DESIGUALDADES

AS DINAMICAS DESIGUAIS DAS VELHAS E NOVAS DESIGUALDADES

Duas gerações de investigadores em diálogo sobre um dos temas mais presentes na história do Iscte e da própria sociologia. António Firmino da Costa, professor do Departamento de Sociologia do Iscte e membro do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) e  Frederico Cantante, investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) e do Laboratório colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social (CoLabor).

Frederico Cantante, António Firmino da Costa, Revista entrecampus
Frederico Cantante, António Firmino da Costa, Revista entrecampus.


Como se interessaram pelo tema das desigualdades?

AFC O meu interesse pelo tema vem do final dos anos 1960, quando fui estudante de Engenharia no Instituto Superior Técnico. A questão das desigualdades era debatida no meio estudantil, num país pobre, deprimido, confrontado com as notícias que vinham do estrangeiro, do maio de 68, dos Estados Unidos... Os intensos debates que se seguiram ao 25 de abril, sobre as transformações democráticas, acentuaram esse interesse e foi esse ambiente que me levou para o estudo da Sociologia, no Iscte a partir de 1977. Na altura percebi que o tema das desigualdades sociais era perfeitamente central na Sociologia.

 

FC A primeira vez que tomei contacto com a questão das desigualdades foi ainda na escola primária, quando, após um incidente com materiais pedagógicos envolvendo um colega de famílias favorecidas e uma colega de etnia negra, a professora decidiu punir apenas esta. Claro que não tomei plena consciência do que aconteceu, mas aquilo mexeu comigo e contei a história em casa. No final dos anos 1990 (nasci em 1980), com a morte de Alcino Monteiro (1997), interessei-me pelo trabalho do SOS Racismo. E foi por essa altura que decidi estudar Sociologia, ainda no Ensino Secundário. Já como estudante do Iscte, houve uma disciplina que considero ter sido fundamental para consolidar a minha trajetória, que foi a Sociologia das Classes Sociais e da Estratificação, com a identificação e enquadramento teórico que faz das categorias sociais.

 

AFC A disciplina de Sociologia das Classes Sociais e da Estratificação foi muito relevante para o desenvolvimento da Sociologia em Portugal, tendo sido protagonizada pelos grandes nomes da introdução da Sociologia no nosso país. Por exemplo, Adérito Sedas Nunes, o nosso primeiro grande sociólogo, tinha realizado estudos, a partir de meados dos anos 1960, que incidiam sobre a problemática das desigualdades, sobre uma sociedade muito polarizada e a desigualdade tremenda no acesso ao Ensino Superior. Ou João Ferreira de Almeida, nome fundamental no desenvolvimento do Iscte, que foi o docente principal da disciplina e que desenvolveu investigações fundamentais sobre o tema.


Que momentos destacariam das vossas carreiras académicas, relacionados com este tema?

FC Após a conclusão dos estudos, regressei ao Algarve e participei num estudo sobre trajetos escolares e profissionais de jovens com baixas qualificações e essa investigação foi determinante para o meu percurso. O segundo momento foi a entrada no Observatório das Desigualdades, em 2008, que viria a tornar-se um polo muito importante de produção e disseminação do tema. Depois, veio a tese de doutoramento, sobre as desigualdades de rendimento, aspeto que até aí não tinha sido muito desenvolvido na Sociologia, pelo menos em Portugal, e área sobre a qual continuo a ter um interesse particular.

 

AFC Desde o início, interessei-me por dois tipos de desigualdades: uma mais estrutural, que tem a ver com as classes sociais, uma fileira de investigação muito prolongada no tempo; por outro lado, interessei-me desde muito cedo por contextos locais, nomeadamente os bairros da cidade de Lisboa, focado no seu tecido social, em que rapidamente percebi que, apesar de serem considerados bairros populares, eram atravessados por fortíssimas hierarquias sociais. Um desses estudos, realizado com Maria das Dores Guerreiro, é sobre o fado, mas trata fundamentalmente do contraste social que o próprio fado põe em evidência.

Noutro plano, tive oportunidade de desenvolver investigação sobre o tema das desigualdades, mas na educação e na ciência. No início dos anos 1980, a escola primária era profundamente desigual, e muitas crianças de origem mais pobre nem sequer conseguiam concluir esse ciclo. Era, pois, necessário estudar os bloqueios que originavam essa situação e, principalmente, a forma de os ultrapassar. Mais tarde, o primeiro grande estudo sobre a literacia da população adulta portuguesa, ou, por exemplo, as desigualdades e os trajetos no acesso no Ensino Superior. E, mais recentemente, interessei-me pelo estudo do conhecimento, da cultura científica, enquanto fator de desenvolvimento, os movimentos sociais que se geraram à volta do tema, os desequilíbrios no acesso a esse conhecimento.

Como avaliam a evolução das metodologias de investigação das desigualdades nas últimas décadas?

FC Não tenho nada a visão de que agora é que as coisas são boas... Uma parte significativa dos referentes teóricos que enquadram os estudos que se fazem na atualidade já existem há algum tempo. As metodologias continuam a ser, em boa parte, as mesmas. Em relação às estatísticas, há uma maior diversidade de fontes e de indicadores que permitem aprofundar as análises. Por exemplo, na área das desigualdades de rendimento, houve um caminho muito significativo, nos últimos anos, na análise da distribuição do rendimento, ou no seu cruzamento com outras realidades da desigualdade. Embora haja ainda um caminho importante a fazer no acesso a algumas fontes de informação, por exemplo, os dados fiscais, mesmo que anonimizados, ou os dados da Segurança Social, que permitem importantes análises longitudinais, através da reconstituição do percurso de vida dos indivíduos.

 

AFC Na Sociologia, como noutras ciências, há um corpo teórico importante que necessita da disponibilidade de dados empíricos para ser cabalmente desenvolvido. Há hoje a disponibilização de fontes, big data ou outras, que permitem um outro nível de investigação. Por exemplo, havia há tempo a perceção de que, à escala global, as desigualdades estavam em forte crescimento, após uma época, no pós-guerra, em que diminuíram. Mas só nas últimas duas décadas tivemos a disponibilização de dados e de formas de tratamento da informação que permitiram confirmar essa perceção. Diria, por outro lado, que esses progressos se deram especialmente nos macro-estudos, mas continuamos a precisar de fazer estudos mais finos, locais, de intensidade.

A digitalização teve importância nessa evolução?

FC Claro que sim. Algumas análises estatísticas mais complexas são realizadas em curto espaço de tempo. Por outro lado, o acesso às grandes quantidades de informação (big data) não deve desvalorizar a necessidade de continuarmos a fazer inquéritos e a obter dados de maior proximidade, caso contrário há o risco de a informação poder perder qualidade, pertinência analítica.

Entre meados dos anos de 1980 e 2016, o rendimento médio dos 1% do topo da distribuição global do rendimento duplicou. A parte do crescimento económico que beneficiou o grupo restrito dos 0,1% do topo é próximo da que coube a toda a metade inferior da distribuição global do rendimento

 

Existe alguma desigualdade mais relevante nos dias de hoje, em comparação, por exemplo, com a realidade de há três ou quatro décadas?

AFC Um dos aspetos mais importantes dos nossos estudos aponta, precisamente, para a impossibilidade de responder a essa questão. Há múltiplas desigualdades, que se relacionam entre si, e o isolamento de uma delas desfoca necessariamente a análise. Há desigualdades fundamentais, como sejam as económicas, as educativas, as de género, as étnico-raciais...

Uma coisa é a perceção pública, outra é a profundidade do conhecimento científico e nem sempre esses ciclos coincidem. Por exemplo, há 200 anos, ninguém iria analisar a desigualdade educativa, já que a educação era, ela própria, um sistema diminuto. E só no século XX é que as desigualdades educativas se tornaram evidentes, um problema. No início deste milénio, a generalidade da opinião pública, dos poderes e mesmo dos cientistas sociais não se aperceberam das grandes desigualdades económicas que progrediam nessa altura, e que só se evidenciaram com a crise económica e financeira de 2008. Mas há as desigualdades duradoras. As de género, por exemplo, têm milénios. As raciais, as de hierarquia de poder, idem. Mas o que é importante frisar é que nenhuma delas funcionou de forma isolada, foi sempre havendo interação entre várias dimensões de desigualdade. Por exemplo, podemos considerar como muito positiva a redução da pobreza na China, mas a verdade é que essa redução foi acompanhada por um crescente desequilíbrio na concentração de poder, o que deu a um pequeno grupo um poder desmesurado sobre o resto da população.

FC Acrescentaria aqui um aspeto relevante para compreendermos estas dinâmicas. Nas últimas décadas, ganhou peso o desequilíbrio na distribuição funcional do rendimento, ou seja, de forma generalizada, acentuou-se a assimetria entre a parte dos rendimentos do trabalho face à auferida pelo fator capital. Pensando apenas na distribuição interpessoal do rendimento, os grandes vencedores da globalização são os grupos do topo do topo. As populações dos países emergentes, nomeadamente as suas classes médias, têm também beneficiado desse processo. Existem, porém, camadas da população mundial que estão a ficar para trás, em particular as que vivem nos países mais pobres.  Parece-me importante referir também que as desigualdades a nível mundial não têm evoluído todas no mesmo sentido e ao mesmo ritmo. Por exemplo, o PNUD chamou há uns anos a atenção para o facto de existir uma maior convergência nas áreas da saúde e da educação do que ao nível do rendimento agregado.


A recente crise económico-financeira não teve efeitos negativos nesse topo do topo?

FC O que os estudos nos dizem é que, nomeadamente nos EUA, após o primeiro choque, e passado um período curto em que o rendimento dessas pessoas caiu, elas conseguiram recuperar e têm hoje níveis de rendimento ainda superiores. Em Portugal, durante os anos da crise, verificou-se que os rendimentos dos 10% do topo congelaram ou regrediram mesmo, mas os do topo do topo (nomeadamente os rendimentos salariais) mantiveram-se e voltaram a crescer.


ALGUNS INDICADORES DAS DESIGUALDADES

Desigualdades Revista Iscte 1

Desigualdades Revista Iscte 2

Quais são as consequências sociais da desigualdade, nomeadamente a de rendimento?

AFC Trata-se de algo que é perigoso, porque concentra poder excessivo num subconjunto ínfimo de pessoas, que depois influenciam de forma desmedida as decisões políticas. Este crescimento da desigualdade económica não é apenas gerador de injustiça social, o que já seria muito mau, mas tem também consequências que subvertem as instituições democráticas. A desmesurada influência política desse microgrupo é, ela própria, geradora de ainda mais desigualdade. Por exemplo, uma das primeiras medidas de Trump foi a descida brutal dos impostos dos mais ricos... No polo oposto, temos o exemplo da educação, em que a generalização do acesso, há um século nos EUA, no pós-guerra na Europa e após o 25 de abril em Portugal, tem vindo a reduzir significativamente a desigualdade. Embora, mais recentemente, quando se chegou a um certo patamar, a taxa de acesso tenha estagnado, houve como que um plafonamento, por exemplo nos EUA. Em simultâneo, gerou-se uma dinâmica social de confronto entre os que tiveram acesso e os que não tiveram e que, por isso, perderam direitos, no trabalho e nos rendimentos. Isto é uma bomba relógio social, com consequências na desativação das instituições democráticas. Paradoxalmente, as classes mais prejudicadas, perante essa disfuncionalidade, acabam por ser capturadas por dinâmicas políticas de carácter autoritário. Este é um exemplo de vários tipos de desigualdades, com dinâmicas evolutivas diferentes, que agindo em simultâneo podem ter resultados imprevistos.

FC Os conceitos de igualdade, ou desigualdade, são sempre uma construção histórica. No caso da igualdade de género fez-se um caminho importante ao nível do reconhecimento de direitos e ao nível simbólico, mas existem ainda desigualdades de rendimento e de oportunidades bastante significativas. Como há também no que respeita à igualdade no campo étnico-racial. E nem sequer precisamos de fazer grandes estudos para percebermos o que falta fazer, basta, por exemplo, olhar para a composição étnico-racial da Assembleia da República, ou para o leque de apresentadores de televisão.

Que papel tem o sociólogo na sociedade de hoje? Um mero cientista social, ou de alguma forma alguém que tenta influenciar o rumo da sociedade?

AFC O sociólogo tem a obrigação de alcançar resultados de conhecimento, tão validados quanto possível, que ajudem a conhecer melhor a sociedade. Não lhe chamaria neutralidade, mas antes objetividade. Mas o sociólogo é um ser social, com valores, opiniões, perspetivas, e obviamente esses aspetos influenciam o trabalho que faz no campo social. Há valorações éticas, cívicas e políticas que não pode pôr de parte e que acabam por o posicionar face ao seu objeto de estudo. O trabalho do sociólogo acaba muitas vezes por ser mobilizado para instrumentos de ação social ou política.

 

FC De acordo. Fazer sociologia sem investigação empírica e sem o enquadramento dos respetivos instrumentos analíticos levanta grandes problemas quanto à sua validação científica, obviamente. Como sociólogo, procuro tratar a informação com um conjunto de critérios o mais objetivos possível, partilhados por outros investigadores e que constituem o património teórico e metodológico da própria disciplina. O que é interessante, neste vaivém entre a teoria e os dados, é construir uma linguagem que seja acessível. Porque, na verdade, produzimos conteúdo científico, mas queremos que ele seja apropriado pelo espaço público, de preferência criticamente. Há uma frase que me irrita particularmente – contra factos não há argumentos – porque, perante um facto, é sempre possível argumentar, interpelar, problematizar. A meu ver, faz sentido que exista alguma continuidade entre aquilo que é a atividade de investigação do sociólogo e aquilo que é a sua intervenção no espaço público. Mas não há uma relação linear entre os resultados das pesquisas e, por exemplo, o posicionamento em relação a políticas públicas concretas.



Quais são os próximos capítulos na investigação das desigualdades?

AFC Seguramente que a Sociologia vai continuar a investigar as desigualdades económicas, e também as educativas, as discriminações de género e étnico-raciais. São desigualdades importantes e há muito trabalho para fazer.Mas há um aspeto novo, que tem a ver com a sociedade digital, nas suas múltiplas manifestações, como por exemplo no emprego. Um pouco por todo o mundo, discute-se o estatuto profissional dos trabalhadores ligados às plataformas eletrónicas, e isso tem grande impacto na organização social e, consequentemente, nas desigualdades. A grande responsabilidade dos sociólogos é analisar estes fenómenos quando eles ainda estão em aberto. Analisar o que está a acontecer, mas também as consequências alternativas, e ainda aproximarem-se da vertente da intervenção pública. Mas a questão do digital tem muitas outras consequências que importa estudar, como seja o impacto na vida quotidiana, nos perfis de consumo, na acumulação de conhecimento – à semelhança do que acontece com os rendimentos, será que menos de 1% da humanidade vai ser detentora da maior parte dos dados e, dessa forma, ter um poder desmesurado sobre os restantes? Numa certa distopia a 20 anos, podemos imaginar-nos numa sociedade muito mais desigual do que a atual, com castas digitais. Aqui, como noutras ocasiões, a análise sociológica pode ajudar a mapear as situações, mas também a equacionar as alternativas. 

 

FC A minha investigação atual passa também por aí, por conhecer o impacto do mundo digital no emprego, nas relações laborais ou nos sistemas de segurança social, por exemplo. Este fenómeno não é completamente novo, mas a sua intensidade é. Os estudos que existem revelam análises com perspetivas políticas bastante vincadas. Por exemplo, há estudos, que diria de cariz apocalíptico, que dizem que o trabalho em plataformas de tecnologia terá enormes impactos na criação de desemprego, e temos outros, mais conservadores e mais bem calibrados, que reduzem bastante esse tipo de impactos. Do ponto de vista sociológico, há já aqui matéria de reflexão sobre os campos que se formam, mas a verdadeira investigação será sobre o fenómeno em si. Nesta e noutras esferas, a desigualdade é uma dimensão central, que espero poder continuar a investigar.

 

AFC O que os sociólogos podem fazer é contribuir para que não se caia neste profetismo, seja ele mais positivo ou mais negativo, fornecendo análises pormenorizadas, poliédricas, que elenquem as diversas realidades, perspetivas e consequências previsíveis, possibilidades alternativas, que permitam aos decisores e às pessoas em geral agir de maneira informada.

OBSERVATÓRIO DAS DESIGUALDADES

O Observatório das Desigualdades dedica-se à investigação das desigualdades sociais. Para além de promover o conhecimento científico nesta área, o Observatório assume como missão a disponibilização pública de informação rigorosa e atualizada sobre o tema, numa perspetiva de cidadania e de contribuição para a fundamentação e avaliação das políticas públicas. Constitui-se, deste modo, como um instrumento de investigação científica e difusão de conhecimento.

É uma estrutura independente, criada em 2008, constituída no quadro do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (CIES), responsável pelo seu funcionamento e coordenação científica, tendo por instituições parceiras o Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (ISFLUP) e o Centro de Estudos Sociais da Universidade dos Açores (CES-UA). As atividades do Observatório são realizadas por um conjunto de investigadores que colaboram, em regime de voluntariado, com a sua equipa permanente.

Pretende estudar as desigualdades a partir de diferentes dimensões e níveis de análise, recorrendo nomeadamente à comparação internacional de indicadores estatísticos e a um conjunto alargado de estudos e pesquisas, em permanente atualização. O Observatório das Desigualdades foi membro fundador da rede europeia Inequality Watch, na qual participam observatórios análogos e outras instituições de diversos países.

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