PANDEMIA

Ficar em casa quando não há casa


Joana Pestana Lages


JOANA PESTANA LAGES

Investigadora Dinamia'CET-Iscte



Pouco se falou delas, mas as mulheres em situação de precariedade foram das que mais sofreram com a pandemia. Uma perspetiva assumidamente feminista sobre o espaço urbano

 


Como ficar em casa? Intervenções imediatas no combate à transmissão da Covid-19 em bairros precários da Área Metropolitana de Lisboa” foi um projeto de muito curta duração de resposta à pandemia. Como surgiu?

Logo no início da pandemia, tornou-se evidente que o slogan “fique em casa” não fazia qualquer sentido para quem não tinha casa, ou não tinha condições para ficar em casa. Por outro lado, os estudos exploratórios iniciais concluíram que eram as mulheres quem mais se preocupava com sua saúde e a saúde da família. Na linha dos estudos que tenho vindo a desenvolver, fazia sentido compreender e intervir na situação das mulheres em contexto de precariedade habitacional em tempos de pandemia. Ou seja, como responder a duas questões fundamentais: como ficar em casa, quando não há condições para ficar em casa? Como proteger a saúde nesse contexto extremamente adverso? Decidimos, por isso, concorrer ao concurso Gender Research 4 Covid-19, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), em articulação com a Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade, e com o apoio da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG). Fomos um dos 16 projetos selecionados.



Houve um agravamento da situação habitacional das mulheres durante a pandemia. Há uma enorme vulnerabilidade, causada pela precariedade e insegurança no emprego.



Tratou-se de um projeto de resposta rápida.

Todo este projeto foi desenvolvido em apenas quatro meses. Começou em agosto e terminou em dezembro de 2020, com um ciclo de debates. Teria sido totalmente impossível realizar este projeto em tão curto espaço de tempo, se não conhecêssemos já o terreno. Voltámos, por isso, aos locais que já conhecíamos e que considerámos paradigmáticos, em três dimensões: um bairro municipal de habitação social, o Alfredo Bensaúde, em Lisboa; outro, um bairro muito, muito precário, abarracado, as Terras da Costa, na Costa da Caparica, e o Bairro da Cova da Moura, na Amadora, de maior dimensão e onde se colocam questões de densidade, mas também onde vivem pessoas que nunca pararam durante a pandemia.


Como foi constituída a equipa?

A equipa é multidisciplinar e multi-institucional: três arquitetas; duas antropólogas; dois geógrafos, sendo que uma geógrafa é doutoranda em estudos de género; um outro doutorando em estudos de género e uma investigadora em design social. Investigadores oriundos do Iscte, da Faculdade de Arquitetura, do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, e do Centro de Estudos Sociais.


Essa configuração obedeceu a algum objetivo?

Para nós, era essencial cruzar várias dimensões: a da precariedade habitacional, do urbanismo e da arquitetura, mas também as políticas de habitação e urbanas, mais especificamente as respostas que estavam, ou não, a ser dadas em locais como estes. Uma abordagem mais etnográfica, com a qual tenho trabalhado, de compreender os lugares pela permanência, foi de enorme importância para o projeto.


Que métodos de trabalho utilizaram?

Cada vez mais, devido às restrições impostas pela pandemia, os inquéritos são realizados online. Neste caso, era essencial que esses inquéritos fossem feitos de forma presencial porque na maioria dos casos estamos a falar de pessoas que estão abaixo da linha do radar. Realizámos inquéritos a 232 mulheres, correspondendo a um universo familiar de 810 pessoas. No bairro das Terras da Costa, só não conseguimos falar com quatro mulheres, mas obviamente na Cova da Moura já foi muito diferente. Os inquéritos foram realizados em parceria com associações locais: Mulheres Sem Fronteiras (Alfredo Bensaúde), Moinho da Juventude (Cova da Moura) e Associação de Moradores (Terras da Costa). Nesses inquéritos cruzámos as dimensões da habitação, da família e da profissão, pré-Covid e durante a pandemia, sendo que a charneira foi o primeiro confinamento (março de 2020). Ficámos a saber quem perdeu o emprego, como se processou o apoio aos filhos, o crescimento da carga das tarefas domésticas e ainda o aumento do número de conflitos domésticos. Vimos, em muitos casos, famílias com diferentes configurações, pois há frequentemente um primo, ou outro parente, o que tem impacto nas questões do confinamento, como a sobrelotação.


Além dos inquéritos, houve mais trabalho de campo?

Realizámos também workshops nos vários locais, mas o agravamento da situação obrigou-nos a mudar de estratégia e apostámos nos retratos, que representam vários tipos de precariedade habitacional. São entrevistas aprofundadas a dez mulheres, desde uma mulher em condição de sem-abrigo, a outra que está na iminência de um despejo, que nos contam a sua história de vida e as respostas que encontraram em contexto de pandemia. Um dado muito perturbador é que metade desconhecia as medidas de apoio que existem, havendo também um grande desconhecimento sobre como habitar um espaço em situação de pandemia. E isso reforçou uma ideia que tínhamos inicialmente, a de fazer um manual de apoio, que já está traduzido em sete línguas. Esses manuais foram disseminados em versão digital e também numa versão impressa. Realizámos também alguns vídeos curtos, com as mesmas mensagens. 


E em termos de produção científica?

Realizámos, como estava previsto, uma publicação, mas escrita de uma forma facilmente entendível, em que a situação é mapeada, que ficou pronto quando o projeto terminou, disponível no nosso website www.comoficaremcasa.pt . Esse guia foi enviado para diversas entidades, de forma a que possam tomar medidas a partir da realidade que está ali descrita. O guia realça, nomeadamente, que as respostas mais comuns a pessoas em situação de vulnerabilidade não têm normalmente um recorte de género. As mulheres têm necessidades específicas, por exemplo, no caso das famílias monoparentais de mães com filhos cargo, cujo número é muito expressivo, têm enorme dificuldade em encontrar habitação condigna, que possam pagar. Alerta ainda para fenómenos que não são específicos da pandemia, mas que a pandemia veio expor e agravar: a turistificação, a gentrificação associada à expulsão do centro histórico, os temas que envolvem o realojamento de pessoas de etnia cigana, as dificuldades de alojamento das mulheres idosas. Contém ainda os olhares de cada um dos investigadores que estiveram ligados ao projeto.


Na identificação do problema, houve alguma conclusão que queira destacar?

Os resultados a que chegámos revelam claramente um agravamento da situação habitacional das mulheres em situação de vulnerabilidade durante a pandemia. Há uma enorme precariedade, especialmente causada pela instabilidade e insegurança no emprego. Do inquérito resulta muito evidente a prevalência e a correlação entre a precariedade laboral e a precariedade habitacional, ou seja, o medo de se ficar sem trabalho e o medo de não conseguir pagar a renda de casa. Outra evidência é que a questão da habitação volta a estar na agenda, após várias décadas em que se julgou que o problema da erradicação das ‘barracas’ estava resolvido. Temos hoje soluções de habitação que são muito precárias e totalmente indignas. Finalmente, surge uma oportunidade: o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) tem verbas significativas para investir nos problemas habitacionais deste tipo. É urgente que isso seja concretizado. Mas também é verdade que isso deve ser feito de uma forma respeitadora das práticas das pessoas e que seja potenciador das suas vivências concretas. Ou seja, que não se repitam alguns modelos de realojamento do passado, que não foram especialmente inclusivos, e que, em alguns casos, foram mesmo guetizantes. 




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V.

“O meu sonho é ficar na Costa, com um sítio para fazer a minha criação. Mas aqui a gente não manda. Manda quem sabe.”



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A.

“Querem-me tirar daqui? É já amanhã!”



Essas realidades de precariedade habitacional são específicas de determinados bairros, ou encontramo-las também, de forma descontínua, na malha das cidades?

É um fenómeno que se espalha. Embora o nosso trabalho tenha incidido naqueles bairros, alguns das nossas entrevistadas abarcam essa realidade diversa. Um deles, por exemplo, é o caso de uma mulher que nasceu e cresceu em Alfama que não conseguiu acompanhar os preços do arrendamento, foi viver para a Quinta do Ferro, na Graça, numa casa praticamente em ruínas, pela qual pagava 400 euros, e que, entretanto, foi realojada pela Proteção Civil. Ou o caso de uma mulher refugiada síria, que vive em Rio Maior, isolada com a família. O inquérito do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), de 2018, revela que é na Área Metropolitana de Lisboa que estão 55% das nossas carências habitacionais, sendo que, com o Porto, chegamos aos 76%. É, portanto, um problema dos grandes centros urbanos, apesar das carências estarem espalhadas pelo país. De referir ainda que estes números estão desatualizados, como se vê pelos novos números do programa Primeiro Direito. 


Este trabalho vai ter alguma continuidade?

Este trabalho insere-se no projeto ‘ReHOUSE – (Re)Habitar a Diversidade Urbana’, que desenvolvo no Dinamia’CET-Iscte, que deverá prolongar-se até 2026, e que se debruça sobre as questões do realojamento de grupos sociais em condições vulneráveis. Interessa-me estudar o desenho de modelos habitacionais, e como é que a habitação pode ser projetada de forma a ser inclusiva, que respeite a diferença e valorize a integração. Ou seja, o que tem de ser igual, para incluir, e o que deve ser diferente, igualmente para incluir. Usando um conceito da geografia, trata-se de criar espaços que sejam justos. Interessa-me trabalhar estes temas a partir de uma perspetiva feminista, de um olhar que coloca a ideia do cuidado no centro do desenho. 



A habitação deve ser desenhada de forma a ser inclusiva, a respeitar as diferenças e a valorizar a integração. É necessário definir o que tem de ser igual, para incluir, e o que deve ser diferente, igualmente para incluir.



De uma forma geral, estamos a fazer isso bem? Por exemplo, na Alta de Lisboa, em que se tentou cruzar vários estratos, faz sentido?

Faz todo o sentido. Trata-se, aliás, de um caso de estudo interessantíssimo. Na sua génese, estiveram vários bairros, a maioria abarracados, que já eram bastante diversos. O que falhou na Alta de Lisboa foi a gestão do tempo. Primeiro, foi tudo arrasado. Depois, construíram os edifícios de realojamento ao abrigo do Programa Especial de Realojamento (PER), no meio de nada, sem o mínimo de urbanidade. E só depois, muito devagar, (entre outras coisas porque não era possível fazer dois megaprojetos ao mesmo tempo, com a Expo’98...) foi-se construindoo resto, a habitação para a classe média. Quando chega a classe média, para fazer o social mix, já havia outra realidade no terreno. Outro fator que contribui para o insucesso foi a incapacidade de atrair jovens, devido ao preço. Não faz sentido pagar habitação cara numa zona em que não havia verdadeiramente cidade, sem infraestruturas completas, nem coerência. Apesar de tudo, há ali experiências muito interessantes, como a Associação de Valorização Ambiental da Alta de Lisboa, onde todos os mundos se cruzam. 


Como poderia ser de outra maneira?

Uma das chaves do sucesso é a participação comunitária. O modo como se inclui para encontrar soluções, de forma a que o projeto seja apropriado. Há uma ideia que acarinho que é a de que não há zonas para a habitação social. Toda a cidade deveria ser um social mix, porque toda a cidade é uma concentração de identidades múltiplas. O que vier a ser feito no futuro, a meu ver, deve respeitar as práticas, as vivências específicas de cada comunidade, mas ao mesmo tempo deve integrar na malha urbana. Em Londres, por exemplo, dedica-se uma parte das novas construções para arrendamento acessível. Sabemos que aí vão surgir os mais jovens e a classe média. Não sendo assim, geram-se zonas de separação, onde não é possível o encontro de várias realidades. E a cidade é o espaço do encontro.


Como é que uma arquiteta se interessou por estes temas de índole mais social?

Tenho estado desde sempre envolvida nos chamados projetos de investigação-ação e, na verdade, acho que não conseguiria fazer investigação de outra forma. Temas como o da precariedade habitacional, ou o da pobreza, que com ele está relacionado, são multidimensionais e estes projetos multidisciplinares são a melhor forma de os tratar. 

Mas aqui entra também o meu percurso pessoal. Voltei à academia depois de ter trabalhado em projeto. Tive a sorte de trabalhar com arquitetos que me ensinaram imenso sobre Arquitetura, em ateliers em Londres, Barcelona ou com Renzo Piano. Na academia, como na arquitetura, há muitos benefícios em trabalhar de forma multidisciplinar. No século XXI as preocupações sociais têm que fazer parte da Arquitetura. E quando falo em preocupações sociais não estou necessariamente a referir-me apenas às situações de precariedade, mas a tudo o que extravasa a forma e a imagem, desde a escolha de materiais, as questões ambientais, os temas de custo-benefício, etc. Gostaria que os estudantes de arquitetura tivessem mais contacto com esses temas, que vão para além da forma. O Iscte, pelo cruzamento que faz entre a arquitetura e as ciências sociais, é um espaço de eleição para isso. 


Consegue encontrar um momento definidor dessas opções?

Eu tenho o momento zero dessa opção. Vi, em 1996, um programa de Manuel Graça Dias, que se chamava Arquitetura sem Arquitetos, feito na periferia de Lisboa (Musgueira, Estrada Militar, etc) e achei absolutamente fascinante como as pessoas resolviam os seus problemas de alojamento e como chamavam a si próprios a responsabilidade de serem arquitetos. Os resultados iam do muito belo ao muito horrível… Ainda estava no liceu, mas eu, que sempre quis ser arquiteta, entendi ali o papel da arquiteta que gostaria de ser: gerir o potencial criativo que há em cada pessoa para resolver os seus problemas. Ali havia esse lado de resolver a necessidade de habitação, mas também questões de estética, onde não esperávamos encontrar beleza. Quando voltei à academia, já sabia que era sobre isso que queria trabalhar: o direito à habitação e esta arquitetura sem arquitetos. Hoje já não é sem arquitetos, mas interessa-me muito o papel dos arquitetos nestes contextos. 




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R.

“Eu acho que o coronavírus apareceu para nos ajudar a organizar o mundo.”



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V.

“Com 80 anos, depois de passar por muito, recebi uma carta de despejo.”

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