Doutorando Iscte
Como se interessou por este tema?
Este trabalho surgiu no âmbito do mestrado em História Moderna e Contemporânea. Pretendia centrar-me na segunda metade do século XX e em algo que tivesse a ver com a Guerra Fria e a relação entre Portugal e os Estados Unidos, porque é o período em que Portugal realinha as suas alianças geoestratégicas, privilegiando a emergente potência norte-americana, em detrimento da relação histórica com os ingleses. Acontece que esse período está bem estudado: a inserção na NATO (António José Telo), as bases americanas nos Açores (Luís Nuno Rodrigues), o Plano Marshall (Maria Fernanda Rollo), os americanos na transição (Tiago Moreira de Sá). Interessava-me algo de inédito e foi então que me recordei da RARET, com a qual tinha tido um breve contacto no serviço militar. No início da ninha pesquisa, encontrei muitos estudos americanos acerca da Radio Free Europe (RFE) e da Radio Liberty (RL), mas a RARET, o centro de emissão da Radio Free Europe, surgia sempre como nota de rodapé.
A RARET levou a uma aldeia do Ribatejo uma escola e até uma maternidade
E onde encontrou as fontes para o seu trabalho?
Maioritariamente na Hoover Institution, da Universidade de Stanford (EUA), onde estão depositados os arquivos da Radio Free Europe, da Radio Liberty e da RARET. E ainda no Vera and Donald Blinken Open Society Archives, da Central European University, onde fundamentalmente se encontram telegramas (1955 e 1975). No Hoover Institute ficaram muito agradados com a investigação, porque, apesar de terem muita documentação, não havia ainda qualquer trabalho dedicado à RARET. Foi aí que recolhi muitos documentos em formato digital. Em Portugal, é mais difícil encontrar documentação. Existe alguma, mas está dispersa, entre o Arquivo Salazar (Torre do Tombo), nos arquivos da Defesa Nacional e dos Negócios Estrangeiros, na Fundação Portuguesa das Comunicações… Além dos arquivos oficiais, socorri-me de matéria publicada em jornais regionais, do Ribatejo, antes de 1974, e nacionais, depois dessa data. A RARET é uma realidade praticamente desconhecida dos portugueses, já que apenas as pessoas dos meios (rádio ou defesa) tinham algum conhecimento.
Nos arquivos oficiais portugueses encontrou alguma documentação interessante?
A documentação que encontrei é sempre muito frágil, pouco consequente. Normalmente, são peças soltas, que podem ajudar a contextualizar, mas que fornecem pouca informação.
Este era um empreendimento secreto?
Secreto não era, mas era bastante discreto. Desde logo pela localização geográfica remota escolhida, em Glória do Ribatejo, concelho de Salvaterra de Magos. Optou-se por um dos terrenos anteriormente ponderados pela Emissora Nacional para a instalação dos emissores de ondas curtas, a Herdade de Nossa Senhora da Glória, propriedade do conde de Monte Real, que estava à venda. Nos relatórios americanos, faziam sempre notar que se trata de um terreno maior que o principado do Mónaco, de forma a que se percebesse a dimensão do projeto… Internamente, ao contrário do acordo da Base das Lajes, ou da adesão à NATO, Salazar num fez questão de capitalizar politicamente o tema da RARET. Ao regime interessava a aliança com os EUA, na medida em que permitia combater a Rússia e o comunismo no plano externo. Todavia os valores defendidos pela RFE (liberdades cívicas; democracia política; liberdade de imprensa, etc) entravam em contradição com a realidade portuguesa. Deste modo, seria contraditório o Estado Novo aliar-se aos EUA para a defesa de tais valores externamente, quando a nível interno o regime se parecia mais com a realidade dos países socialistas do que com a democracia americana. A primeira vez que os jornalistas foram convidados a visitar a RARET foi em 1969, com Marcelo Caetano.
Ao abrigo da legislação nacional, 60% do capital da empresa ficou nas mãos de portugueses, obviamente pessoas ligadas ao regime, mas sempre como operação da esfera civil. E há um aspeto muito interessante: apesar de ser comandada a partir dos Estados Unidos, eram poucos os americanos que estavam em Portugal, sendo toda a operação realizada por portugueses.
As emissões de rádio foram um instrumento de propaganda muito utilizado na Guerra Fria. A Rádio Europa Livre (RFE) foi fundada, em 1949, por um comité da sociedade civil, mas com financiamento estatal, com o objetivo de emitir para os países satélites da União Soviética.
A RFE era uma das quatro divisões do National Committe for a Free Europe (NCFE), organismo de cariz filantrópico, cuja criação se ficou à ação conjunta e combinada do Departamento de Estado e da CIA. Todo este esquema para conter o comunismo baseava-se na proposta de George Kennan “The Inauguration of Organized Political Warfare”, elaborado em abril de 1948. O financiamento de toda a operação provinha da Cruzade for Freedom, na versão oficial fornecida ao público norte-americano. Desta forma, o governo dos EUA podia estar a salvo de críticas por estar a promover emissões de radiodifusão consideradas hostis por parte dos países da Cortina de Ferro.
Dois anos depois, surgiu a Rádio Liberdade, cujas emissões se destinavam à própria URSS. Em 1976, as duas rádios fundiram-se. Entre 1949, a sede de ambas as rádios localizava-se em Munique, na Alemanha, mas, em 1995, mudou-se para Praga, capital da República Checa. Atualmente, há emissões em 27 línguas para 23 países da Europa Oriental, Ásia Central, Cáucaso e Médio Oriente.
A RARET ocupava um território do tamanho do Mónaco e emitia para toda a Europa de Leste
Quais eram os conteúdos das emissões feitas a partir de Portugal?
Sob o chapéu da RFE, havia várias emissões, em diversas línguas, conforme os países da Europa de Leste que se pretendia atingir. As emissões chegavam, via rádio, dos EUA e de Munique, na Alemanha, onde era a sede da Rádio Europa Livre, e eram então retransmitidas. Em Portugal, apenas havia alguns tradutores, aptos a fazer pequenos ajustes nas emissões, caso houvesse necessidade. Na sede da RARET, no edifício da Auto Monumental, no Areeiro, em Lisboa, havia estúdios de emissão para esses casos. Com a instalação da Deutsche Welle em Sines, a partir de 1964, a emitir para a Alemanha de Leste, e da RL a emitir para a União Soviética, a partir de Pals, na Catalunha (Espanha), a Península Ibérica assume um papel de enorme importância nas emissões de rádio para todo o Bloco de Leste.
RARET
A Guerra Fria combatida a partir da Charneca Ribatejana
Vítor Madaíl Herdeiro
Edições 70
Lisboa 2021
Qual o impacto do 25 de abril nesta operação?
Curiosamente, pouco ou nada mudou. Em 1974/75, houve uma espécie de compasso de espera na renegociação do contrato, que apenas haveria de ocorrer em 1977. Curiosamente, esse contrato tem a duração de 15 anos e extingue-se numa altura em que o Muro de Berlim já tinha caído e a União Soviética se tinha desmembrado (1992) Mesmo assim, os americanos querem renovar novamente o contrato, porque tinham a ideia de que o antigo bloco soviético ainda não estava estabilizado e, portanto, era necessário continuar a emitir. Aliás, nos anos 1990, ainda há avultados investimentos tecnológicos, com a transição para as emissões por satélite. Em 1974/75, os americanos tiveram a sorte de ter como interlocutor o capitão Tomás Rosa, uma pessoa muito pragmática, nomeado pelo primeiro-ministro Vasco Gonçalves. O mesmo Tomás Rosa que foi ministro do Trabalho, do VI Governo Provisório, e presidente da RTP. Em resultado disso, a operação nunca foi posta em causa, apesar de algumas tomadas de posição da esquerda mais radical – chegaram a falar em “ninhos de espiões” –, mas que nunca conduziram a qualquer ação. Curiosamente, naquele ambiente de 1975 são os próprios trabalhadores que vêm a Lisboa exigir a manutenção da RARET.
Após a conclusão do mestrado, continuou a trabalhar neste tema e está agora a fazer o doutoramento.
O doutoramento versa sobre o envolvimento português nas iniciativas de radiodifusão norte-americana durante a Guerra Fria (RARET 1951-1996). Estou a tratar este assunto em três níveis: o internacional, em que analiso as relações entre Portugal e os Estados Unidos e a sua relação com a RARET; o nacional, em que abordo aquilo a que se pode chamar de transferência de poder, ou seja de protagonistas portugueses dentro da RARET em 1974; e o nível local, com o impacto que a RARET teve numa pequena vila, que, de um momento para o outro, ganhou uma escola, um centro de saúde e até uma maternidade, onde nasceram 250 bebés.
A divulgação pública da sua tese de mestrado coincidiu com a exibição de uma série, Glória, na Netflix. Qual a relação entre ambos os projetos?
Quando o argumentista da série, Pedro Lopes, começou a escrever o guião, não tinha conhecimento da minha tese. Quem lha mencionou foi um dos elementos do júri da minha prova. Pedro Lopes acabou por ler a minha tese, mas a série e a tese pouco têm em comum, além de girarem à volta da RARET. A minha tese é sobre a primeira década (1951-1961) e a série passa-se na altura em que Salazar cai da cadeira (1968).