Reitora
1. O Sistema Nacional de Ciência e tecnologia em Portugal, entrou em estagnação a partir de 2011, depois de 15 anos de crescimento excecional medido pela despesa executada em atividades de I&D, pelo número de investigadores e pela produção científica.
Em 2000, José Mariano Gago, numa entrevista, perante a pergunta “Quais os principais obstáculos que podem colocar‑se ao desenvolvimento científico português nos próximos 20 anos?”, responde: (…) o risco principal é a dificuldade da persistência a longo prazo da aposta nesse desenvolvimento. Receio que seja cada vez mais difícil convencermo‑nos que é preciso continuar a lutar pelo crescimento (…). Acho que é possível que, a certa altura, a sociedade portuguesa se procure convencer que já chegou onde queria, que já não é preciso tanto esforço como no passado (…).
Estamos em 2023, chegámos a esse momento futuro, e os receios de JMG parecem estar a concretizar‑se. Assistimos à difusão da ideia de que já investimos o suficiente em investigação, já temos o número suficiente de investigadores, é necessário agora dar prioridade ao desenvolvimento da economia e dos territórios. E isto é o regresso a um passado com mais de 30 anos…
2. A publicação do Manifesto para a Ciência em Portugal, por José Mariano Gago, a organização da Conferência Europália A Ciência em Portugal, em 1991, e a criação do Ministério da Ciência em 1995, introduziram uma alteração profunda na orientação da política de ciência. Esta adquiriu o estatuto política sectorial autónoma da política de ensino superior, da política de economia e inovação, da política de planeamento e desenvolvimento do território.
Nestes termos, construir e desenvolver o sistema científico significava fazê‑lo crescer, criar massa crítica e ganhar escala. Não existiria sistema científico sem recursos humanos com formação avançada, sem recursos financeiros e sem instituições fortes, qualificadas, exigentes e internacionalizadas, sem todas as áreas de conhecimento desde as ciências fundamentais às ciências sociais e humanas, à semelhança do que se passa nos países democráticos mais desenvolvidos. A meta a alcançar para o crescimento do sistema científico foi desde início medida pela execução da despesa em I&D sobre o PIB, fixada atualmente em 3% (para a despesa pública, 1% do PIB).
Registou‑se, ao longo das últimas três décadas, um relativo consenso em torno das políticas de ciência.
Reconhece‑se hoje que a estratégia de autonomização da ciência tanto do ensino superior como da economia, do planeamento e do desenvolvimento do território, serviu eficazmente o desenvolvimento da investigação, a criação de massa crítica, a garantia da autonomia e da liberdade em ciência, a promoção equilibrada de todas as áreas científicas, a internacionalização e o aumento da produção científica com critérios internacionais.
3. O indicador do crescimento e desenvolvimento do sistema científico continua a ser a execução da despesa em I&D (universidades, estado, empresas e IPSS), altamente tributário do número de investigadores doutorados. Na série longa destes indicadores (Despesa e Investigadores) pode verificar‑se que o desenvolvimento do sistema científico, nas últimas décadas, se ancorou maioritariamente nas universidades ou em unidades de investigação no seu perímetro e no trabalho de docentes do ensino superior.
Na evolução destes indicadores pode observar‑se, a partir de 2011, primeiro um decréscimo e depois uma estagnação na despesa de I&D e no número de investigadores no conjunto do sistema científico. Em 2021, o setor do Ensino Superior executava apenas 0,56%, valor inferior ao de 2009 (0,58%). A estagnação do crescimento do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia requer que se repensem as políticas públicas de ciência visando dois objetivos: (1) continuar a trajetória de crescimento do SNCT através da afetação de recursos humanos e financeiros; (2) promover uma articulação virtuosa das políticas de ciência, as políticas de ensino superior e as políticas de economia e inovação.
4. A ausência de reflexão e de clarificação de objetivos nesta matéria constitui a principal ameaça de regressão no consenso em torno da política de ciência e de desvalorização dos progressos alcançados. No espaço de debate público, nos programas eleitorais ou de governo, não existem propostas concretas de reformas estruturais na ciência, no ensino superior ou mesmo na economia.
Porém, têm sido tomadas decisões políticas na distribuição de recursos financeiros e adotadas medidas assentes na ideia de que há um fechamento dos centros de investigação e das universidades sobre si próprias, sendo necessário investir prioritariamente no desenvolvimento dos territórios e da economia. Tais decisões têm sido concretizadas através da regionalização dos fundos europeus, associada a uma “definição de prioridades estratégicas para uma especialização inteligente”. Isto é, foi introduzido um desequilíbrio na distribuição dos recursos financeiros e de poder de decisão, desfavorável ao sistema científico e ao seu desenvolvimento.
Assiste‑se a uma espécie de subordinação das políticas de ciência e de ensino superior, às lógicas da economia e do território. Com este caminho, pode estar em risco a continuidade do desenvolvimento e consolidação do sistema científico e de ensino superior – já em estagnação – sem ganhos significativos para a economia e para os territórios.
O consenso em torno das políticas de ciência e da sua autonomização em relação às políticas de economia e inovação, não eliminou tensões passadas, que permaneceram latentes e que emergem agora.
5. A principal tensão resulta da ideia de que a articulação entre a política de ciência e a política de economia e inovação, visando a valorização e a transferência de conhecimento, a qualificação e o desenvolvimento da atividade económica, se deve concretizar através da definição de prioridades absolutas, privilegiando ou financiando apenas algumas áreas do saber.
Esta preocupação não é nova. Em 1993, a criação da ADI (atualmente ANI), teve como objetivo promover a inovação e o desenvolvimento tecnológico. Ao longo dos anos desenvolveu capacidades e competências de apoio a projetos de inovação de processos e produtos, baseados na colaboração entre centros de investigação e empresas. Nas últimas décadas, os setores da economia que mais se modernizaram devem‑no, em boa parte, à articulação que souberam estabelecer com os centros de investigação e com as universidades (ver livro de Lino Fernandes, Portugal 2015: uma segunda oportunidade? Inovação e Desenvolvimento, Gradiva).
Porém, a perceção da insuficiência dos resultados da política de inovação, as dificuldades em induzir transformações na estrutura da economia portuguesa e a modernização das empresas, têm sido geradoras de críticas, de dúvidas acerca das políticas a prosseguir para tornar mais aplicável o conhecimento e a ciência que os cientistas produzem em Portugal.
No debate público promovido no Encontro Nacional, realizado no Iscte, em dezembro de 20221, como em outros fóruns, o desenvolvimento da economia portuguesa, a alteração do padrão de especialização, o aumento da produtividade e da competitividade das empresas estão dependentes de múltiplos fatores, como sejam a dimensão das empresas, a qualidade da gestão, a qualificação dos recursos humanos e o sistema financeiro e de capitalização. A transformação estrutural e o desenvolvimento da economia portuguesa é um desafio decisivo para o país. O contributo do sistema científico para esse desígnio é sem dúvida muito importante. Por essa razão, exige‑se uma articulação entre a política de ciência e ensino superior e a política de economia. Importa, contudo, ter presente, que o contributo das instituições do ensino superior e da investigação para o desenvolvimento económico e social do país é muito abrangente e diversificado, residindo sobretudo na produção de conhecimento em todas as áreas do saber e na formação de quadros técnicos superiores licenciados, mestres e doutorados – os principais agentes de difusão e transferência de conhecimento, de mudança e de inovação na economia e na sociedade. O programa das Agendas Mobilizadoras inscrito no Programa de Recuperação e Resiliência, a criação da rede de Laboratórios Colaborativos, a formação doutoral em ambiente não académico, são exemplos de medidas de política fortemente financiadas que procuram responder ao desafio de articulação entre a ciência e a economia. Porém, o facto de neste quadro não existir qualquer programa visando a retoma do desenvolvimento e crescimento do sistema científico e simultaneamente não estarem instituídos os mecanismos ou definidos indicadores de avaliação de resultado e de impacto, suscita dúvidas sobre as orientações seguidas e o impacto negativo destas opções no desenvolvimento da ciência em Portugal.
6. A produção de conhecimento científico, de mais e melhor ciência, é hoje, como há 30 anos, o desafio mais relevante para o futuro do país. Resolver o problema da articulação entre diferentes políticas setoriais, não deve comprometer o investimento na ciência. Não será possível aplicar conhecimento se ele não tiver sido produzido. Para um desenvolvimento continuado e sustentável do sistema científico é necessário rever a articulação entre a política de ciência e de ensino superior, promovendo mudanças incrementais. Tal poderia passar por atribuir às universidades e às unidades de investigação que atuam no seu perímetro, por exemplo, mais responsabilidades e recursos financeiros que lhes permitam criar e consolidar carreiras de investigadores estáveis e permanentes, ou apoiar financeiramente áreas de investigação emergentes e estratégicas.
1 Encontro Nacional Universidade – Chave para o Futuro, realizado no Iscte – Instituto Universitário de Lisboa, em 7 de dezembro de 2022, por ocasião das comemorações dos 50 anos da reforma Veiga Simão e da criação do Iscte. A sessão dedicada ao tema “Produção de conhecimento, difusão e valorização”, contou com as intervenções de Pedro Saraiva, Ricardo Paes Mamede, Nuno Bicho, M.ª João Pires Rosa e Cláudia Cavádas.
Nota: versão resumida de texto publicado no Relatório “O Estado da Nação”, IPPS-Iscte, 2023.