Investigadora CEI-Iscte
Qual foi o foco do projeto “Skills by Sport 4 Med”?
Tínhamos participado numa candidatura em que, de forma muito incipiente, já se abordava a transferência de competências do desporto para o mundo laboral. Já então identificáramos skills do treino desportivo que podem ser valorizados no mercado de trabalho. Tínhamos também um foco no Mediterrâneo, porque os países desta região apresentam, quase sempre, taxas de desemprego jovens muito altas. A investigação foi orientada desta forma.
Quais são as skills do treino desportivo que perceberam precisar de ser valorizados no mercado de trabalho?
Concluímos que precisamos valorizar a transferência de competências, como a pontualidade, o espírito de equipa, a resiliência, a capacidade de comunicação, o trabalhar por objetivos, etc. e que nem todas estas competências são estritamente soft skills. Por exemplo, o planeamento e a estratégia, ao contrário do que muitas vezes pensa quem não pratica desporto, está presente no desporto, sobretudo quando ele é muito competitivo. Temos de tomar decisões estratégicas para a nossa equipa ou para nós próprios ganharmos, quando se trata do desporto individual. E temos de saber gerir esforço, de gerir os nossos recursos.
A gestão de esforço é importante no mercado de trabalho e é valorizada pelos responsáveis dos recursos humanos das empresas. Ora, todos os dias a gestão de esforço é preparada pelos treinadores com as suas equipas, mas eles próprios não tinham a consciência de que o estavam a fazer.
Por outro lado, muitas vezes as pessoas indicam no seu currículo que praticaram desporto, mas isso pode ser um elemento diferenciador. Algumas dessas caraterísticas são realmente soft skills, mas outras já entram por um campo mais técnico.
Foi uma descoberta relevante para mim perceber que nem as pessoas ligadas ao desporto tinham consciência da importância do seu trabalho na preparação de um jovem para o mercado de trabalho. Ao longo do projeto realizamos focus group com treinadores e com diretores de recursos humanos de empresas. Trabalhamos em colaboração direta com os Treinadores de Portugal, no Comité Olímpico de Portugal, incluindo numa última sessão, para sensibilizar as duas classes profissionais e colocar as pessoas em diálogo direto.
Este projeto situou‑se na área da formação, educação, jovens, desporto. Quem integrou o consórcio?
O projeto resulta de uma candidatura em que fomos coordenadores de uma equipa muito representativa do Mediterrâneo. Incluiu uma universidade de Espanha (com uma grande tradição de ligar desporto e sociedade), Itália (além de uma universidade, participa também uma empresa ligada aos meios digitais), Grécia (International Olympic Truce Centre), Chipre (Cyprus Sports Organization (CSO), Croácia (uma organização que congrega as várias modalidades desportivas, da Universidade de Zagreb) e também uma ONG que teve a sede no Reino Unido. A ideia era também envolver parceiros associados, de países não europeus, como o Egipto. A pandemia trouxe vicissitudes várias, nomeadamente não podermos viajar. Nos eventos multiplicadores e disseminadores do projeto fizemos algumas tarefas online e depois tivemos de esperar. Por exemplo, não é fácil coordenarmos um focus group à distância. O próprio setor do desporto estava em adaptação e eles próprios tinham de dar aulas e treino online. Foi tudo muito desafiante, mas deu‑nos uma satisfação enorme.
Mantivemos também a boa prática de fazer a reunião mensal do consórcio, online. Foi muito importante para manter o contato e não dar origem a que os parceiros desistissem. Foi um projeto cheio de obstáculos, como um sismo na Croácia que afetou a sede do nosso parceiro local, mas conseguimos ultrapassar as dificuldades. A maior parte do projeto decorreu durante a pandemia.
Quanto à metodologia de investigação, o que destaca?
Primeiro, naturalmente, fizemos uma revisão da literatura e do que existia sobre esta área. Não há uma grande produção científica e vamos inclusive tentar publicar um special issue sobre o tema; tivemos dificuldade em angariar artigos, porque é uma área pouco explorada.
Na equipa tínhamos mais duas universidades: a universidade das Ilhas Baleares, Espanha e Università Cattolica del Sacro Cuore, Milão, Itália, que são da área da psicologia. Conseguimos desenvolver assim um estudo psicossocial e as três equipas colaboraram na elaboração dos guiões para os focus group.
Também tivemos o cuidado de ir fazendo o levantamento de testemunhos nestas duas áreas – desporto e recursos humanos – durante este período de trabalho. Numa dinâmica de focus group, quisemos saber como cada indivíduo expunha o seu conhecimento sobre esta questão.
Estivemos no Congresso dos Treinadores (em julho de 2022) a apresentar o projeto e foi, para mim, muito interessante ver o entusiasmo dos treinadores: era como se o conhecimento existisse, estivesse lá, mas como não era reconhecido, não era sistematizado. Fizemos um diagnóstico, sistematização de identificação de práticas, para haver uma proposta de valorização destas competências que identificamos. E tivemos a certeza de que já há, da parte dos recursos humanos, abertura para valorizar este tipo de competências de forma imediata, as quais não podem ser confundidas com coaching ou liderança.
A abordagem do projeto não fez separação entre treinadores de atletas individuais ou de equipas?
Há muitos aspetos que são comuns no treino dos atletas. Além de juntar atividades individuais e coletivas também juntamos pessoas que são treinadores de alta competição com treinadores de iniciados, bem como pessoas do desporto adaptado e desporto sénior. Notamos que, em qualquer destes campos, há transferência de competências, a qual ocorre desde que haja uma prática consistente, persistente e orientada.
Em resumo, não há ainda um reconhecimento geral do valor intrínseco da prática desportiva e do ganho de competências inerente?
Posso dar um exemplo pessoal: pratiquei salto em comprimento e fiz ballet. Em nenhuma parte do meu currículo está que fiz ballet a vida inteira! Ora, quem pratica desporto ou uma atividade física análoga, tem muito maior consciência do limite físico e psicológico, sabe gerir o esforço.
Numa reunião com os parceiros até lhes disse que a palavra central deste projeto é awareness (consciencialização, reconhecimento), porque é a peça do puzzle que não estava lá. Isso traz‑me alguma satisfação: saber que o nosso trabalho não foi criar uma situação, mas foi sobretudo ter intervenção social direta – que é muito interessante num projeto científico universitário. E conseguimos, durante o projeto, entrega direta à sociedade – isso é mais do que disseminar ciência. Há dois grupos profissionais a beneficiar diretamente de um projeto de investigação no qual estivemos envolvidos. Por exemplo, a questão da gestão do tempo é muito interessante e está muito mais presente num jovem que é atleta, do que num outro jovem que só tem a escola.
Observamos também que, por vezes, há uma falta de consciência social em relação aos treinadores. É um trabalho silencioso e, muitas vezes, só lembramos os treinadores apenas quando há medalhas.
Quais os outputs deste projeto que está a encerrar?
Temos um relatório de resultados para Portugal, graças à colaboração com a Confederação dos Treinadores1, e vamos ter também um relatório final que ficará para consulta pública.
Cada resultado parcial do projeto está publicado. Tivemos a criação de um toolkit, que foi disponibilizado para ser usado pelos treinadores e para eles nos darem retorno sobre a necessidade de afinações. É uma implementação piloto. Ficará também em acesso aberto o toolkit para os treinadores que queiram utiliza‑lo para a sua própria formação ou informação. Depois de afinarmos a plataforma ela ficará na página principal do projeto e provavelmente numa plataforma disponibilizada pela Comissão Europeia.
Para além do toolkit, teremos um handbook com todo o processo que foi desenvolvido pelo projeto, mas numa linguagem simplificada para poder ser utilizado pelos treinadores, pelos clubes, pelas federações, por quem tiver interesse. Vamos ter pelos menos três resultados ‘físicos’, que são o nosso compromisso de entrega: um relatório final de consulta pública, um toolkit de acesso aberto e um handbook também de acesso aberto.
Gostava de acrescentar que não temos o poder de influenciar as políticas públicas, mas temos o poder de influenciar a sociedade civil para que as políticas públicas mudem. Portanto, talvez seja de entregar o relatório final à Secretaria de Estado do Desporto. Sabemos também que os Treinadores de Portugal estão muito interessados em manter este projeto vivo, nomeadamente nos tópicos que promovem nos seus congressos.
1 Confederação de Treinadores de Portugal representa 34 modalidades entre 28 associações de treinadores e 15 sócios individuais, reunindo à sua volta quase 40 mil treinadores com título profissional válido em Portugal.