Título
Famílias na periferia de Maputo: Estratégias de sobrevivência e reprodução social
Autor
Costa, Ana Bénard da
Resumo
pt
Baseando-se em investigações que decorreram no âmbito de dois projectos realizados
entre os anos de 1998 e 2002 nos bairros de Mafalala, Polana Caniço A e Hulene B na
periferia de Maputo, esta tese procura compreender a forma como as famílias se organizam
e como desenvolvem todo um conjunto de práticas e estratégias que lhes permitem,
simultaneamente, manter-se enquanto unidades sociais e fazer face a uma
situação económica adversa.
Após uma introdução onde apresenta em breves palavras o contexto onde decorreu a
investigação, as principais questões que conduziram a análise e a metodologia
utilizada, o tese inicia-se com uma descrição dos bairros periféricos onde residem as
famílias estudadas descrevem-se seguidamente as transformações políticas e
económicas ocorridas em Moçambique desde a independência até ao presente, destacando
o seu impacte na cidade de Maputo. Segue-se um capítulo onde se abordam
questões de “urbanidade” e de “ruralidade”, problematizando-se sinteticamente a
forma como as relações entre estes contextos têm sido tratadas nas teorias de
desenvolvimento e como esta perspectiva tem marcado a análise das dinâmicas sociais,
nomeadamente ao nível das famílias. Seguidamente referem-se as diferentes
naturalidades dos actores e das suas famílias, descrevendo alguns percursos e, por
último, analisa-se a entreajuda familiar e as relações que estas famílias têm, ou não têm,
com a “terra de origem”.
No terceiro capítulo abordam-se temas relacionados com alguns recursos que
indivíduos e famílias possuem e que podem, ou não, constituir importantes “mais-
-valias” nas estratégias de sobrevivência e reprodução social. Fala-se, assim, de escolaridade
e, de uma forma muito geral, de educação; de formações, profissões, artes e
saberes; e de religião — sobretudo da chamada religião “tradicional”, entendida como
recurso e “saber” —, de sincretismos e de curandeiros. A reflexão centra-se nas formas
de articulação detectadas entre diferentes referentes e modelos culturais e sociais,
pondo em evidência as estratégias de sobrevivência e reprodução social das famílias e
dos seus membros.
A estrutura interna das famílias constitui o tema central do capítulo seguinte.
Analisam-se os diferentes tipos e estruturas familiares e os factores de coesão e de
desagregação. Focam-se aspectos relacionados com a identidade familiar e com os seus
símbolos, centrando o debate em torno das questões suscitadas pela pluralidade de
lógicas em presença.
As relações entre famílias são apresentadas no quinto capítulo. A análise dos diferentes
tipos de uniões matrimoniais em presença constitui o fio condutor da reflexão que,
posteriormente, incide sobre o casamento sancionado através do lobolo e, por aí,
abordam-se temas relacionados com o sistema legal vigente. Por último, articula-se a
análise do lobolo com as questões de género, centrando-se novamente a análise na
estrutura interna da família. No sexto capítulo são novamente abordadas as relações
entre a religião e a família. Retoma-se o tema das uniões matrimoniais, relacionando
de forma comparativa, a influência que as diferentes religiões e credos têm nos actores
e nas famílias (conflito e coesão). Analisam-se as igrejas cristãs, descrevendo as características
daquelas que parecem mais importantes enquanto redes de solidariedade social
para as famílias em análise e, de um modo geral, para as famílias da periferia de
Maputo. Relacionam-se as práticas terapêuticas da religião “tradicional” com as
práticas terapêuticas da Igreja Zione, tentando compreender a importância destas
diferentes práticas enquanto veículos de inserção dos actores em redes de solidariedade
social mais abrangentes do que a família.
No sétimo e último capítulo são analisadas de forma específica as actividades económicas desenvolvidas pelos membros das famílias. Numa primeira parte, descreve-se
sumariamente a evolução da estrutura económica da cidade de Maputo, fazendo
especial referência ao chamado “sector informal”. Na segunda parte, analisam-se as
actividades económicas desenvolvidas pelos actores sociais estudados, tendo em
consideração todos os recursos que podem ser mobilizados ao nível das estratégias
familiares e que contribuem para a sobrevivência e reprodução desta unidade social: as
diferentes formas de trabalho possíveis — emprego formal e informal, trabalho
remunerado e não remunerado, produção de subsistência e “esquemas” vários de
angariação de rendimentos monetários — os recursos individuais (saúde, educação e
capacidades); os recursos relacionados com os diferentes grupos familiares onde se
inserem os actores e os recursos relacionados com o património (entendendo este
termo no sentido mais amplo possível) de que são portadores e com as redes sociais a
que pertencem.
Articulando análise empírica com a reflexão teórica e desenvolvendo uma abordagem
pluridimensional e relacional das estratégias familiares, este tese permite verificar que
são as formas particulares de que se revestem as múltiplas articulações e inter-relações
entre diferentes actividades geradoras de recursos económicos, sociais e simbólicos,
entre diferentes comportamentos regidos por valores contraditórios e diferentes tipos e
níveis de relações sociais que constituem as características fundamentais das estratégias
estudadas e, de uma forma geral, da “modernidade” do contexto em análise. É
recorrendo a estratégias simultâneas de dispersão e complementaridade e a múltiplas
articulações que as famílias gerem a insegurança e a incerteza do seu quotidiano e do
futuro procurando assim aumentar o leque de oportunidades.
Esta conclusão pode ser aplicada a outros contextos sociais onde coexistem diferentes
sistemas culturais, as condições de vida material não estão asseguradas e o não existem
sistemas estatais de segurança social. Por isso, a especificidade das estratégias de
sobrevivência e reprodução social das famílias analisadas não lhe advém das
ambivalências, contradições, articulações e inter-relações mencionadas, mas das
características específicas dos diferentes elementos culturais em presença e da forma
como estas e estes são manipulados pelos actores sociais no quadro dos processos
particulares através dos quais estas contradições se manifestam e as articulações e interrelações
se desenvolvem. Da mesma forma, a especificidade do contexto também decorre dos processos concretos através dos quais as famílias conjugam as suas
necessidades de coesão interna com a dispersão e complementaridade das estratégias
desenvolvidas.
en
Based on research conducted during two projects pursued between 1998 and 2002 in
the neighbourhoods of Mafalala, Polana Caniço A and Hulene B on the periphery of
Maputo, this thesis examines the practices and strategies organized and implemented
by families in these neighbourhoods in their endeavours to preserve their cohesion as
social units and to cope with adverse economic conditions.
After a brief introduction describing the context in which research took place, the
principal questions which informed analysis, and the methodology applied, the thesis
opens with a description of the peripheral neighbourhoods which are home to the
families examined by the study. This is followed by an account of the political and
economic transformations which Mozambique has undergone from independence to
the present day, with particular emphasis on the impact of these changes on the city of
Maputo. The next chapter examines the “urbanity vs. rurality” question, with a brief
description of how the relationship between these two contexts has been addressed in
development theories, and of how such a perspective has shaped the analysis of social
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dynamics – on the family level in particular. The diversity of birthplaces of the actors
and their families are noted, with a few personal trajectories described, followed by an
examination of how families help each other and an account of their links – or absence
of links – with their “villages of origin”.
The third chapter addresses the question of the resources available to individuals and
families; resources which may or may not constitute significant assets in their
livelihood and social reproduction strategies. Included in this discussion are schooling
and “education” in general (vocational training, trades, crafts and skills), as well as
religion – especially “traditional” religion, in its acceptance as a resource, a craft, with
its witch doctors and syncretism. The discussion focuses on the forms of articulation
observed between different sociocultural frameworks and models, as illustrations of
the livelihood and social reproduction strategies pursued by families and their
individual members.
The next chapter has as its central theme the internal structure of the families. It
examines different family types and structures, and the factors which contribute to the
families’ cohesion or disintegration. Aspects related with family identity and its
symbols are examined in detail, with discussion focussing on the issues raised by the
co-existence of different systems of thought.
The fifth chapter addresses the relations between families from the perspective of the
different marriage customs practised by and between them. It continues with an
examination of the institution of lobolo, before passing to a discussion of the issues
related with current legislation on marriage. This chapter closes by articulating the
question of lobolo with gender issues, from here returning to an analysis of internal
family structure. The sixth chapter takes a closer look at the ties between religion and
family and the light they throw on attitudes towards marriage, with a comparative
assessment of the influence of different religions and creeds, in terms of the conflict or
cohesion they promote, on the actors and families. This includes an examination of the
Christian faiths, the attitudes of each creed to social solidarity, and how these attitudes
find expression in the lives of families living on the periphery of Maputo, and the
families under analysis in particular. The curative aspects of “traditional” religion are
examined in relation to the therapeutic practices of the Zion Church, in an endeavour
to ascertain the importance of these different creeds for the inclusion of the actors in
social solidarity networks which are wider than the family.
The seventh and final chapter examines in detail the economic activities pursued by
individual family members. It opens with a brief account of the economic evolution of
the city of Maputo, with the “informal” economy receiving special attention. In the
second part of this chapter the economic activities pursued by the social actors under
analysis are examined more exhaustively. Here the analysis encompasses all the
resources that can be mobilized on behalf of family strategies and that contribute to the
survival and reproduction of the family as a social unit: work (“formal” and “informal”,
paid and unpaid work, subsistence farming, and the endless ruses and
expedients employed to obtain money), and resources (individual, such as health,
education and ability; resources available to the different family groups to which the
actors belong; resources related to the “inheritance”, in the widest possible acceptance
of the term, to which they can lay claim; and resources proper to the social networks to
which they belong).
By articulating empirical analysis, theoretical reflection and a
multidimensional/relational approach to family livelihood strategies, this thesis
identifies the distinguishing marks of the livelihood and social reproduction strategies
(and more generally of the social context itself) pursued in the peripheral
neighbourhoods of Maputo as a manifold articulation and inter-relation between
various of generating economic, social and symbolic resources, between diverse
patterns of behaviour governed by contradictory values, and between different types
and registers of social relations. It is by simultaneously resorting to strategies of
dispersion and complementarity, to multiple articulations, that families can cope with
the instability and uncertainty of their existence now and in the future. In other words,
they seek to keep their options as open as possible.
This conclusion can also be applied to other social contexts in which different cultural
systems coexist, where no satisfactory living conditions are guaranteed and where no
state-sponsored social security system exists. Therefore the distinguishing features of
the livelihood and social reproduction strategies pursued by the families under analysis
result not from the ambivalences, contradictions, articulations and inter-relations
observed, but rather from the specific characteristics of the cultural elements which are
present, and the way these characteristics and elements are manipulated by the social
actors within a framework which simultaneously accommodates contradiction,
articulation and interrelation. Another factor which contributes to the specificity of the
context is the way families reconcile their internal cohesion needs with the dispersion
and complementarity which characterize the strategies they pursue.