Docente Iscte
Investigador Dinamia’CET – IUL
Está a iniciar o projeto “ReARQ.IB – O Ambiente Construído como Suporte de Comunidades Resilientes e Sustentáveis: (Re)Conhecer a Arquitetura e o Desenho Urbano do Quotidiano na Península Ibérica (1939-1985)” (“Built Environment Knowledge for Resilient, Sustainable Communities: Understanding Everyday Modern Architecture and Urban Design in the Iberian Peninsula (1939-1985)”). Este projeto recebeu uma bolsa Starting Grant do European Research Council (ERC), no valor de 1,5 milhões de euros. Quer explicar-nos do que se trata?
Este projeto estrutura-se em torno de três eixos. Em primeiro lugar, a sustentabilidade. Normalmente, associamos este conceito aos bens consumíveis, mas a produção do ambiente construído, a utilização de recursos, também tem um impacto muito grande na sustentabilidade. Se a construção em betão fosse um país, seria o terceiro maior emissor de carbono do mundo, a seguir aos EUA e à China. A juntar a isso há ainda o consumo de água potável: 10% da água potável de todo o mundo é utilizada para a produção de betão. E, na verdade, naquilo a que se convencionou chamar de mundo desenvolvido, temos as necessidades de novas construções substancialmente resolvidas pelo parque edificado que foi sendo realizado nos últimos séculos: o maior problema é o da sua manutenção. Em Portugal, os Censos dizem-nos que, entre 1946 e 1990, foram construídos 55% dos edifícios existentes. À escala global, no século XX construi-se mais do que no resto da história da Humanidade. Muita dessa construção ainda existe, mas está subaproveitada, em degradação, ou com uso inadequado. Se quisermos moderar o consumo dos recursos, seja o betão, a pedra, a madeira, ou outros, devemos olhar para o parque edificado e tentar perceber o que poderemos utilizar. Até porque a maior parte desse edificado não apresenta ainda uma razão forte para ser eliminado, e cada um desses edifícios contém, desde que foi erguido, uma quantidade da chamada ‘energia incorporada’ (embodied energy) que importa manter e valorizar.
E o segundo eixo?
Outro fator que orienta o projeto tem a ver com a resiliência das comunidades, que devem saber adaptar-se às circunstâncias, tendo a consciência de que os recursos financeiros são cada vez mais escassos. Em todo o mundo, e também em Portugal, há uma vontade crescente de intervenção por parte das comunidades. Querem ter uma palavra a dizer sobre o que se passa à sua volta. Em Portugal, em especial nas cidades, mas também em algumas comunidades de pequena dimensão, temos já muitos bons exemplos de movimentos de base que intervêm, através de associações, iniciativas cívicas, umas mais formais que outras. Isso aconteceu, por exemplo, e falando apenas de Lisboa, com o projeto de construção de uma torre na Avenida Almirante Reis, com o Martim Moniz, ou com a Tapada das Necessidades. São exemplos de como as comunidades locais têm cada vez mais consciência da possibilidade de intervir. A questão que se coloca é: o que podem fazer os especialistas (arquitetos, engenheiros, paisagistas, geógrafos...) para que essas comunidades intervenham de forma informada, e mais eficaz? Como fazer chegar informação de qualidade, sobre estes edifícios e espaços urbanos, a essas comunidades? Esse trabalho de partilha de informação já se faz em relação ao património considerado nobre, mas tem sido inexistente quanto aos edifícios de todos os dias, que têm uma função mais utilitária: o que eu chamo de “Arquitetura de Necessidade” ou de proximidade, equipamentos de utilização coletiva como sejam as escolas, os postos de saúde, os lares, as estruturas do mais variado tipo, muitas das quais foram sendo abandonadas, como as estações dos correios, os postos da Guarda Fiscal, as casas dos cantoneiros. E, claro, a habitação, especialmente a habitação apoiada com fundos públicos para colmatar necessidades urgentes. São edifícios para os quais as pessoas, incluindo os arquitetos, não olham, mas que constituem 99% do ambiente construído em que vivemos. E aqui será necessário abandonar as qualificações de património de qualidade e de património indiferenciado. A ideia é suspendermos esse tipo de classificação e olharmos para o que nos rodeia e tentarmos perceber como é que, com mais e melhor informação e contando uma história sobre esses edifícios, podermos capacitar as comunidades a agir sobre o que têm.
E, por último...
O terceiro eixo deste projeto é mais interno à disciplina da arquitetura, à sua cultura e história. Em Portugal, em especial nas últimas quatro décadas, há uma certa obsessão da cultura arquitetónica com uma determinada narrativa da arquitetura e com os seus pontos altos. Ou seja, há uma visão auto-celebratória, mas que tem o efeito muito pernicioso de impedir os arquitetos de comunicarem com as comunidades. Para as comunidades, a arquitetura é uma coisa para as pessoas que têm poder financeiro, ou que está ligada a quem tem poder político, a iniciativas de governos ou câmaras municipais, por exemplo. A proposta deste projeto é afirmar que tudo é arquitetura, mesmo o edifício sem história, ali ao lado – ou seja, que ela está muito mais próxima de nós do que, muitas vezes, pensamos. Se a arquitetura serve ou não os seus propósitos é uma questão, se tem determinadas ambições estéticas é outra questão, que pode ser tratada, mas isso não nos deve impedir de estudar toda a realidade. Queremos recentrar a discussão da arquitetura, não no cânone de grandes obras e grandes mestres, mas naquilo que nos rodeia.
O projeto vai desenvolver-se em zonas específicas, ou há a tentação de fazer um mapeamento mais vasto?
Há essa tentação… Mas o problema é que o projeto se desenvolve apenas por cinco ano e somos só seis investigadores. Obviamente, vamos trabalhar uma amostra, que abarca 45 comunidades, em Portugal e no centro-sul de Espanha. A nossa proposta é trabalharmos muito estreitamente com as comunidades, numa perspetiva de ciência cidadã e ciência participada. As organizações locais, sejam associações, grupos, misericórdias, juntas de freguesia, têm uma capacidade de recolher elementos no local que nós não temos. Queremos integrar esses contributos.
Como são constituídas as equipas?
A equipa do projeto é constituída por seis pessoas, que se dividem em três grupos, sendo que cada grupo deverá ter sempre um arquiteto ou especialista na história da arquitetura, e alguém mais especializado nas ciências sociais, com experiência de interação com as comunidades. A nossa ideia é que a arquitetura tenha aqui algo a dar e queremos levar essa intenção ao máximo, através de uma revisão de conceitos, de um auto-questionamento e capacidade de construir novos conceitos. Queremos contribuir para uma movimentação da arquitetura nesse sentido.
Porque escolheram estas datas, ou seja, entre 1939 e 1985?
Tem de haver algum pragmatismo, visto que o projeto tem uma forte componente heurística, pretendemos ir aos arquivos – muitos deles, locais e não facilmente acessíveis – estudar a história dos edifícios. Daí que tenhamos de balizar a quantidade de objetos a estudar. Decidimos começar em 1939, fim da Guerra Civil em Espanha e ano em que ali se instituiu um regime político similar ao que já havia em Portugal desde 1933. Isto é importante porque estes países têm planos de infraestruturação com muitos paralelos, que aliás estão muito pouco estudados. A data final é a de entrada de ambos os países na União Europeia. Este período corresponde a uma urbanização explosiva, por exemplo, em Lisboa e no Porto, nos anos 1950 e 60, tendo acontecido o mesmo em Espanha, a que se seguiu outra vaga de construção motivada pelo turismo. Ou seja, meio século de construção de edifícios, basicamente em betão armado, que, na sua quase totalidade, ainda estão em boas condições de utilização e cuja estrutura deve ter uma vida prolongada. A partir dos anos 90, com a entrada dos fundos europeus, há uma nova explosão de construção, em ambos os países, mas esses estarão ainda a ser utilizados, maioritariamente, na sua função original.
O vosso trabalho parte de uma visão crítica do que tem sido a reabilitação urbana nos últimos anos?
A reabilitação, no sentido de utilização para fins diversos do original, é uma realidade que existe desde sempre. Uma consciência do que deve ou pode ser feito e a entrada dos arquitetos nessa realidade teve uma explosão nos últimos 40 anos. Mas isso tem incidido, especialmente, sobre o edificado mais antigo, produzido até ao século XIX, e, normalmente, associado a um sentido de “património” hoje desatualizado. Há um aspeto muito grave dos diversos mal-entendidos que envolvem a ideia de classificação e reabilitação de património é a prática de fachadismo, a preservação da camada exterior, ignorando o resto, um mal que atinge edifícios de maior ou menor antiguidade. Em Portugal, e no que respeita à arquitetura do século XX, tivemos momentos traumáticos, como o do Éden Cine-Teatro (na baixa de Lisboa). A ideia de que se pode classificar e preservar apenas uma parte, normalmente a fachada (e, no caso do Éden, a escadaria), e não entender o edifício como um todo, em nome da paisagem urbana, não é aceitável. Seria desejável uma revisão legislativa e regulamentar que contrariasse o fachadismo. O nosso projeto contempla a possibilidade de fazermos esse tipo de recomendação.
© Ricardo Costa Agarez, 2007
Casa do Povo em Moncarapacho (Olhão), Portugal. Pormenor da torre.
Projeto de arquitetura do Eng. Fernando Leitão Nogueira, 1957 (construído até 1967).
Vão fazer incidir o vosso trabalho nos grandes centros, ou em núcleos mais pequenos?
O trabalho vai ser desenvolvido, essencialmente, fora dos grandes centros, em comunidades de média ou pequena dimensão, em zonas suburbanas ou mesmo rurais, embora não excluamos as áreas metropolitanas.
As cidades portuguesas perderam, nas últimas décadas, boa parte da população no centro e ganharam nas periferias...
Precisamente por essa ideia de construir novo, em espaços livres, em vez de reaproveitar o que já existia. Existem, claro, casos de exceção, como o antigo matadouro de Torres Vedras, transformado em Centro de Artes do Carnaval, pelo arquiteto José Neves, docente do Iscte. Normalmente, quando falamos de edifícios de utilização pública, tem havido a tendência do poder autárquico de fazer novo, porque rende mais do ponto de vista político.
Um dos argumentos normalmente usados para essa opção é a ideia de que nos edifícios antigos não se conseguem condições de conforto.
As questões de conforto são muito importantes, mas talvez seja tempo de termos uma visão mais modesta das exigências que fazemos aos edifícios. Não se trata de prescindir de condições mínimas de conforto, mas perceber que o mundo, tal como está, não permite que todos os locais tenham condições ótimas de conforto. Ter janelas, para garantir ventilação cruzada, mas não ter ar condicionado, tem de ser uma opção a considerar. Na Suíça, por exemplo, já é regulada a instalação de ar condicionado e os edifícios já têm uma série de mecanismos que permitem regular a temperatura de forma natural. O “amarquisamento” radical que Portugal sofreu nos últimos 50 anos – a transformação de varandas em marquises em edifícios de apartamentos – teve consequências enormes na regulação da temperatura interior das casas e tem sido um forte promotor da instalação de ar condicionado pelas famílias. Essa é uma tendência insustentável do ponto de vista ambiental, com consumos energéticos extremos. E isto num clima que se costumava designar como “temperado”: a instalação de ar condicionado em edifícios no Brasil, na China, na India… vai ter um impacto crescente, e claramente insustentável. O aquecimento global já chegou: os últimos sete anos foram os mais quentes desde que há registos. O que a arquitetura tem de fazer, em edifícios novos e existentes, é desenvolver, com urgência, formas de proteção (resiliência) relativamente aos efeitos destas alterações vertiginosas – e não continuar a contemplar, por exemplo, fachadas envidraçadas sem sombreamento exterior, que exigem ar condicionado sem garantir conforto e salubridade do ambiente interior.
Há alguma ideia de preservar as técnicas construtivas?
É importante estudar a materialidade dos edifícios, entendê-la, e perceber o que se pode fazer com ela, sabendo nós que as materialidades não são necessariamente sagradas. Mas essa informação é fundamental para a intervenção, seja ela em que sentido for. Não estamos a falar de algo semelhante ao restauro, da preservação o mais fiel possível ao original, como é defendido por alguns agentes e organizações. Isso poderá acontecer, pontualmente, mas a ideia não é a criação de estruturas musealizadas. A transformação é essencial, mas sempre com informação. Se é necessário ampliar uma creche, por exemplo, que se amplie, respeitando (ou não) o existente, mas que se faça com toda a informação disponível sobre o que já lá está. Em alguns casos, o projeto dos edifícios até previa, inicialmente, a sua eventual ampliação, mas essa informação perdeu-se pelo caminho.
Como vão tornar essa informação acessível?
Essa informação será disponibilizada numa plataforma acessível a todos, em formatos facilmente consultáveis. Teremos os habituais resultados académicos próprios destes projetos, mas queremos também criar conteúdos para as comunidades.
Como pensa que vão as autarquias reagir a este projeto?
As autarquias serão parceiras do projeto e serão envolvidas nos 45 casos em estudo. O papel das câmaras evoluiu muito positivamente nos últimos anos. Um exemplo é o aproveitamento que está a ser feito em muitos locais das escolas primárias (dos ‘Centenários’) que, entretanto, deixaram de ter utilização. Mas as câmaras por vezes não têm informação. Em alguns casos, a informação até existe, mas as autarquias não sabem que a têm, ou que ela existe num arquivo ou depósito em Lisboa, no Porto ou em Coimbra. As nossas equipas, além de estudarem essa informação já identificada, vão complementá-la com a que sabemos existir ao nível central.
Como se enquadra este projeto no seu percurso?
Este projeto junta as pontas de uma série de fios que fui lançando ao longo do caminho. Sou formado em arquitetura, fiz sete anos de atelier e depois decidi seguir uma via académica e, no mestrado, estudei edifícios de Lisboa dos anos 50 (muitos dos quais foram “amarquisados”). Depois, trabalhei num sistema de informação para o património arquitetónico (SIPA), que atualmente está na tutela da Direção-Geral do Património Cultural. Essa experiência deu-me a certeza de que a investigação histórica é muito relevante e que há muita informação primária nos arquivos à espera de ser tratada, sendo que Portugal até tem arquivos com boa documentação, possivelmente uma herança do centralismo e controlo do Estado Novo. O doutoramento, em Londres, centrou-se no estudo da cultura arquitetónica – modernismo, regionalismo, vernáculo – no Algarve, mas já então a ideia era que um estudo de pormenor como aquele, desenvolvido muito a partir dos recursos locais, podia ser extrapolado para o resto do País, ou mesmo para contextos geográficos muito diversos. Mais recentemente, estive envolvido em projetos de investigação sobre habitação apoiada, nomeadamente na coordenação de trabalhos relacionados com o centenário das políticas públicas de habitação em Portugal (1918-2018), para o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU). E aí confirmei a enorme importância que muitos destes bairros têm em localidades por todo o País. Trata-se de habitação, alguma degradada, outra estigmatizada – como “bairro social” –, outra entretanto absorvida pela malha urbana e socialmente diversificada, que ainda hoje desempenha o seu papel e que, tal como os equipamentos de utilização coletiva que servem estas comunidades, é muito interessante e importante estudar.