DEMOCRACIA

Da democracia representativa à representação da política


João Mineiro


JOÃO MINEIRO

Investigador CRIA | Iscte – Centro em Rede de Investigação em Antropologia


“Fazer política: uma etnografia da Assembleia da República” resulta de uma investigação de doutoramento que, ao longo de três anos, mergulhou nos labirintos do parlamento, para perceber como a política é entendida por deputados, assessores, funcionários e jornalistas.



Qual foi a pergunta de partida para esta investigação?

As questões da investigação são uma construção permanente. É difícil imaginar uma pergunta colocada no início de uma investigação que seja exatamente a pergunta do final; o facto deste trabalho ser uma etnografia reflete‑se nisso. Na etnografia as perguntas vão surgindo à medida que nos vamos inserindo num determinado contexto humano, pode ser uma aldeia, uma igreja, um parlamento… No início as perguntas que eu tinha eram de natureza empírica: existe uma ideia de como o parlamento funciona, sobretudo a partir das representações mediáticas, ou da forma como o parlamento se apresenta a si próprio. Quis perceber como é que o parlamento funciona para lá dessa imagem: Quais são os espaços de trabalho formais/informais? Qual a história das pessoas que ali chegam? Como aprendem a ser deputados? Qual o papel dos funcionários ou dos jornalistas? O que é que os deputados fazem quando se deslocam para os distritos e qual o significado que atribuem a essas visitas? Quais são os espaços de bastidores e como se relacionam com os espaços mais públicos?
Estas perguntas eram pontos de partida, mas, ao longo do tempo, a reflexão foi‑se metamorfoseando numa questão central que acabou por preencher toda a tese: “Que ideia de política é construída no quotidiano de um parlamento?” Esta questão guiou, no fundo, a forma como li aquele mundo. Quando estudei a trajetória de vida dos deputados, fi‑lo com a interrogação “O que é a política para estas pessoas? Como é que a sua história de vida se relaciona com a forma como elas foram imaginando a política? Que tipo de conhecimentos são valorizados na política? Que tipo de relações são relevadas na política institucional?”
Todos temos uma ideia sobre o que é política. O livro começa mesmo com essa discussão: o que é a política para cada um de nós, em diferentes tradições teóricas, nos movimentos sociais, etc. Podemos ter conceções distintas. No parlamento constrói‑se uma ideia muito própria da política que determina quem acede ou não; quem se consegue adaptar à instituição; de que forma as pessoas se apresentam enquanto representantes públicos; como se relacionam com os cidadãos; como constroem uma fronteira entre quem está dentro e quem está fora. O trabalho incidiu também sobre os assessores, os jornalistas, os funcionários da AR e cidadãos.

 

Qual foi o método e o período abrangido no estudo?

O estudo acontece entre julho de 2015 e outubro de 2018, acompanhando três sessões legislativas, o chamado período da “geringonça”. Em termos de metodologia, parto da ideia de que a etnografia é a metodologia global da pesquisa, mas que depois se desdobra num conjunto de métodos particulares: enquadro a observação participante e não participante – uma presença prolongada junto das pessoas que ali trabalham, às vezes de uma forma mais direta, e noutras de forma mais distanciada. Um segundo método foi o job shadowing etnográfico, o que passou por acompanhar uma semana de trabalho de determinadas pessoas. Aprender o trabalho que elas fazem implica estar sentado, ao lado de alguém que está a trabalhar e a receber emails e perceber junto da pessoa quais são os critérios que usa para responder, que tipo de respostas dá, se tem ou não autonomia, como vai buscar a memória da instituição, se tem que improvisar, em resumo, aprender na prática esse trabalho – seguindo como uma sombra o trabalho das pessoas. Fiz também 134 entrevistas, algumas prolongadas no tempo, como no caso dos novos deputados. Usei estatística descritiva, sobretudo para fazer uma análise sóciodemográfica das características dos deputados. Fiz análise de media, ou seja, como é que as interações presenciais são transformadas em representação nas redes sociais e como é que tudo se processa com o papel do jornalista. Realizei também análise documental, dos diários da AR, dos regulamentos internos, dos projetos de lei. Fiz ainda retratos biográficos. No fundo, toda a metodologia foi centrada em perceber as práticas, os discursos e as relações.


Quanto aos deputados cobriu a mancha político‑ideológica do parlamento? Como foi recebido?

Um dos defeitos deste trabalho decorre de uma das vantagens do mesmo: não diferenciar partidariamente o próprio corpo de representantes. Não diferencio partidos, nem sequer revelo a identidade política das pessoas. Se não se tiver em conta a metodologia, pode‑se ficar com uma conceção homogénea dos deputados que, na verdade, são diversos. Optar por não por os nomes e não diferenciar os partidos foi uma condição sine qua non para que muitas pessoas me deixassem observar os seus gabinetes, as suas salas de trabalho, os seus emails pessoais. Isso não estava definido à partida.
Por exemplo, queria perceber as hierarquias: no parlamento há as formais, as informais, acontecem dentro dos grupos, em que há lógicas de disputa de poder, baseadas na antiguidade, no poder simbólico. As pessoas só me relataram isso na condição do anonimato. Foram ganhando confiança e como digo no livro: para um etnógrafo o mais importante é “perceber o que é um segredo numa instituição”. É algo que me está a ser contado e que é suposto não ser revelado. Não é suposto contar determinada intriga, mas sim perceber qual é o papel da intriga neste mundo social. Não divulgar a identidade das pessoas pode ser considerada uma desvantagem. A vantagem é que não termos o nome dos partidos evita reproduzir a ideia de alguns cientistas políticos sobre o partido como “atalho cognitivo”. Quando temos o nome de um partido ligado a um facto há um conjunto de pré‑conceitos que ativamos. Queria evitar isso.


O investigador também é um cidadão com ideias e interesses políticos, certamente. Na sua investigação não houve esse enviesamento? Como se protegeu?

Do ponto de vista metodológico, um etnógrafo parte do pressuposto de que o conhecimento que está a construir se baseia numa relação intersubjetiva entre quem está a observar e quem está a ser observado. Revelo coisas sobre mim às pessoas com quem estou na medida em que elas revelam coisas sobre elas mesmas, e é nesse diálogo que vamos ganhando confiança.


No parlamento as hierarquias são muito complexas, formais/informais, acontecem dentro de grupos, há lógicas de disputa de poder dentro de grupos parlamentares, baseadas na antiguidade, no poder simbólico.



Como não deixar que a identidade do investigador condicione a visão?

É multiplicar o número de pessoas com quem estamos e ter uma visão crítica da metodologia.
Acompanhei todos os partidos (CDS, PSD, PS, PAN, PCP, PEV, BE), foi difícil, nem todos têm a mesma abertura. Quando um líder parlamentar diz: “tenho meia hora para si”, só posso fazer uma entrevista diretiva e escolher bem as perguntas. Noutros casos pude fazer uma entrevista aberta, com mais tempo. É, pois, importante multiplicar protagonistas, não só em termos partidários, mas também de diversidade. Às tantas reparei que estava a ouvir quase só homens. Claro que o parlamento é tendencialmente dominado por homens, mas ainda o é mais nas direções dos grupos parlamentares e de comissões. Ao longo da investigação há momentos em que faço ponto de situação. O parlamento é muito fragmentado e estavam a escapar‑me pessoas que não pertenciam às lideranças, que não falavam no plenário, que não tinham contacto com os jornalistas. Então percebi que tinha de me focar também nos deputados anónimos, perceber o que eles fazem. Foi uma forma de evitar enviesamento inerente ao processo. Na investigação há que ser crítico com as metodologias que vamos aplicando e ir ajustando.


Contactou com culturas partidárias distintas. Encontrou semelhanças e diferenças, para lá das ideologias?

Diria que o corpo de representantes não é homogéneo, mas é coerente. Apesar de haver diversidade de posicionamentos, de histórias de vida, há características dominantes: percursos de escolaridade comuns, profissões dominantes, uma forma de relacionamento tendencialmente profissionalizada com os partidos, uma forma de entender a política no parlamento não como uma fase transitória mas como um momento de política a que se acrescentam outros, nas autarquias, nos partidos, etc. Há um polienvolvimento muito partilhado e é por isso que 54% dos deputados, quando houve eleições autárquicas, foram candidatos.
Há uma representação política multiposicional – nas autarquias, no parlamento, nos partidos, é algo muito comum. Quando procuramos saber como chegaram a deputados os percursos são parecidos e, depois, ao nível das sociabilidades, os grupos de amigos, as relações familiares, a visão do mundo, andam em torno da política. Por isso é que digo que é coerente: a política torna‑se uma dimensão referencial da vida destas pessoas.


O jornalismo político que se auto designa como elemento de escrutínio da realidade, na prática, é um elemento de construção dessa mesma realidade.


 

Os deputados mais novos têm dificuldade em inserir‑se?

Quanto mais proximidade cultural e social as pessoas têm, mais fácil é a sua chegada ali e a sua capacidade de adaptação. E é nesse sentido que digo que não são homogéneos, mas são coerentes. Houve um deputado que diz, no livro: “nós somos políticos, mas temos de ter a chave do carro no bolso, porque a qualquer momento isto pode acabar e temos de seguir viagem”. Só que ele era professor nos anos 1970 e a disciplina que dava, entretanto, já tinha mudado duas vezes; ele próprio reconhecia que já não tinha condições de voltar. Há algumas pessoas que vivem um pouco atormentadas com o que abdicaram.
O próprio ritmo que se foi intensificando com as redes sociais, com os noticiários de 24 horas, tornou a política de uma tal exigência, em termos de envolvimento, que obrigou muitas destas pessoas a abdicarem de muito, a não terem a relação com a família e amigos que gostariam, a abdicarem de hobbies pessoais, de não poderem estar em espaços públicos da mesma forma. Transparece uma amargura que é muito verdadeira.
É preciso tempo para se conquistar um estatuto dentro do parlamento. Com o fator sociocultural começa a haver um certo reconhecimento de cumplicidade, empatia, um sentimento de pertença que vai moldando a trajetória das pessoas. Há uma bolha que se constrói e é natural que as pessoas vivam nessa bolha, desligam um pouco da vida social do país – já não têm uma profissão há muitos anos, já não se dão quotidianamente com pessoas fora dali…


João Mineiro 2


Profissões Deputados
Origens Geograficas
Experiencia politica


Neste trabalho também acompanhou jornalistas parlamentares. São um corpo muito particular?

O jornalismo político que se auto designa como elemento de escrutínio da realidade, na prática, é um elemento de construção dessa mesma realidade. Ou seja, os jornalistas são parte da construção de uma determinada ideia de política, de um certo tempo que a política tem, de uma certa urgência e necessidade de hipercomunicação.
Há um episódio em que dois jornalistas se chatearam um com o outro porque tinham combinado usar a “estratégia ping‑pong” e não aconteceu. E o que é essa estratégia? Um faz um pedido de declaração a um deputado e envia a outro por whatsapp para ele pedir uma reação a outro partido, e assim sucessivamente. Quando tivessem algumas reações, juntavam‑se e faziam uma peça. Esse é jornalismo “ping pong”. Qual é aqui a questão? Isto não é uma forma de escrutínio da realidade política; é uma forma de construção porque essa ação/contrarreação está a ser construída pelo próprio jornalista.
Por outro lado, jornalistas que estão no parlamento há muitos anos são muito críticos da forma como evoluiu a cobertura noticiosa. Não têm tempo para refletir ou historizar os processos, nem fazer fact cheking. E isso cria a ilusão de que o mero registo do que se observa é, em si mesmo, uma representação do que está a acontecer. E não é. Outro exemplo. Assisti a um debate muito acalorado entre o primeiro‑ministro (PM) e um deputado de um dos partidos de esquerda. Entretanto, o debate acaba e o PM é visto com um deputado desse partido, alguém próximo das negociações da geringonça. Os jornalistas disseram então que o PM e o deputado estavam a resolver a divergência do plenário. Nada mais errado: estavam a tratar de um anúncio sobre outro tema que só iria ser público dois meses depois. Aquele assunto discutido no plenário já estava consensualizado há várias semanas. Para que serve o plenário? Para mostrar que apesar compromisso que se iria anunciar uns dias depois, as posições de partida dos partidos eram distintas.


Ou seja, o plenário é o palco de representação de algo que é negociado nos bastidores?

O parlamento só funciona nesta dupla articulação entre a representação pública da política e os bastidores da democracia representativa.
O que tentei fazer foi um relato honesto sobre o funcionamento do parlamento. Podemos pensar: estão aqui espelhados os vícios desta democracia. E podemos olhar noutra perspetiva: a de que temos um dos poucos parlamentos do mundo onde há uma amplitude de correntes ideológicas representadas, que foi sobrevivendo e mantendo diversidade (o que não acontece em democracias supostamente consolidadas, como EUA ou Inglaterra). Ou seja, temos um parlamento com mais de meia dúzia de partidos representados e que funciona, apesar de termos pessoas de extrema direita e racistas até pessoas que não se reveem no modelo de democracia liberal. O parlamento funciona e é um espaço de representação pública dessas diferenças.

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