ENERGIA

A revolução energética começa em casa e com pequenos gestos


Entrecampus 2 Nuno Bento


NUNO BENTO

Investigador Dinâmia’CET



As lâmpadas led, as bicicletas elétricas ou os eletrodomésticos eficientes podem ser mais eficazes para alcançarmos os objetivos globais de descarbonização do que o investimento em grandes projetos.



Num artigo publicado recentemente na revista Science por um grupo de investigadores do qual faz parte, defende­se a ideia de que a descarbonização pode ser acelerada com pequenas inovações.

Nesse artigo, resultante de um projeto de investigação que envolveu equipas de vários países, concluímos que as tecnologias mais pequenas podem disseminar-se mais rapidamente do que as inovações de grande escala, contribuindo para uma descarbonização mais acelerada. Essa maior velocidade da mudança está associada às características das tecnologias mais pequenas, como a rapidez na implementação, o facto de permitir mais facilmente contornar bloqueios tecnológicos e também o facto de ter melhor aceitabilidade social. Tradicionalmente, os governos tendem a apostar em projetos maiores, mais sonantes, como grandes instalações de energias renováveis, barragens ou centrais nucleares, visando alcançar resultados mais rápidos. Mas o que os dados mostram é que essa estratégia tem muitos riscos (financeiros, aceitação, etc.). A disseminação de tecnologias de menor escala – como termóstatos inteligentes, bicicletas elétricas, táxis compartilhados ou bombas de calor – é mais eficiente na redução de CO2 do que grandes tecnologias energéticas, dando assim um contributo mais rápido para o cumprimento das metas climáticas globais definidas pelo Acordo de Paris. Incorporar estas soluções nas residências, tal como mudar as rotinas diárias de milhares de milhões de pessoas em todo o mundo, irá facilitar os progressos sem ser preciso recorrer a grandes infraestruturas que custam quantidades imensas de dinheiro.



A disseminação de tecnologias de menor escala – como termóstatos inteligentes, bicicletas elétricas, táxis compartilhados ou bombas de calor – é mais eficiente na redução de CO2 do que grandes tecnologias energéticas



Como chegaram a essa conclusão? Que dados analisaram? Que metodologias utilizaram?

A investigação baseia-se em meta-análises exaustivas de bases de dados existentes, previamente publicadas em fontes credíveis (Agência Internacional de Energia e da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos.), ou em artigos e relatórios com revisão por pares (peer­review), recolha de dados primários, num trabalho de oito anos. Os estudos foram desenvolvidos por uma equipa em que participo com o Prof. Arnulf Grubler, do IIASA – International Institute for Applied Systems Analysis (Áustria), e o Prof. Charlie Wilson, do Tyndal Centre for Climate Change Research (Reino Unido). Construímos uma grande base de dados por dimensões relevantes para o estudo dos efeitos do tamanho na difusão, uma escolha determinada pela experiência do grupo no estudo da difusão de inovações. As tecnologias foram escolhidas segundo critérios de: economia, viabilidade, suficiência e falsificação (teórica). Foram realizadas análises simples de correlações, mas que fornecem conclusões robustas. Os argumentos a favor da pequena escala datam de pelo menos 1970, quando Schumacher, Lovins e outros argumentaram a favor das tecnologias distribuídas e de menor escala, tendo em conta os seus benefícios mais descentralizados e as vantagens em termos de acessibilidade e de rentabilidade.


Este trabalho surge na sequência de outros que tem vindo a realizar na mesma área. Fale-me um pouco desse conjunto de trabalhos?

Os trabalhos mais diretamente relacionados com este foram o projeto LED e um outro sobre a fase formativa de inovações tecnológicas. Desenvolvemos um cenário de muito baixa procura de energia (LED do acrónimo em inglês “Low Energy Demand”), que diminui o tamanho do sistema energético mundial em 2050 e assim resolve mais facilmente os desafios de descarbonização, sem perda de qualidade de vida e com acesso aos serviços energéticos nos países mais pobres. O conceito LED parte da constatação de que uma unidade economizada no consumo de energia corresponde a uma economia de mais de três unidades na produção de energia, consequência de menores perdas durante as sucessivas conversões energéticas na cadeia de valor. Essa alavanca (da redução do consumo de energia), potenciada pela digitalização e pela desmaterialização em curso (por exemplo, com o recurso a smartphones que substituem o uso de dezenas de aparelhos como o alarme, o GPS, etc.), permite projetar alterações muito significativas (redução) no sistema energético sem diminuição na provisão dos serviços essenciais. O resultado do projeto LED foi publicado na Nature Energy, em 2018, e foi realmente inovador no debate científico, porque levou a um basculamento da lógica vigente centrada nas fontes de produção de energia primária (renováveis, petróleo, carvão, nuclear, etc.) para uma outra centrada no fornecimento de serviços energéticos (transporte/mobilidade, edifícios, bens manufaturados e eletrodomésticos, etc.). No final, o que interessa é o serviço que a energia proporciona (mover, aquecer/arrefecer, força/trabalho, etc.) e não a energia que está por detrás desse serviço (por exemplo, cinco litros de gasolina), certo? Este tornou-se num dos cenários de referência do relatório especial Aquecimento Global de 1,5 ºC, do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), em 2018. O outro trabalho estimou a duração da fase formativa de uma série de inovações tecnológicas marcantes, sobretudo do séc. XX, quer da produção (centrais elétricas a gás, refinarias…), quer do uso de energia (bicicletas, carros, telemóveis…). O estudo concluiu que as tecnologias precisam em média de cerca de 20 anos para, a partir do primeiro ano de produção ininterrupta, fazerem descolar as vendas e começarem a produzir algum impacto. O artigo mostra igualmente que, em determinadas situações, esse período pode ser mais curto, nomeadamente se a tecnologia for uma clara substituta de uma tecnologia existente (por exemplo, as centrais a gás natural que substituíram as centrais a carvão). Mostra ainda os limites de algumas estratégias que pretendem resolver o problema da descarbonização numa janela temporal de menos de 20 anos com tecnologias que ainda nem sequer chegaram à comercialização.


Que apreciação faz das políticas, especialmente europeias e portugueses, para a descarbonização?

O Pacto Verde (Green Deal), da nova Comissão Europeia, a qual coloca a questão climática no centro da sua ação, demonstra uma grande consciencialização e vontade de resolver o problema. A Europa quer cortar mais de metade (50-55%) das emissões até 2030 e atingir a neutralidade carbónica em 2050, em linha com o que protagoniza o relatório especial 1.5 ºC do IPCC. Com mil milhões de euros em dez anos, a UE espera libertar os meios para responder a um problema que é cada vez mais uma prioridade dos cidadãos, em particular dos mais jovens (cf. o Eurobarómetro dos últimos meses). Persistem questões sobre a aplicabilidade deste programa, nomeadamente no que toca à gestão da transição e da aceitação social, do impacto nos investimentos privados e nos efeitos na competitividade internacional. Portugal, em linha com a tendência na Europa, aumentou recentemente as suas metas de redução das emissões de gases de efeito de estufa para entre -45 e -55% até 2030 em relação a 2005 (PNEC 2030), e para alcançar a neutralidade carbónica em 2050 (RNC 2050). Na prática, há motivos para preocupação, porque, por exemplo, num setor importante como o dos transportes, que tem de reduzir as emissões em 40% em menos de 10 anos, existem iniciativas interessantes, nomeadamente em Lisboa com a ideia de limitação do tráfego automóvel no centro, mas vejo progressos muito lentos no resto do país e, além disso, tendências contraditórias: os transportes públicos ainda não são suficientemente atrativos face ao transporte individual; há poucos incentivos à diminuição das deslocações (embora a pandemia tenha feito aumentar o teletrabalho, mas é cedo para aferir se se trata de algo de duradouro); o crescimento da eletrificação automóvel, mas com a crescente importação de viaturas antigas mais poluentes; uma ferrovia com muitas limitações fora das áreas de Lisboa, Porto e Coimbra. A tudo isto junta-se o projeto do novo aeroporto de Lisboa, que irá contribuir para o aumento das emissões. Se o aeroporto é mesmo tão urgente, por que razão ninguém – como presidentes de câmara do interior – pede medidas de mitigação do aumento das emissões, como por exemplo um investimento reforçado na qualidade e expansão da ferrovia (eletrificada) em Portugal? A aceitação social é importante, como vimos no episódio da substituição do diesel, num país em que tem cerca de metade da frota automóvel com esse combustível e a sua principal fábrica ainda está muito dependente de uma motorização a descontinuar (gasóleo). Não será com a pressão de «ou ganha um carro elétrico para produzir, ou fecha dentro de 2-3 anos”, como declarado recentemente pelo diretor da PSA em Mangualde, que se conseguirá resolver o problema com a Autoeuropa. Isso requererá começar a pensar desde já na reformulação das cadeias de fornecimento e em particular na adequação do cluster auto em Portugal para se orientar mais para a eletrificação automóvel. Em suma, o panorama setorial nacional é, até ver, cinzento.


As metas fixadas internacionalmente para a descarbonização são realizáveis?

Sim, tal como está definido no nosso cenário LED. A apresentação mundial do cenário ocorreu no Iscte e chamámos os departamentos potencialmente interessados do Ministério do Ambiente, assim como os responsáveis pela elaboração do Roteiro para a Neutralidade Carbónica (RNC) de modo a assegurar que a mensagem passava a quem teria eventualmente interesse que passasse.


Como se interessou por estas áreas?

Quando fiz o mestrado de economia política internacional na Universidade de Grenoble, optei pela vertente da sustentabilidade. Fiquei logo apaixonado pelas questões ligadas à energia, alterações climáticas e políticas de ciência e tecnologia que são grandes desafios societais que irão estruturar o futuro da humanidade.



Há motivos de preocupação sobre a capacidade de Portugal atingir a neutralidade carbónica em 2050



Tem estado envolvido em projetos transnacionais de investigação. Deriva da sua formação em universidades estrangeiras?

De certa forma, sim. Depois da licenciatura em Economia na FEP (U.Porto), fui para a Universidade de Grenoble (onde tinha feito o 4.º ano em Erasmus) para fazer o mestrado. Concluída essa fase, recebi uma bolsa de doutoramento do ministério da educação francês, que se revelou crucial para a elaboração da tese. Durante o doutoramento, passei o 2.º ano no Institute of Transportation Studies da Universidade da Califórnia, em Davis, sob a orientação de uma especialista reconhecida em infraestruturas energéticas, particularmente do hidrogénio (Prof. Joan Ogden). Em 2010, concluí o doutoramento sobre os desafios ao desenvolvimento de uma economia do hidrogénio, quando ainda havia muita incerteza em relação a este tema, num laboratório com tradição na área da energia e políticas energéticas, que pertence ao centro nacional da investigação científica gaulesa ou CNRS. Tive a sorte de ser um dos últimos doutorandos do Prof. Jean-Pierre Angelier, um especialista francês em organização das indústrias de redes energéticas como da eletricidade e do gás natural. Mais tarde, obtive uma bolsa de pós-doutoramento no IIASA, um dos principais centros de investigação mundial na área da tecnologia, inovação e estudos climáticos. Tive a sorte de ser orientado pelo Prof. Arnulf Grübler, uma referência mundial nessas matérias e com quem continuei depois a colaborar. Quando regressei a Portugal, em 2012, iniciei uma investigação pós-doutoral no Dinâmia’Cet e por essa via com vínculo ao Iscte, sob a orientação da Prof. Margarida Fontes, acerca da evolução da capacidade nacional de adoção de inovações tecnológicas da energia. Desde então que colaboramos regularmente em múltiplas investigações (difusão da energia eólica em Portugal, padrões e fatores de difusão espacial, mudança transformadora no setor do oceano). Em 2015 e 2016, realizei um trabalho de investigação na Harvard Kennedy School, onde trabalhei com Henry Lee e Laura Diaz Anadon, sobre políticas de ciência e tecnologia para a sustentabilidade e, mais concretamente, sobre as dinâmicas da fase formativa das tecnologias. Em 2018, tornei-me investigado contratado do Iscte.


Muito do seu trabalho é realizado em equipas internacionais. Descreva-nos o ambiente desse trabalho.

Recordo muitas vezes um conselho que me deram em Harvard: a investigação já é uma profissão tão solitária, que devemos colaborar com pessoas das quais pessoalmente gostamos. As pessoas com quem trabalho são geralmente muito exigentes. Por exemplo, tenho uma longa colaboração com antigos colegas que tive no IIASA (alguns deles estão agora espalhados por outras instituições na Europa e nos EUA). É muito gratificante trabalhar com eles em tópicos fascinantes e importantes, com pessoas que se tornaram nossas amigas, mas isso também as coloca mais à vontade para serem ainda mais frontais quando as coisas não correm bem. Espírito de sacrifício e resiliência são fundamentais nesses momentos. E vontade de trabalhar também é importante. Praticamente todos os anos passo algumas semanas das férias a investigar com esse grupo. Felizmente que a família compreende a importância desse trabalho, apoia e por vezes também entra na dinâmica. É uma interação permanente, por vezes diária, a maioria das vezes por email ou teleconferência.


Considera que os investigadores das áreas das ciências sociais influenciam, ou deveriam influenciar, as decisões políticas? Qual a sua experiência nessa matéria?

O principal problema é que, muitas vezes, a decisão política é tomada primeiro e só depois vêm os estudos. E isso acontece em vários contextos. Temos de olhar para os melhores exemplos, dos países mais ricos como os EUA, Reino Unido ou Alemanha, nos quais o debate para a aprovação de leis está geralmente associado à publicação de algum estudo. É muito gratificante fazer investigações relevantes com capacidade de influenciar as políticas e mudar alguma coisa na realidade. Mostra a utilidade do que fazemos. Mas não devemos ficar reféns da vontade de querer aparecer ou de mudar as políticas. Há investigações que fiz, como a da fase formativa da energia, que hoje têm uma mensagem muito forte para as políticas mas que durante os anos em que trabalhei nelas não se vislumbrava essa aplicabilidade. A diferença é que eu acreditava que estava a lidar com um tópico estimulante e importante e fui trabalhando nele ao longo do tempo, motivado pela dificuldade do desafio e sem pensar nas implicações. Mas há casos em que temos de forçar para dar a conhecer os resultados aos decisores. Aconteceu, por exemplo, com o LED. Fizemos uma apresentação em Viseu, com os coautores, e o presidente da câmara, Almeida Henriques, ficou de tal maneira interessado que, na sequência desse evento, submetemos um projeto europeu sobre gestão da procura e smart cities, em conjunto com a Câmara de Viseu. Essa disseminação aconteceu novamente com o artigo sobre a granularidade das tecnologias, na Science, neste caso por via de workshops em agências internacionais como fizemos na AIE, em dezembro. E é claro que, se aparecerem oportunidades a nível do governo central, estaremos abertos.


Como comenta o debate que surgiu nos últimos meses em Portugal sobre o hidrogénio?

O hidrogénio é uma solução emergente, com potencial para ajudar na descarbonização da economia. No entanto, o processo foi um pouco surpreendente. Em meados de 2019, o governo aprovou o roteiro para a neutralidade carbónica em 2050, no qual o hidrogénio aparece com um peso limitado no final desse período. Poucos meses mais tarde, o hidrogénio passa a ser uma grande prioridade para implementação para “amanhã”, em que se investem sete mil milhões de euros, dos quais cerca de 900 milhões saem do orçamento do estado.

Esta situação coloca pelo menos duas questões. Primeiro, justificar o investimento com o argumento de que uma parte dessa verba provem da ajuda europeia à crise pandémica não é per se suficiente, porque esse dinheiro tem um custo. E mesmo que uma parte desse investimento seja a fundo perdido, existe sempre o custo de oportunidade de deixar de ser mobilizável para outras necessidades. Imaginemos o impacto que teria na economia e no emprego se esses 900 milhões de euros fossem antes colocados na renovação do edificado ou no combate à pobreza energética. Não só traria provavelmente maiores benefícios em termos da redução das emissões carbónicas e da diminuição das importações de petróleo e gás natural, como ainda esses benefícios chegariam a mais setores da economia e a mais pessoas. Lembremo-nos das vantagens da granularidade. Em segundo lugar, há questões que também se levantam de um de um ponto de vista tecnológico. Por exemplo, o Japão optou por um apoio à instalação de pilhas combustíveis pequenas, o que permitiu a difusão de dezenas de milhares de unidades, melhorias na eficiência energética dos edifícios, o estabelecimento de competências industriais e uma divisão por quatro do preço das pilhas combustíveis no espaço de uma década. Pelo menos duas lições podem ser retiradas deste caso. Por um lado, o hidrogénio é um vetor energético muito flexível e permite múltiplas configurações; projetos mais pequenos nos edifícios, transportes, etc., podem reduzir os riscos e trazer grandes benefícios. Por outro lado, este caso alerta para o perigo de se adotar uma tecnologia emergente em grande escala (que é maioritariamente importada, sublinhe-se). Daqui a alguns anos há o risco de os portugueses terem de continuar a pagar por uma tecnologia menos eficaz e mais cara. Os poderes públicos teriam feito melhor em esclarecer de que modo as suas escolhas não comportam mais riscos para o bloqueio da transição energética a um paradigma centralizado e não prejudicam a competitividade da indústria nacional.

Em suma, a experiência indica que a pior política de ciência e tecnologia, particularmente na área da energia, é uma política inconstante do tipo “liga e desliga”. Nesse sentido é importante que os decisores recolham o mais possível todo o conhecimento existente na economia para poderem tomar decisões mais informadas e criar uma estratégia de sociedade. Isso é desenvolvimento. As universidades, em particular o Iscte, por dispor de uma série de competências críticas para a sustentabilidade nas áreas da economia, gestão, tecnologia, arquitetura, etc., tem um papel importante para auxiliar na definição das políticas. Parece-me assim que deveria haver ume esforço, de ambos as partes, para aumentar a transferência desse conhecimento. Pela nossa parte, iremos continuar a trabalhar para preparar o futuro.

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