das
desigualdades sociais e do avanço do Estado Penal como resposta à violência e à pobreza e, por
outro lado, do fortalecimento do conservadorismo e da agenda política de direita. Junto à
violência que expõe as travestis à morte, percebe-se a reação seletiva e repressiva do sistema
penal e de justiça, que facilmente captura as travestis a partir de produções de significado sobre
seus marcadores sociais, especialmente os de gênero, corpo, raça/etnia e classe social. A
presente tese, assim, busca compreender como se dão as experiências sociais de criminalização
das travestis, como grupo subalternizado, em relação ao duplo “crime/castigo”; quer dizer, suas
experiências no chamado “mundo do crime” e a sociabilidade violenta a que estão submetidas
e que as faz mais facilmente detidas pela polícia, bem como suas capturas pelas instituições de
privação da liberdade. A intenção é compreender como esses marcadores funcionam para
produzir a própria prisão e o sujeito preso, isto é, como contribuem para a constituição
institucional e social do crime enquanto um processo social e de sujeitos e categorias de sujeitos
aprisionáveis, por meio de processos de incriminação, criminalização, sujeição e seleção.
Defende-se a tese de que esses marcadores sociais explicitam e especializam o processo de
subalternização de determinadas classes e grupos, expresso não apenas pela dimensão da
violência, da humilhação, da perda de direitos e de toda sorte de privações, como também pela
dimensão da desobediência, do deboche, da luta e da resistência. A metodologia essencialmente
qualitativa do trabalho compreendeu um esforço por triangular dados e informações, desde a
base teórica (o materialismo histórico dialético, os estudos interseccionais e queer) até as fontes
(entrevistas, documentos, documentários e reportagens jornalísticas) e as técnicas (história oral
temática e observação para a coleta de dados e análise textual discursiva para o tratamento dos
dados). A partir das narrativas de vida recolhidas sobre os significados produzidos pelas
entrevistadas a respeito de noções como identidade de gênero, pobreza, trabalho sexual e crime,
pôde-se perceber que existe um vasto campo de significações desde a enunciação da palavra
“travesti” que conectam essa identidade à subalternização e à violência, constituindo aquilo que
passa a ser entendido como vida precária – cujas mortes não merecem ser choradas pelo
conjunto da sociedade e cuja qualidade vale menos no processo de produção e reprodução
social. Já na perspectiva dos estudos críticos na área do serviço social sobre a categoria da
subalternidade, constatou-se que a realidade de vida das travestis expressa a contraprova
histórica desta tese, marcada pelo contrapelo que é ao mesmo tempo viver o conformismo e a
resistência. Mais, e por fim, acredita-se que as teorias de gênero e sexualidade, presentes nos
fundamentos de um conjunto hegemônico de movimentos sociais e acadêmicos, não têm
dialogado com as classes populares e sequer produzido um recorte de classe nas suas críticas.
A aposta desta tese é na produção de uma perspectiva queer materialista que dialogue de
maneira ético-política, teórico-metodológica e técnico-operativa com os movimentos e
demandas reais dessas populações, sinalizando para a necessidade de inverter a lógica de
produção do conhecimento, ainda colonizadora e exotificadora, e trazendo as narrativas das
interlocutoras para o centro.
en
In the Brazilian context, it is possible to observe that, in a perspective of common sense, the
category "travesti" is related to something marginal, violent, precarious, and criminal.
Similarly, each day this population is more exposed to violence, a consequence, on the one
hand, of a scenario of increasing social inequality and the Criminal State response towards
violence and poverty and, on the other hand, of the empowerment of conservatism and rightwing political agenda. In addition to the violence that leads to travestis' deaths, we can see the
selective and repressive response of the penal institution and justice system, which easily
frames travestis based on productions of meaning stemming from social markers, especially
gender, body, race/ethnicity, and social class. The present thesis, therefore, intends to
understand how social experiences of criminalization faced by travestis, as a subaltern group,
are connected to the "crime/punishment" duality: their experiences in the so-called "world of
crime" and the violent socialization to which they are subjected, which makes them more easily
framed by the police, in addition to their confinement byDeprivation of Liberty Institutions.
The intention is to understand how these markers work to produce the prisoner and the prison
itself, that is, how they contribute to the institutional and social establishment of crime as a
social process towards subjects and categories of imprisonable subjects, through processes of
incrimination, criminalization, subordination, and selection. We argue that these social markers
emphasize and specify the process of becoming subaltern, which is expressed not only in the
realm of violence, humiliation, loss of rights and all kinds of disenfranchisement, but also in
the realm of disobedience, mockery, struggle and resistance.With an essentially qualitative
methodology, the study encompasses an effort to triangulate data and information, from the
theoretical foundation (Dialectical and Historical Materialism, intersectionality and queer
studies) to sources (interviews, documents, documentaries and journalistic texts),
and techniques (thematic oral history and observation for data collection, and discursive textual
analysis for data handling). From the participant's life narratives collected, and the meanings
theyproduced on notions such as gender identity, poverty, sex work and crime, we observe that
there is a wide meaning field that is delineated from the enunciation of the word "travesti" that
connects this identity to a subaltern position and violence, establishing what is understood as a
precarious life: deaths that do not deserve to be grieved by the whole society, and worth that is
less valuable in the process of social production and reproduction. Concerning the critical
studies perspective inserted in the field of social service about subordinate relations, we
observed that the reality faced by travestis expresses the historical counterevidence of the
thesis, marked by the contradiction resulting from simultaneously experiencing conformism
and resistance. Besides, and finally, we believe that theories of gender and sexuality, present in
the foundations of a hegemonic set of social and academic movements, have not been
establishing a dialogue with popular classes, or even interacting withclass perspectives in their
criticisms. The thesis intends to produce a queer materialist perspective that interacts in an
ethical-political, theoretical-methodological, and technical-operative way with the movements
and the actual demands of these populations, highlighting the need to reverse the logic of
knowledge production, which still carries a colonizer focus and an exoticism approach,
and bringing to light the narratives of the interlocutors.