ANTROPOLOGIA

Etnografias em tempo(s) de crise(s)


antplimcatfrois


ANTÓNIA PEDROSO DE LIMA e CATARINA FRÓIS

Docentes Iscte

Investigadoras CRIA-Iscte



Dois projetos investigaram o impacto na vida quotidiana das medidas políticas tomadas no tempo da troica e durante a pandemia



O projectos sobre o Cuidado (Care) e o projecto sobre as políticas vividas (Livepolitics) são dois projetos que se sucedem, mas que, de certa forma, analisam um mesmo tema: o impacto de medidas governamentais na vida das pessoas e a sua capacidade de reacção/adaptação a elas. Como se articulam entre eles?

O Care foi pensado para analisar a forma como as relações de cuidar do outro (num sentido amplo) são constitutivas dos laços sociais e por isso são centrais à vida em sociedade. A nossa ideia era estudar como essa disposição para cuidar do outro é central à vida quotidiana em vários contextos sociais em Portugal (em espaço urbano ou rural, migrantes, diferentes grupos de estatuto social). Quando o projecto foi aprovado em 2012, estávamos em plena crise económico-financeira-social agravadas pelas medidas de austeridade impostas pelo governo no âmbito da interveção da troica. Desde o início da imposição das medidas restritivas (do ponto de vista social, salarial, fiscal) foi evidente que, sem o Estado social, uma grande parte das famílias portuguesas só conseguia sobreviver com ajuda de familiares, vizinhos, amigos e/ou instituições de solidariedades social. Estas ajudas são, na verdade, formas de cuidar do outro e foi isso que investigamos ao longo de 3 anos: como é que em situações de crise são as relações interpessoais de cuidado que garantem a possibilidade da vida. A pesquisa incidiu sobre várias regiões do país e sobre diferentes grupos sociais (famílias de classe média, operários e trabalhadores rurais, comunidades migrantes, reclusos, instituições). O projecto seguinte, o Livepolitics, é uma continuação da pesquisa anterior, mas com uma linha analítica centrada na política e nos seus impactos. O período em análise recua (2010-2020) de forma a entendermos os antecedentes da situação político-económica e social em Portugal. As mudanças de orientação política que se verificam em Portugal num período relativamente curto, implementaram medidas antagónicas no que diz respeito ao Estado Social, à legislação fiscal e sobre o trabalho, bem como ao investimento na saúde e educação. Estas alterações legislativas não são meras abstrações plasmadas no corpo da lei: elas têm impactos profundos nos quotidianos das pessoas.


Quais são os objetivos centrais dos dois projetos?

Antes de mais, estudar o reflexo das sucessivas medidas legislativas no quotidiano das pessoas, tentando perceber como vão construído formas para fazer face, em primeiro lugar, à crise económica, e, numa segunda instância, às mudanças legislativas que, entretanto, ocorreram. O que aconteceu à vida das pessoas? Ficaram melhor, ficaram pior, voltaram ao que eram antes da crise? Enquanto que o Cuidado se centrava no estudo do momento histórico que se estava a viver, o LivePolitics aborda toda a década que vai de 2010 a 2020, embora o tenhamos estendido a 2021 pela importância de analisar as medidas legislativas de emergência que foram tomadas devido à pandemia.



Durante o período da austeridade, a classe média perdeu qualidade de vida, perdeu as suas expectativas de um futuro estável e promissor



Como se estruturam as equipas envolvidas neste projeto?

Em ambos os projectos abordamos um amplo conjunto de temas e trabalhamos em diferentes regiões do país. Por isso constituímos equipas alargadas, muito diferente da velha ideia do trabalho de campo feito por uma só pessoa. Desta forma conseguimos fazer pesquisa etnográfica de longa duração em várias regiões do país, incidindo sobre temáticas diversas permitindo produzir conhecimento com densidade e profundidade etnográfica e, simultaneamente, uma dimensão comparativa. Temos tido a preocupação de que as nossas equipas integrem investigadores especialistas em temáticas centrais ao projecto mas também integramos estudantes de doutoramento, mestrado e por vezes de licenciatura.


O método etnográfico implica a estadia dos investigadores no terreno, mergulhar na realidade.

Sim, é aquilo a que se chama “observação participante de longa duração”. Ou seja, o antropólogo deve estar no terreno por períodos prolongados de forma a integrar-se nos quotidianos dos seus interlocutores e dessa forma perceber dimensões da vida social que não são percetíveis através de questionários ou perguntas directas que se fazem nas entrevistas. O significado da acções, das reacções, das relações, dos comportamentos, das emoções, vai muito para além do que é dito sobre eles. Perceber os sentimentos associados à experiência vivida no quotidiano, o que um olhar ou uma expressão corporal diz pode ser bem mais revelador do que uma resposta a uma pergunta, e pode mesmo contradizê-la. É esse tipo de conhecimento mais holístico e experiencial que a antropologia pretende. E atenção que este conhecimento da realidade social não é menos objetivo por não ser “quantificável”. Por exemplo, se trabalharmos com imigrantes indocumentados dificilmente será possível fazer pesquisa sem o tempo longo da construção da relação pessoal entre o investigador e os interlocutores. E é nesse estar com as pessoas nas situações que vamos percebendo como as pessoas vivem nos interstícios da legalidade. Ou quando trabalhamos sobre o impacto das medidas de austeridade nas famílias para além do identificar as condições objectivas de vida (salário, despesas mensais, dependentes, actividades mensais) tentamos perceber como as pessoas experienciam as suas condições de vida e as suas alterações são por vezes mais bem identificados nos corpos, nos silêncios, nas emoções. Por exemplo, no caso das famílias de classe média que viram os seus rendimentos profundamente reduzidos, a vergonha associada à necessidade de depender da “caridade” para sobreviver, de ter de dizer aos amigos que não podiam fazer as actividades do costume por não terem dinheiro, de não ligar os aquecimentos no inverno para não gastar electricidade, são dimensões que ficariam ausentes se recorrêssemos apenas a metodologias menos imersivas nas relações sociais que estudamos. No caso do estudo de instituições a metodologia tem de ser adaptada. Por exemplo, no estudo sobre as prisões, implica o estudo da legislação, o levantamento de documentação de várias fontes (relatórios de diversos organismos, por exemplo) e também visitas a prisões.


Como procedem? Há um guia de trabalho, ou depois de lá estarem vão definindo, conforme as circunstâncias?

As duas situações. O trabalho de etnografia implica uma relação de grande proximidade com as pessoas e ao longo de bastante tempo. Por isso é difícil saber à partida se as pessoas aceitam falar connosco e como e do que falam, se nos acolhem para as acompanhar nas suas rotinas diárias e nos diferentes espaços e percursos dos seus quotidianos, etc. Nós temos claramente definido o que queremos: perceber as múltiplas e diferentes formas de cuidar do outro, ou como se faz face às medidas legislativas impostas pelos governos. No terreno vamo-nos adaptando às situações que surgem e recorremos a diferentes metodologias. As relações de proximidade exigem tempo para serem construídas e, por vezes acontece que aquilo que pensávamos constituir o foco de interesse acaba por não o ser. Esta é uma das posturas mais interessantes da investigação em antropologia. Sabemos o que queremos investigar, mas não estreitamos à partida o foco da nossa análise. Os temas que aprofundamos são, por vezes, aqueles que o trabalho de campo mostra serem os mais relevantes. Isto foi muito claro no projecto do Cuidado, quando a crise se impôs em todas as dimensões da vida em Portugal e o mesmo se passou agora com o Livepolitics em que as medidas legislativas para fazer face à pandemia ganharam um peso imprevisível e que evidentemente fomos analisar. Se é importante para as pessoas e para as suas vidas, é importante para a nossa pesquisa.



Para saber as razões do sucesso ou falhanço de certas políticas, não bastam as estatísticas ou os dados quantitativos. Através da etnografia os antropólogos conseguem dar uma imagem do impacto concreto que as decisões políticas têm na vida das pessoas.



E a chamada classe média, como chegaram a essa realidade?

As classes médias são tradicionalmente menos estudadas pelas ciências sociais pois representam uma certa ideia “de normalidade” que parece ser menos apelativa do que estudar as exceções, as margens. Nós tentamos sempre fugir a essa ideia. No caso do projecto do Cuidado, essa posição foi decisiva pois foi evidente que o período de aplicação de fortes políticas austeritárias as afectou profundamente. Por isso, um dos terrenos de trabalho de campo foi com famílias da classe média em várias cidades portuguesas. Fomos chegando a elas através de conhecidos e de conhecidos de conhecidos – o chamado método da bola de neve – e assim conseguimos aceder a um número significativo de famílias para a pesquisa. Outras vezes encontrávamos pessoas dessas famílias nos bancos alimentares e depois seguíamos os seus casos. Encontrámos muitos casos de desemprego súbito de ambos os membros do casal e, nessas situações, as mulheres tiveram um papel mais proeminente no assegurar da sobrevivência da família, com mais frequência do que os homens aceitavam qualquer trabalho que surgisse. Há casos de famílias que, estando a recorrer aos bancos alimentares, conseguiram manter os filhos em escolas privadas ou a não deixar transparecer para os amigos a sua real situação. Estes esforços revelam as estratégias para manter um modo de vida que é constitutivo da sua identidade e que tentam manter mesmo quando perderam as condições materiais que o permitiam, tentando assim não deixaram de ser as pessoas que se sentiam ser.


Falaram do papel central das mulheres. E qual o papel dos homens?

Não podemos generalizar e chamamos a atenção para o facto de esta ideia ter de ser interseccionada com contextualizações de geração, de classe e etnicidade, mas verificamos que era mais difícil para os homens esta adaptação e esta disponibilidade para “aceitar o que aparecer” nessas situações de crise. A explicação é complexa e demorada, mas podemos referir duas dimensões. Por um lado, a permanência muito forte da ideia de que as mulheres são as principais responsáveis pelo cuidado dos filhos e da família e por isso há um peso enorme da responsabilidade moral em garantir a sobrevivência. Por isso as mulheres, mais frequentemente que os homens, tendem a não se desvincular das tarefas doméstico familiares e das responsabilidades da reprodução. Por outro lado, e em correlação com a anterior, a continuidade da ideia do homem provedor e do trabalho/profissão como elemento definidor da identidade da pessoa, imprime um sentimento de fracasso quando perdem a possibilidade de garantir esse papel constitutivo da sua identidade e verificamos, por isso, menos disponibilidade para aceitar ou ir à procura de alternativas.


O choque na classe média foi, talvez, mais forte que nas outras.

E é aqui que surgem as assimetrias. Enquanto que os reclusos, os migrantes e muitas das comunidades piscatórias que estudámos vivem historicamente e ciclicamente em situações de precaridade e crise, a classe média viu-se confrontada com uma nova realidade que lhes é nova e que quase conduz a uma crise de identidade. Desde a segunda metade do século XX generalizou-se a ideia de que o futuro é algo progressivamente melhor e que traria melhores condições de vida. De repente este modelo simbólico colapsou. Não só as famílias de classe média, que viviam cada vez com melhores condições, perderam as suas expectativas de um futuro confortável, como são confrontadas com novos e complexos processos, cujas lógicas e linguagens não só não dominam como são algo de que se querem manter afastados simbólica e identitariamente. Por exemplo, para obter apoios institucionais, as pessoas têm de fazer prova da sua pobreza, da sua precariedade, o que é sentido como uma humilhação por todas as pessoas, mas de uma forma particularmente acentuada, porque inesperada por quem nunca esperou estar nesta situação.


Têm preocupação em fazer chegar os vossos trabalhos aos decisores?

Temos, e esse é um caminho que estamos a prosseguir, que não é isento de dificuldades. Nós mostramos os trabalhos e as suas conclusões. Os decisores acham muito interessante mas nem sempre os consideram nas tomadas de decisão na medida em que os estudos antropológicos são frequentemente vistos como casuísticos, com uma escala demasiado micro ou demasiado qualitativa para serem usados na definição de políticas públicas.


E como se dá a volta a isso?

As coisas têm de ser complementares. Para saber as razões do falhanço de certas políticas, não bastam as estatísticas ou as análises mais genéricas. O trabalho do antropólogo consegue dar a imagem do conjunto, mas vai ao pormenor, mostra como as pessoas agem de facto, as motivações que estão na base das suas decisões e acções. Este tipo de conhecimento mostra bem como nem sempre as políticas definidas têm os resultados esperados. Uma mesma medida legislativa é interpretada de forma diferem por diferentes grupos sociais (seja por questões regionais, geracionais, étnicas, religiosas, de classe etc.) pelo que não se pode esperar que ela tenha o mesmo resultado em toda a população. Neste sentido os estudos antropológicos podem aportar eficiência a todo o sistema. Mas atenção, não queremos de forma alguma defender que os trabalhos em antropologia devem ter uma utilidade para o poder político ou para as definições de políticas públicas. O conhecimento de como as pessoas vivem em diferentes contextos e momentos históricos é algo importante em si mesmo. A importância do conhecimento científico é mensurável apenas pela sua utilidade ou aplicabilidade. E este é um princípio fundamental para nós e todos estamos a perder pelo facto de a obsessão com a utilidade estar a matar as ciências sociais um pouco por todo o mundo.


Como se inserem estes trabalhos na vossa carreira académica?

Antónia Pedroso Lima A minha investigação foi sempre centrada na compreensão dos quotidianos das pessoas e dos processos através dos quais construíam as suas vidas em relação com aqueles que lhes são mais próximos (familiares, amigos vizinhos) e asseguram a continuidade. Ou seja, tenho trabalhado sempre sobre a reprodução social, nesta articulação entre as relações familiar/domésticas e a dimensão económica da vida social. Este interesse cruza todos os meus projectos de investigação. Tendo começado por fazer trabalho de campo na Madragoa, o que seria um estudo de um bairro tradicional de Lisboa rapidamente se transformou numa investigação sobre os processos através dos quais as relações estabelecidas no âmbito das unidades domésticas e familiares construíam as condições de existência das pessoas e do bairro. A pesquisa sobre famílias da elite lisboeta detentoras de grandes empresas há mais de 3 gerações, que realizei para o doutoramento, centrou-se também na forma como a articulação entre relações e ideias familiares se articulam com as estratégias económicas das empresas, tornando-se um eixo primordial da continuidade dos seus grandes grupos económicos. Foi também nesta linha teórica que desenvolvi o projecto sobre relações familiares contemporâneas em Portugal e que se estruturaram os projectos de que acabamos de falar. Ou seja, toda a minha carreira académica se construiu nesta articulação entre estudos sobre relações familiares e economia, construída a partir de uma análise interseccional que cruza género, classe e gerações na reflexão sobre a reprodução social. Os projectos a que estive ligada, as disciplinas leccionei, as provas académicas que realizei, as orientações de alunos e investigadores enquadraram-se sempre nesta área teórica e temática.

Catarina Fróis O meu interesse mais genuíno é com as políticas e as leis – o impacto da legislação na vida das pessoas. Comecei por estudar a toxicodependência e o alcoolismo. Depois, dediquei-me à segurança e vigilância. Partindo daquelas marginalidades, tentei perceber que instrumentos havia para lidar com o problema. E depois fui estudar as prisões. Atualmente, estou a estudar a violência doméstica. Depois de ter falado com homens presos por crimes de violência doméstica, depois de ter falado com mulheres vítimas de violência doméstica, mas que em alguns casos eram também autoras de violência doméstica, sobretudo sobre os filhos, falta-me perceber como lidam o aparelho do estado e as organizações com esta realidade.

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