HISTÓRIA

A associação de estudantes que fez oposição ao Estado Novo


Luísa T. Oliveira


LUÍSA TIAGO DE OLIVEIRA

Docente Iscte

Investigadora CIES-Iscte



Investigação sobre três décadas e meia de história da associação de estudantes do Técnico, a mais influente de Lisboa antes do 25 de abril, reunida em livro



Este é um projeto de investigação pouco comum. Como é que uma investigadora do Iscte acaba a estudar um período da vida de uma outra instituição académica, no caso o Instituto Superior Técnico, mais precisamente um período específico da vida da sua associação de estudantes?

Esta investigação corresponde a uma solicitação dos protagonistas e tem uma pré-história muito interessante. Os antigos dirigentes estudantis do Instituto Superior Técnico (IST, ou Técnico) têm uma grande proximidade e laços de solidariedade muito fortes, que se traduzem, nomeadamente, na realização de almoços de confraternização anuais. Normalmente, aproveitam essa oportunidade para fazerem colóquios, debates ou exposições. A certa altura, em 2005, dois desses dirigentes (o Fernando Valdez e o António Abreu) fizeram um CD, com uma cronologia, documentos e músicas da época, sobre a história do movimento estudantil. Essa iniciativa foi bem recebida, mas entendeu-se que era necessário uma maior sistematização e aprofundamento, pelo que decidiram fazer entrevistas aos vários protagonistas. António Firmino da Costa, antigo estudante do Técnico e professor do Iscte, que participa nesses almoços, sugeriu que tal trabalho necessitaria da intervenção de especialistas, nomeadamente de História Oral, e propôs o meu nome. Constitui-se uma espécie de grupo promotor com o Fernando Valdez, o António Mota Redol e o então Presidente do Técnico, Carlos Matos Ferreira. Numa primeira visita ao arquivo do Técnico, constatou-se que a documentação era imensa (viemos a organizar mais de 1700 caixas) não inventariadas, o que iria exigir um trabalho muito vasto. Contactei, então, Maria de Lurdes Rodrigues, que tinha feito a sua tese sobre os engenheiros do IST, e Jorge Freitas Branco, que trabalha em questões de técnica e sociedade, e decidimos tratar o assunto, de uma forma mais abrangente, não só sobre o associativismo, mas sobre o Técnico. O Jorge Freitas Branco e eu – entretanto, Maria de Lurdes Rodrigues assumir o cargo de ministra da Educação – apresentámos um grande projeto à Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), que também viria a ter financiamento do IST, no âmbito do seu centenário (2011), com a participação de meia dúzia de investigadores e de cerca de uma dezena de bolseiros de investigação. Esse projeto, desenvolvido a partir de 2007, acabou por integrar três vertentes: história do ativismo estudantil, história do Técnico e a relação entre a técnica e a sociedade. O relatório dessa investigação foi concluído em 2011 e tem cerca de duas mil páginas. Nesse relatório, sou responsável pela parte sobre o activismo estudantil de 1945 a 1980.



As associações não eram nem podiam ser eleitas com base em programas contra a Guerra Colonial, nem contra o governo, mas, na prática, as pessoas que as lideravam eram muito politizadas



E como se passa desse trabalho de investigação para o livro “O Activismo Estudantil no IST (1945-1980)”?

O objetivo da associação de estudantes (AE) sempre fora a publicação de um livro sobre um período muito rico da sua história, um ciclo especialmente marcado por uma grande politização à esquerda, uma grande combatividade, uma grande intervenção na vida social. Antes de 1945, as lutas estudantis estavam viradas para outros temas; cerca de 1980, verificou-se a mudança política, com a vitória de uma lista próxima do PSD. Estudei o ciclo entre esses marcos. Na prática, aprofundei bastante o trabalho anteriormente desenvolvido, ao qual juntei uma cronologia com muito mais entradas do que no relatório original – para a qual tive o grande contributo de António Mota Redol e de Fernando Valdez –, concluindo-se o livro com entrevistas editadas aos antigos dirigentes. O livro inclui ainda 125 fotografias, que documentam os vários períodos nele retratados.



LIVRO

livro

O Activismo Estudantil no IST (1945-1980)

Luísa Tiago de Oliveira (Org.)

Edições Fénix

Lisboa 2019



Que fontes utilizou neste trabalho?

O ponto de partida foram as 1700 caixas da associação, que foi preciso inventariar e estudar. Depois, tive acesso a muitos arquivos particulares, nomeadamente de antigos dirigentes, aos quais também fizemos as entrevistas. Finalmente, a imprensa, seja através de recortes existentes na associação, seja, por exemplo, através das próprias publicações da associação, como o “Binómio”. Houve ainda consulta a outras fontes, em menor grau, como a Torre do Tombo, ou o Arquivo da PIDE. Este trabalho resultou naquilo que podemos considerar uma outra vitória: o arquivo da associação, assim como doações entretanto feitas, estão hoje disponíveis para consulta nos serviços de arquivo do próprio IST. Houve ainda um efeito colateral: desde que esta investigação se tornou pública, surgiram propostas para estudar outras faculdades, algo que deverá merecer eventual atenção de outros investigadores.


Como se caracteriza o período anterior a 1945 na vida da AE?

É um período mais marcado pela reivindicação dos licenciados do Técnico para que lhes fosse atribuído, apenas a eles, o título de engenheiro, e não aos estudantes saídos das escolas práticas. As questões relacionadas com o estatuto do engenheiro estiveram, mesmo, na origem de algumas greves. Mas foi um período muito menos politizado.


A partir de 1945, a politização começa dentro, mas rapidamente se vira para fora.

Passa por várias fases. Por exemplo, nos anos 50, a associação do Técnico esteve na linha da frente na contestação ao decreto 40 900 (1956), que retirava autonomia às associações de estudantes. Ou seja, a ação associativa foca-se muito em temas que lhe diziam diretamente respeito. As lutas estudantis de 1962 também ainda se centram em temas da vida estudantil, no caso contra a proibição do Dia do Estudante. Trata-se de lutas inicialmente centradas em reivindicações associativas, que se tornam mais politizadas devido ao seu próprio processo de desenvolvimento e à repressão de que eram alvo pelo governo da altura. Isso conduz a uma politização mais geral nos anos que se seguem. 


Nos anos 60, as lutas estudantis já nascem politizadas?

Sim, na medida em que nas universidades se afirma uma cultura estudantil de esquerda, em reação ao clima repressivo que vigorava. É claro que as associações não eram nem podiam ser eleitas, por exemplo, com base em programas contra a Guerra Colonial, nem contra o governo, mas, na prática, as pessoas que as lideravam já eram muito politizadas. Para além disso, existiam, por exemplo, o Cine Clube Universitário, com filmes do neo-realismo italiano, uma biblioteca com livros de intelectuais de esquerda, grupos de teatro, com peças clássicas, mas outras mais de vanguarda… Um bom exemplo dessa politização foi quando José Afonso se tornou instrutor de judo da associação, uma forma de lhe dar um salário, quando foi proibido de leccionar.


Há influências estrangeiras nessa politização, algum fenómeno de imitação?

Os estudantes querem saber o que se passa com Maio de 68, mas o que conta mais é a realidade interna, da repressão, ou da Guerra Colonial. E há um momento muito marcante na história do movimento estudantil, que são as cheias de 1967. As cheias causaram uma enorme destruição a norte de Lisboa e houve um apelo para que os estudantes apoiassem as populações atingidas. Essas operações foram centralizadas na associação do Técnico. Para muita gente, incluindo estudantes, foi a primeira vez que tomaram contacto com as más condições de vida, a miséria mesmo, em que viviam milhares de pessoas. O movimento estudantil subsequente passa a ter uma grande necessidade de interagir com outros estratos sociais, nomeadamente com o chamado movimento operário. Por exemplo, os estudantes estão em greve e vão distribuir comunicados para as fábricas ou então sabem que a Carris está em greve e distribuem comunicados sobre essa greve no interior do Técnico e onde podem.



A associação era uma grande prestadora de serviços aos estudantes. Chegou a ter mais de 100 funcionários nas suas várias valências como, por exemplo, a Cantina, todo o serviço de reprografia (as chamadas Folhas) e a representação do turismo estudantil, o que os levava a fretar aviões



Qual a relação dos movimentos estudantis dessa época com os partidos políticos?

Há claramente uma articulação, sendo que o PCP é uma organização forte a influenciar a vida estudantil com altos e baixos. No princípio dos anos 60, há estudantes contestatários próximos do PCP, do que veio a ser o PS ou sem partido. A partir de 1964, surgem os maoístas, o que dá origem a várias situações em que é necessário gerir e equilibrar as várias tendências. A extrema esquerda domina na viragem para os anos 1970. Mais tarde, os comunistas voltaram a influenciar a associação, tendo o presidente da associação, Carlos Costa (PCP), sido preso e torturado, tendo a associação sido encerrada por várias vezes. A seguir ao 25 de abril, o movimento estudantil estilhaçou-se. Em 1975, houve uma enorme polémica à volta do serviço cívico estudantil, tendo chegado a haver autênticas batalhas campais entre as várias correntes, em especial entre os comunistas e os maoístas. Nas primeiras eleições após o 25 de abril, em 1976, só de maoistas há quatro listas, mais uma do PCP, outra do PS… E ganhou uma das listas maoístas, que venceria também as eleições seguintes. Até que, em 1978, Carlos Pimenta ganha a associação para o PSD.


O que distingue a associação do Técnico das de outras universidades nesse período?

Em bom rigor, não é possível termos uma resposta clara, visto que não existem muitos estudos sobre os movimentos estudantis em Portugal. Não existem, por exemplo, estudos similares a este para outras faculdades ou universidades. Existem apenas alguns estudos específicos, dos quais se destaca um sobre o movimento estudantil em Coimbra, de 1969 a 1974, de Miguel Cardina ou um de Guya Accornero, para além da visão geral e pioneira de Nuno Caiado. Da documentação que analisei, e tendo em conta o intercâmbio que foi havendo ao longo dos anos, a história da associação do atual Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) terá bastantes pontos de contacto com a do Técnico. Outras faculdades, como Medicina ou Letras, nem associação tinham em 1974, mas apenas comissões pró-associação. A associação do Técnico teve um peso muito grande no movimento estudantil.


Não é paradoxal a prevalência do associativismo nas engenharias, que imaginaríamos mais afastadas dos movimentos sociais ou da reflexão política e ideológica?

Haverá várias hipóteses explicativas. Mas a mais relevante tem a ver com a existência de uma “máquina”, com espaço próprio construído de raiz, em que na prática são grandes prestadores de serviços aos estudantes e à comunidade educativa. Chegaram a ter mais de 100 funcionários nas suas várias valências como, por exemplo, a Cantina, todo o serviço de manuais (as chamadas Folhas) e sobretudo tinham a representação do turismo estudantil, o que os levava a fretar aviões… Os dirigentes da associação tinham também que ser gestores.




TESTEMUNHOS


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Mário Lino, presidente AEIST 1964-65

Uma coisa é lutar contra o sistema para melhorar o sistema; outra coisa é: o sistema não tem melhoria, é preciso deitá-lo abaixo e fazer outro. Isso foi muito claro a partir de 62.


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Fernando Valdez, estudante 1966-1974, dirigente da AEIST

Aquela que se transformou na maior manifestação contra a Guerra Colonial saiu de junto do Técnico. Teoricamente, era uma manifestação contra a Guerra do Vietname. Era uma manifestação muito grande que foi reprimida com uma violência indescritível, porque era um assunto muito sensível para o Governo. Os polícias bateram desalmadamente, cães morderam nas pessoas, uma série de gente foi presa.


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Paula Fonseca, dirigente da AEIST 1967-1969

A Sala das Alunas tinha uns sofás e uns espelhos, era um espaço onde estavam sempre sentadas umas raparigas, por vezes a jogar cartas. Nessa sala, só entrava um homem uma vez por ano, o fotógrafo que lá ia quando a mulher do diretor ia tomar chá com aquelas meninas. Isto era uma coisa extraordinária! Esse “gineceu” foi “assaltado” durante a ocupação do Pavilhão Central e, em Reunião Geral de Alunos, foi decidido que devia ser extinta, depois de ouvidas as alunas.


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José Mariano Gago, presidente da AEIST 1969-1970

Juntaram-se muitas pessoas, rapazes e raparigas, entraram e, simbolicamente, acabaram com o ‘gineceu’ de forma engraçada, mas muito difícil de compreender por quem está de fora. Aliás, tem um significado que nenhum dos próprios protagonistas podia, na altura, compreender. Mais tarde, pensei muito nisto. Era preciso um acto simbólico na forma de agir, não era apenas entrar lá. Mas era um grito de alma.


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Carlos Costa, presidente da AEIST 1972-1974

O Técnico tinha a Associação mais poderosa financeiramente, do ponto de vista de máquinas, com instalações próprias, muitos sócios e uma Secção de viagens que lhe dava um rendimento extra. Era um pouco o ‘asilo’ das Pró-Associações e das Associações com dificuldades.


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João Cravinho, presidente da AEIST 1956-1957

O Regime, apesar de tudo, tinha consciência de que o conhecimento da repressão sobre estudantes tinha uma enorme capacidade de difusão no país. O Regime sabia que teria de dosear e de ser, como sempre foi, seletivo. Coloquialmente, se o tipo era um camponês alentejano, “meu caro amigo…”; se era advogado, já não era bem a mesma coisa. E havia casos em que se avisavam os pais de que os filhos estavam a portar-se mal ou que se deixavam “arrastar por más companhias”, a que se seguiriam “desagradáveis consequências”, a não haver mudança.

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