SAÚDE

Saúde e Sustentabilidade devem incluir combate às desigualdades



Entrecampus 2 - Art 4 Sibila


SIBILA MARQUES

Docente Iscte

Investigadora CIS-Iscte




Projeto europeu INHERIT apostou no “triple win”:
vida mais saudável, planeta mais sustentável,
menos desigualdades sociais



Como se interessou por este tema e qual o seu papel no projeto H2020 INHERIT?

Sempre me interessei pela parte comportamental, daí ter escolhido a área da psicologia e, no fundo, como é que se pode influenciar as pessoas e promover uma sociedade melhor. Pessoalmente, interessei-me por estes temas já há muito tempo. Na altura do liceu, quando pensei em seguir a engenharia ambiental, depois acabei por ir para psicologia e acabei por seguir na mesma área da promoção da sustentabilidade ambiental, através de uma disciplina que é a psicologia ambiental. O projeto INHERIT é bastante abrangente, pois no fundo pretende promover a saúde, ao mesmo tempo a sustentabilidade ambiental e diminuir as desigualdades sociais. Diria que é um projeto bastante ambicioso. O meu papel foi no fundo representar a psicologia. Sempre tive muito interesse pela investigação aplicada, de ter um impacto social de facto no que acontece nas nossas cidades. Um dos principais objetivos do projeto era identificar estudos de caso na Europa que fossem práticas inovadoras: no consumo, nos transportes e na habitação. E que fossem, em simultâneo, promotoras da saúde, diminuíssem as desigualdades sociais e promovessem a sustentabilidade ambiental. Isto era o que no INHERIT chamávamos o triple win. Grande parte dos parceiros eram institutos de saúde pública, da Bélgica, Holanda, Macedónia. Tínhamos vários parceiros de saúde pública, investigadores, utilizadores.


Na ótica da investigação produzida, considera que o estudo da Psicologia Comportamental pode trazer respostas sobre a ação humana e os efeitos no ambiente?

Exatamente. Acaba por ter um papel fundamental. Entendermos os comportamentos das pessoas dá-nos respostas de como podemos contribuir para alteração de consumos e de práticas.


Qual a importância destas colaborações a nível internacional? Foi desafiante trabalhar numa lógica multidisciplinar com pessoas de áreas tão distintas?

Eu sempre trabalhei com pessoas de outras áreas. Comecei por trabalhar na área ambiental a tentar perceber os impactos que as grandes infraestruturas, como os aeroportos, as barragens, teriam nesta área. Já trabalhávamos com vários intervenientes nestes estudos de impacto, que normalmente são médicos, arqueólogos, engenheiros do ambiente. Nós eramos os psicólogos que estudávamos os impactos nas pessoas. O INHERIT vem no seguimento dessa cultura multidisciplinar. Já estava habituada, não posso dizer que tenha sido difícil estar nesse meio. Tínhamos médicos, responsáveis de áreas ambientais. Se é um desafio? É um desafio grande, porque as linguagens são diferentes, porque temos de fazer um ajustamento para entender a maneira de pensar das outras pessoas de forma a chegar a um acordo.



A ciência pode ter um papel fundamental no estudo mais sistemático de formas alternativas de vida que promovam ao mesmo tempo a saúde e a sustentabilidade ambiental e diminuem as desigualdades sociais



Temos abordado um projeto que envolveu uma grande colaboração europeia. Ao longo do seu trabalho enquanto investigadora, acha que o nosso sistema científico está na vanguarda das boas práticas internacionais? Ou considera que ainda temos muito para caminhar?

Eu estive durante oito anos em projetos europeus de nível elevado. Entre 2012 e 2016, estive num projeto na área do envelhecimento e, logo a seguir, entrei no INHERIT, que foi um projeto de alto nível europeu, de políticas europeias de investigação. Em nenhum momento achei que os portugueses estivessem abaixo das outras equipas. Pelo contrário, acho que demos um contributo bastante importante para esses projetos. E nalguns aspetos acho até que fomos extremamente inovadores, nas práticas que apresentámos, nos mecanismos de recolha a nível nacional que testámos e que, depois, foram consideradas boas práticas a nível internacional. Não ficamos atrás em nada.


A alimentação e o consumo saudável têm sido matérias na ordem do dia. Que exemplos devemos ter?

Daria exemplos do que fizemos no projeto INHERIT. Na área do consumo, a nível europeu, identificámos uma boa prática em países onde os vegetais não estão tão disponíveis: a disponibilização de vouchers. Claro que em Portugal estes são mais acessíveis, até em termos de preços, mas é uma medida importante noutros países, como a República Checa. Estes incentivos monetários podiam, certamente, trazer uma alimentação mais saudável e assim um consumo mais sustentável. Ou seja, uma das medidas que o INHERIT sugere passa também por incentivos financeiros. Na parte das escolas, em Portugal, entendemos que já há legislação muito importante que impede a publicidade a alimentos pouco saudáveis. É bastante importante. Mas um passo seguinte é mesmo o de monitorizar a alimentação que é fornecida nas escolas, que até agora tem descido bastante em termos de qualidade. Um outro projeto muito interessante, em Madrid, prendia-se com a introdução de uma alimentação com um cariz mais vegetariano, em crianças dos 0 aos 3 anos. E esse período é muito importante porque é altura em que se forma o gosto e o palato. Era um projeto que juntava chefs conhecidos, que depois se juntavam com os responsáveis das cantinas das escolas e com os pais, com o objetivo de criarem as ementas para os mais pequenos se habituarem ao sabor, a uma alimentação mais saudável.


Ou seja, uma prática mais de prevenção do que intervenção…

Sim e não. Um dos grupos que mais tem sido afetado com a obesidade têm sido as crianças. Não é apenas preventivo para o futuro, pois se nós, no contexto escolar, lhes proporcionarmos uma alimentação mais saudável também estamos a atuar no imediato. A vantagem da alimentação escolar é que também tende a diminuir as desigualdades sociais, porque, no fundo, se a escola é que fica responsável por algumas refeições das crianças e se as mesmas tiverem qualidade pelo menos estamos a garantir que em boa parte do dia o consumo das crianças é um consumo adequado. Por exemplo, há várias escolas que neste momento estão a criar hortas. A ideia é as crianças perceberem o que é produzir um alimento desde o princípio até ao seu consumo. Só o facto de se apostar no verde sabemos, do ponto de vista psicológico, que reduz os níveis de stress. Outra prática que também é interessante é a de desincentivar o consumo de alimentação menos saudável, através do preço e com o aumento de impostos. Hoje é mais barato comer fast food do que comida portuguesa tradicional, por exemplo. Esse tipo de movimento poderia ser feito, taxar os alimentos menos saudáveis. No entanto, é preciso pensar também de que modo esse tipo de medidas pode agravar desigualdades sociais, já que sabemos que poderá ser particularmente penoso para pessoas com menos rendimentos e que persistem, por outro tipo de razões, a optar por esse tipo de alimentação.


E medidas no sentido ambiental?

Todas as medidas avaliadas pelo INHERIT também pensam nesta dimensão. Por exemplo, se pensarmos no consumo de carne, estamos a dar resposta à problemática da alimentação saudável, mas também a contribuir para uma medida mais sustentável do ponto de vista ambiental. Reforço a riqueza da abordagem multidisciplinar, embora isso levante enormes desafios, por exemplo, ao nível da utilização de uma linguagem comum. Do ponto de vista da saúde pública, para um médico, é importante a casa estar com uma temperatura para 18-20 graus. Para um psicólogo isso também é importante, mas também é relevante que as pessoas percebam o porquê de isso ser importante. A psicologia tem, diria, um papel fundamental. Ligar a saúde com o ambiente, dar uma perspetiva mais global, de perceber como as pessoas reagem, de que são feitos os seus estímulos. Acabamos, no final, por perceber que a perceção das pessoas e a sua ação é fundamental para conseguirmos desenvolver um ambiente saudável e um mundo menos desigual. Acabámos por colocar a psicologia no modelo teórico todo. Nos transportes, uma medida estudada foi a utilização de bicicletas. Mas, neste caso, sabemos que pode não ser propriamente um triple win – promotoras da saúde, redutoras das desigualdades sociais e promotoras da sustentabilidade ambiental –, pois em zonas habitacionais menos favorecidas poderão não existir as condições para se andar de bicicleta. Por exemplo, podemos ter a ausência de estradas adequadas ou um aumento de criminalidade que tornam o uso de bicicletas mais difícil. Se queremos todas as pessoas a utilizarem as bicicletas, as condições físicas e sociais terão também de estar presentes.



Uma prática interessante é a de desincentivar o consumo de alimentação menos saudável, através do preço e com o aumento de impostos. Hoje é mais barato comer fast food do que comida portuguesa tradicional, por exemplo.


Entrecampus 2 - Art 4 Sibila ilustr


Sente que os resultados da investigação podem trazer impacto na sociedade civil? De que forma?

Sim, claramente. Principalmente trazer impactos na vivência das cidades. Esta investigação teve uma clara articulação com a política pública. Muitos dos parceiros eram, precisamente, institutos de saúde pública. A mais-valia deste projeto foi o que apelidámos o triple win: saúde, ambiente, desigualdades sociais. E esta última assume uma especial relevância, porque na nossa sociedade é muito mais fácil as pessoas mais ricas terem mais saúde e mais comportamentos sustentáveis. O que não é fácil é garantir que isto é feito por toda a gente. A ideia do INHERIT quase que aponta o caminho de uma nova sociedade. Um dos estudos de caso era uma cidade inteira, a cidade de Ghent (Bélgica). Um movimento de mudança do consumo alimentar, com mercados locais, envolvimento de pessoas com menos rendimentos, hortas comunitárias. Aqui verifica-se mesmo uma tendência para promover outro estilo de vida. Estas práticas que o INHERIT avaliou já estavam, digamos, no terreno. Portanto, as pessoas têm noção de que é preciso mudar algumas coisas. Espontaneamente, já havia hortas comunitárias, movimentos pelo uso da bicicleta, novas formas de construção. O que não havia era a avaliação científica do impacto destas medidas. Foi isto que o INHERIT veio trazer nesta parte do projeto: a avaliação científica dos estudos de caso para que seja possível fazer uma advocacia das medidas, na necessidade de mudar. Um bom exemplo é análise do custo-benefício do projeto de Madrid onde se verificou um claro benefício para os atores envolvidos. É mais barato investir na promoção nos primeiros anos de vida, do que depois propor medidas mais tardias e remediativas para lidar com os efeitos de uma má alimentação nas crianças. A investigação acabou por trazer uma validação destes tipos de vida, uma legitimação que é possível depois defender certas medidas nos parlamentos. Este projeto foi uma forma de também legitimar um mundo mais saudável e mais sustentável, tendo em conta também as desigualdades sociais. É o cunho científico que altera a validação das medidas e a adoção das mesmas. Diria que este foi um dos principais contributos. Hoje sabemos que as pessoas querem um tipo de consumo em que, por exemplo, a comida não seja de cariz tecnológico. A tendência para se voltar à comunidade, de se produzir e consumir local. Os nossos inquéritos mostraram que, neste momento, as pessoas desejam da tecnologia sobretudo uma melhoria das condições de habitação, através das casas inteligentes, ou nos transportes, tornando-os mais ecológicos.


Portanto, conclui-­se que a população europeia está consciente dos desafios vindouros?

Vivemos num mundo onde a ciência é uma arma importante, pois reúne opiniões e de forma representativa. É diferente de perguntar a um cidadão de forma isolada. A ciência pode vir a ter um papel fundamental. E o INHERIT foi muito importante neste aspeto, o de permitir o estudo aprofundado e validado, através de inquéritos representativos. Tantos e tantos projetos que têm todo o mérito, mas que careciam de uma avaliação mais aprofundada.


E o futuro? Prevê novas investigações e interesses em que a psicologia pode ser um elemento fundamental?

Eu trabalho em duas áreas principais. A minha vertente é realmente a psicologia social aplicada, usar a ciência para melhorar a nossa sociedade e ter influência nas políticas públicas. Neste momento, pretendo juntar as minhas duas áreas de investigação: a do envelhecimento e a do ambiente. Um projeto que estive a pensar, em conjunto com a investigadora Sara Eloy, do ISTAR-Iscte, é o de tentar compreender como podemos promover cidades que sejam, ao mesmo tempo, mais sustentáveis e ambientalmente mais equilibradas para promover o envelhecimento de qualidade. Sinto que, quando falamos na área do ambiente, se esquecem muitas vezes dos aspetos do envelhecimento e, na área do envelhecimento que se esquecem também do ambiente. Acho importante que sejam construídas ciclovias pelas cidades, bicicletas, todas essas medidas. Mas, temos de pensar se as pessoas mais velhas, porque vamos todos envelhecer, vão gostar deste tipo de ruas. Se vão sentir-se seguras. Se a perceção do medo de cair, por exemplo, será uma realidade. Como adaptar as bicicletas para que também as pessoas mais velhas se sintam bem a utilizá-las. A pandemia veio ainda salientar mais esta necessidade de pensarmos os espaços públicos para que pessoas de todas as idades se sintam bem a utilizá-los. É nesta realidade que agora me quero focar, com a psicologia a ter um papel de procurar entender as pessoas, fazer parte da alteração e, com o cunho científico, contribuir para uma sociedade melhor.

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