ENERGIA

Transição energética pode criar mais desigualdades


Susana Batel


SUSANA BATEL

Investigadora CIS-Iscte



Europa está apostada em criar zonas sustentáveis
do ponto de vista energético,
mas são reais os riscos de impactos sociais negativos



O projeto Smart-BEEjS é financiado pelo programa Marie Curie Innovative Training Networks, da Comissão Europeia. Do que se trata?

O Smart-BEEjS, acrónimo de “Human-Centric Energy Districts: Smart Value Generation by Building Efficiency and Energy Justice for Sustainable Living” – título longo, mas que sintetiza bem os objetivos e a complexidade do projeto –, cujo principal objetivo é formar 15 jovens investigadores, ao nível do doutoramento, em áreas cientificamente inovadoras, relevantes para as políticas públicas europeias. O projeto deverá resultar num conjunto de materiais e propostas destinados à sociedade, como o trabalho que apresentámos na última Noite dos Investigadores, “Energy justice starts with you” (“A justiça energética começa consigo”), em que, através de um vídeo e de um folheto, apresentamos dez sugestões muito práticas para promover a justiça energética no dia-a-dia.


Este projeto insere-se na iniciativa europeia dos Positive Energy Districts (PED).

Os PED assentam na ideia de que, até 2025, podemos criar na Europa 100 distritos energeticamente positivos, ou seja, que geram mais energia renovável do que aquela que consomem. O conceito de distrito vai desde o bairro à cidade. Em Portugal, o Iscte está a acompanhar o caso do concelho de Torres Vedras, que está a trabalhar no sentido de se tornar um PED. E isso passa por vários projetos, como seja a microgeração de energias renováveis, como painéis solares nas habitações ou ao nível dos bairros, os as mobilidades suaves e inteligentes, sistemas coletivos de arrefecimento e aquecimento das habitações, a reconstrução de edifícios com o objetivo de os tornar mais eficientes, entre outros. Amesterdão é uma das cidades-piloto desta iniciativa, encontrando-se muito avançada na tomada de medidas.

 

Esse objetivo de 2025 é razoável?

Trata-se mais de um incentivo. Será muito difícil que se atinjam as metas estabelecidas, mas já será muito positivo que se avance nos diversos objetivos.

 


Um dos nossos objetivos é evitar
que se crie uma gentrificação verde, ou seja,
que a transição energética possa criar mais
e novas exclusões


  

Como contribui o vosso projeto para a iniciativa PED?

Para que objetivos da neutralidade carbónica sejam alcançados, é necessário aplicar um conjunto de medidas técnicas e tecnológicas, infraestruturais e de planeamento, que apoiem essa transição. A nossa intervenção junta a esse conjunto de medidas mais técnicas uma perspetiva de que devem ser igualmente tidas em conta medidas sociais e políticas. Ou seja, para que haja verdadeira sustentabilidade, não basta fazer uma transição em que apenas se mudam as fontes de energia, dos fósseis para as renováveis, mas é igualmente necessário fazer mudanças em todo o sistema social. Se a mudança for meramente técnica, manter-se-ão todas as desigualdades sociais e económicas. É necessário repensar os modelos económicos e as políticas públicas, de forma a que essa transição seja sustentável e induza maior justiça social. Um dos nossos objetivos é precisamente evitar que se crie uma gentrificação verde, ou seja, que a transição energética possa criar exclusões, nomeadamente no interior das cidades. Podemos, por exemplo, fazer obras de renovação para tornar um bairro mais eficiente energeticamente, mas temos de ter em conta que, devido às dinâmicas do mercado imobiliário, essa valorização poderá ser prejudicial para as pessoas que lá vivem, já que podem não ter possibilidade de pagar os novos valores. O mesmo quando se criam zonas verdes. No projeto, tentamos estudar as consequências colaterais sociais não antecipadas e negativas destas inovações para a sustentabilidade.


Quem são os vossos interlocutores?

Ao nível académico, constituímos uma rede de seis universidades e institutos de investigação. Mas, logo na conceção do projeto, envolvemos, por exemplo, as autarquias, e mantemos relações estreitas com associações, entidades da União Europeia…

  

E as empresas de energia?

As grandes empresas de energia têm alguma dificuldade em envolver-se nestes projetos. Desde logo porque há linhas de investigação que desenvolvemos que são bastante críticas do papel dessas empresas. Temos trabalhado, por exemplo, com a Coopérnico, que é uma cooperativa de energias renováveis.


Que doutoramentos estão a ser realizados no Iscte no âmbito deste projeto?

Um dos doutoramentos debruça-se sobre o tema da pobreza energética, ou seja, o caso dos agregados familiares sem poder económico suficiente para, por exemplo, obterem conforto térmico. Portugal é, aliás, um dos países europeus que mais sofre de pobreza energética, havendo ainda a ideia de que essa situação é apenas da responsabilidade dos indivíduos. O que o pretendemos demonstrar é que não é assim e que as situações de pobreza energética resultam de um conjunto de fatores, como seja a falta de qualidade da construção, ou aspetos regulatórios dos mercados imobiliário e da eletricidade. No outro doutoramento, o trabalho incide na ideia de que a relação que as sociedades atuais permitem aos cidadãos com a energia é puramente mercantil, entre vendedores e consumidores, e estamos a tentar perceber se é possível desenvolver lógicas mais participativas, mais comunitárias e circulares, e até numa lógica de decrescimento, que promovam uma cidadania mais ativa em relação à energia.



A pobreza energética resulta de fatores sociais,
como a qualidade da construção,
ou aspetos regulatórios dos mercados imobiliário
e da eletricidade



Susana Batel



Isso poderá passar, por exemplo, por associações?

Sim. Por exemplo, no quadro da nova Diretiva sobre comunidades de energias renováveis, em cuja transposição estamos, aliás, a colaborar. Em São Luís, no Alentejo, já existe um caso de uma comunidade que está a tentar ser autossuficiente de energia renovável. Ou seja, utilizar a energia, não numa lógica comercial, de geração de lucro, mas apenas para criar bem-estar individual e coletivo, de forma local e participada.


Indivíduos ou agregados em situação de pobreza energética têm mais dificuldade na transição, estão mais limitados nas suas escolhas?

Estão mais limitados nas suas escolhas, por isso indiciar muitas vezes que estão já em situação em que não têm condições socioeconómicas diretas para investirem, por exemplo, na compra de equipamentos mais eficientes energeticamente ou na instalação de painéis solares. E a transição verde, se continuar a ser feita só numa lógica de mercado e de crescimento económico, por exemplo, com medidas como o aumento dos preços dos combustíveis fósseis, sem ter em conta as desigualdades sociais existentes, só agudizará e aumentará as situações de pobreza energética.


Como é que alguém da área da psicologia se interessa pela energia?

Tenho-me interessado por conhecer como se relacionam as pessoas com estes temas da transição verde, por exemplo, como interagem com a implantação de infraestruturas como as da energia eólica. Isto porque é frequente esse ser um tema de atrito. E comecei a perceber que, frequentemente, a implantação dessas infraestruturas, com grandes impactos psicossociais e socio-ambientais, é feita sem o envolvimento das populações. Foquei-me, então, no tema dos impactos socio-ambientais da transição verde, em que se insere o projeto Smart-BEEjS. Atualmente, estou também a coordenar um projeto exploratório financiado pela FCT sobre a hipótese de a forma pouco participativa das transições verdes estar a criar um maior afastamento e ainda maior marginalização das populações rurais, favorecendo o voto em formações políticas de extrema-direita. Esta relação extrativa com as zonas rurais, em que se extraem recursos naturais e se deixam impactos negativos sociais e ambientais, sem se envolver de forma séria nestes processos as comunidades locais, tem acontecido em Portugal com as barragens, mas também com as energias eólicas e solares, e, mais recentemente, com a exploração de lítio.

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