Docente Iscte
Investigadora BRU
O projeto DeSTRESS, que atualmente está a coordenar, parece particularmente adequado para um tempo em que crescentemente se associa o stress ao trabalho. Quais são os seus objetivos?
Trata-se de um projeto coordenado pelo Iscte e que envolve, além da empresa portuguesa de desenvolvimento de software Virtual Campus, diversas entidades de Espanha, Itália, Grécia, Irlanda e Polónia, com o propósito de construirmos uma ferramenta tecnológica que ajude na gestão do stress no local de trabalho. Nos estudos que já tinha realizado, e tendo em conta a literatura internacional existente, já era claro que a tecnologia é um claro indutor de stress. Num desses estudos, realizado há uns anos com uma grande multinacional, e apenas sobre a gestão do e-mail, era evidente que a necessidade de resposta a pedidos simultâneos, assim como a permanente expectativa de novos pedidos, os prazos apertados para a resposta, ou facto de se ter que lidar com diferentes fusos horários, eram causadores de grande impacto no bem-estar e na saúde dos trabalhadores. O problema agravou-se, entretanto, com a utilização mais intensiva do telemóvel e das várias plataformas de comunicação que ele permite, conduzindo àquilo a que se convencionou chamar de tecno-stress. Havendo já tanto conhecimento acumulado sobre esta matéria, importava agora pensar numa ferramenta que, de alguma forma, ajude as empresas a prevenir, ou pelo menos a reduzir, o impacto negativo desse stress. Concorremos, por isso, a um financiamento da União Europeia, que implica a transferência de conhecimento e a criação de ferramentas de formação e que é dirigido às pequenas e médias empresas (PME).
Em que estado se encontra o projeto?
O projeto, iniciado em 2019, tem três fases fundamentais. Começámos por fazer uma caracterização do estado da arte dos estudos sobre a relação entre as tecnologias e o stress. Aí verificámos que já existia um artigo de revisão sistemática da literatura, que identificava um conjunto de fatores causadores de stress, que deveriam ser considerados quando se pretende fazer prevenção. Na segunda etapa, essa informação foi utilizada para construir uma ferramenta tecnológica, que se pretende inovadora. Trata-se de um jogo – e isto parece um paradoxo –, para ser jogado online, em que, enquanto jogamos, desenvolvemos competências e aprendemos a gerir as causas do stress. Além do módulo com as instruções do jogo, há outros seis dedicados a cada uma das seis causas que identificámos como mais importantes. A seguir a esta fase, que decorre em 2021, vamos testar o jogo, junto de trabalhadores em contexto de PME, e avaliaremos a progressão de competências causada pelo jogo.
E haverá mais estratégias, além do jogo?
Uma única estratégia não é, de facto, suficiente para tratar este problema. Por isso, também temos um documento que acompanha o jogo, e que permite compreender quais são os stressores como se pode gerir cada um deles. Vamos ainda desenvolver um Guia do Facilitador, cujo objetivo é ajudar pessoas dentro das empresas a acompanharem a utilização do jogo, mas também a aplicar outras medidas. Incentivamos as empresas a desenvolverem outro tipo de medidas, por exemplo, a realização de diagnóstico e a desenvolver outras ações de prevenção importantes para a gestão do stress (por exemplo, reverem a distribuição e carga de trabalho; garantirem os meios e apoios necessários para a realização do trabalho).
O jogo é universal, ou adapta-se a cada empresa?
Essa foi uma discussão que realizámos no seio do grupo de investigação, até porque as PME são realidades muito heterogéneas. Mas a dimensão deste projeto não nos permite entrar por essa especialização. Em vez disso, elaborámos situações de trabalho que façam sentido em empresas diferentes, mas em que o uso das tecnologias seja relevante. Obviamente que o jogo não será interessante, por exemplo, para empresas agropecuárias, com escasso uso de tecnologias. A ferramenta será mais útil nas empresas de serviços, em que o uso do computador ou do telemóvel seja comum. Mas, na verdade, acabamos por usar tecnologias em todos os setores, seja na saúde, na indústria, na educação ou no turismo, pelo que a ferramenta acaba por fazer sentido num vasto leque de empresas.
A aplicação é autossuficiente, ou seja, gera resultados aplicáveis, ou esses resultados necessitam de interpretação posterior?
A ferramenta foi construída com o objetivo de fornecer toda a informação ao utilizador, quer os resultados obtidos, quer principalmente ideias do que pode melhorar e como o pode fazer. Na fase em que estamos, de construção da ferramenta, estamos a procurar evitar o fornecimento excessivo de informação, que pode tornar a aplicação pouco atrativa. Isso resolver-se-á através de estímulos visuais, por exemplo. E haverá também mecanismos de autoavaliação, realizáveis antes e após o jogo. Apesar dessa autossuficiência, o jogo deverá ser acompanhado pelo tal facilitador dentro da empresa, de forma a facilitar a transferência do conhecimento adquirido para o trabalho do dia-a-dia. O ideal é que a atividade realizada no jogo tenha consequências na vida das empresas. Nós sabemos que mesmo as ações de formação tradicionais não são facilmente transferíveis para a rotina de trabalho e isso pode não ter a ver com a aprendizagem, mas com as condições oferecidas no local de trabalho. É necessário criar esse ambiente no local de trabalho.
Quais são os fatores de stress mais relevantes, que integram o jogo.
Um bom exemplo é a sobrecarga de trabalho. Recebemos muitas solicitações para a execução de tarefas, ou tomadas de decisão, que requerem uma resposta rápida, ou que se sobrepõem a outras. Na aplicação, tentamos levar as pessoas a fazer a gestão desse tráfego de solicitações e a terem maior controlo do seu tempo. Se tiverem chefias que estejam permanentemente a impor prazos e a não dar espaço para que a pessoa tenha autonomia, a aprendizagem obtida no jogo nunca terá aplicação prática.
Outro exemplo tem a ver com a introdução de novas ferramentas tecnológicas, sem que por vezes as pessoas tenham a formação adequada. Uma das soluções poderá passar pelo apoio de outra pessoa da equipa, ou haver maior apoio tecnológico ou informático. Outro fator, atualmente muito premente, tem a ver com a invasão da vida privada pela tecnologia do trabalho, a chamada tecno-invasão. Também aqui só é possível gerirmos o nosso stress se estiverem criadas as condições no local de trabalho, se as chefias e os colegas estiverem sintonizados na gestão dos limites entre o escritório e a casa.
A questão do trabalho remoto, agora tão em voga, é abordada neste projeto?
Quando começámos o trabalho, antes da pandemia, embora já houvesse trabalho remoto, ele não tinha a relevância que veio a alcançar. A pandemia obrigou-nos a refletir e a introduzir situações em que se coloca o desafio de gerir essa interferência, mas o projeto está centrado no stress no local de trabalho, em contexto de PME.
Como funciona a vossa interação com o mundo empresarial?
O consórcio integra três universidades (Iscte, Sevilha e Verona), uma empresa (Virtual Campus) e três organizações sem fins lucrativas, das áreas da formação, ou da comunicação e disseminação. Na terceira fase do projeto, teremos ações de disseminação junto de empresas e de organismos relevantes, como a Autoridade para as Condições no Trabalho, ou técnicos de segurança e saúde. Posteriormente, os resultados do projeto também serão disseminados junto das empresas.
Apesar de não ser esse o foco, há componentes de investigação científica no projeto?
Continuamos a fazer investigação sobre este tema, noutros projetos. Neste caso concreto, havendo já conhecimento acumulado, e tendo em conta o objetivo de transferência do conhecimento para as empresas, o foco foi colocado na procura de soluções. Na entanto, o desenvolvimento e avaliação da aplicação têm importantes componentes de investigação, estando previstos estudos de investigação centrados na sua eficácia.
Que outros projetos estão em curso relacionados com este tema?
Um desses projetos, o WELLy, tem como objetivo desenvolver um programa de formação para um novo perfil de competências da pessoa a quem chamamos de gestor do bem-estar. Já fizemos uma revisão da literatura sobre as competências relevantes, identificámos objetivos de aprendizagem, e passámos a construir uma formação. As pequenas empresas que pretendam criar um melhor ambiente de trabalho poderão formar alguém para liderar esse projeto, por exemplo, alguém oriundo da área de gestão de recursos humanos. Não se trata de contratar alguém de novo, mas de encontrar alguém dentro da empresa com o perfil adequado. O produto final ficará disponível gratuitamente para as empresas.
E estão a iniciar ainda outro projeto.
Um terceiro projeto está muito no princípio, o MindLiven. Vamos analisar dois temas muito específicos com influência no stress a nível individual. O mindfulness, que em português se traduz por atenção plena, e a natureza. A utilização do mindfulness pode ser importante para que cada um de nós reduza a intensidade com que estamos a sentir algo que nos causa stress, ou até a conseguir encontrar estratégias para lidar com o problema. A Natureza tem um efeito de relaxamento, sem que a pessoa se aperceba. As imagens, odores, sons da Natureza têm um efeito de relaxamento e de acalmia, pelo que ter esse tipo de elementos nos locais de trabalho pode constituir uma ajuda. Momentos de stress podem ser resolvidos com um simples passeio no jardim. Muitos dos problemas do stress derivam da impossibilidade de relaxarmos, de descansarmos, para recomeçar mais à frente. Neste projeto, o tipo de ferramenta não foi definido à partida, até porque já há muitas aplicações, mas tentaremos que seja algo que junte as duas áreas, mindfulness e natureza. Essa é a tarefa na qual estamos agora mergulhados.
Há recetividade das empresas para este tipo de temas?
Há recetividade, mas há muita falta de conhecimento. Por exemplo, num estudo que fiz em 2013-2015 sobre riscos psicossociais, outra forma de referirmos stressores e que tem a ver com todos os aspetos do ambiente de trabalho que podem ter um impacto negativo na saúde física ou mental do trabalhador, apercebemo-nos de que tinham pouco conhecimento sobre as causas do stress e sobre como atuar para a sua prevenção. Isso foi surpreendente, porque as entidades nacionais e europeias de segurança no trabalho tinham feito, poucos anos antes, campanhas sobre o tema. Ao nível das PME, a maioria não integrava esta área nas avaliações de risco. Além disso, é importante realçar a existência desses riscos não é necessariamente um problema, mas sim a frequência e a intensidade com que ocorrem. A falta de conhecimento estendia-se à forma de obter os recursos para tratar do problema. A situação evoluiu favoravelmente, mas a própria existência dos projetos que estamos a desenvolver mostra que há ainda caminho para percorrer.