Professora Iscte Ciências Sociais e Humanas
Investigadora CIS-Iscte
Professora Iscte Ciências Sociais e Humanas
Como é que a temática dos abusos em crianças e jovens começou a ser trabalhada no Iscte?
Rute Agulhas (RA) Fui convidada, em 2011, no âmbito do Mestrado em Psicologia Comunitária e Proteção de Crianças e Jovens em Risco, para colaborar em algumas Unidades Curriculares (UC). Uma era sobre Abuso Sexual – Avaliação e Intervenção, já que trabalho nesta área, como perita forense, há 25 anos. Houve depois uma aluna que manifestou interesse em aprofundar as questões da prevenção primária do abuso sexual, algo que em 2013/14 estava ainda por estudar de forma mais sistematizada, e foi assim que eu e a Joana nos conhecemos. Iniciamos a orientação da tese dessa aluna, a Nicole Figueiredo e, em 2016, publicamos “Vamos Prevenir! As Aventuras do Búzio e da Coral”, o primeiro jogo para crianças dos 6 aos 10 anos. Em Portugal, observa‑se maior prevalência do abuso sexual de crianças na faixa etária dos 8 aos 13 anos. Criámos depois um outro jogo com diferentes atividades, ajustado a outra faixa etária (3-6 anos de idade). Trata‑se do kit pedagógico “Picos e Avelã à descoberta da Floresta do Tesouro”, pensado para crianças em idade pré‑escolar.
Agora estamos a ultimar o jogo de cartas “Vila Segura”, destinado a jovens entre os 11 e os 14 anos, com o objetivo de aumentar os seus conhecimentos e promover competências sobre o abuso sexual, mas também sobre os maus‑tratos e o bullying/cyberbullying.
A necessidade de criar produtos didáticos aconteceu durante a investigação e abordagem a esse problema dos abusos?
Joana Alexandre (JA) A Rute tinha a experiência da avaliação pericial das vítimas e queria orientar‑me para uma linha de investigação‑ação, ou seja, uma componente mais aplicada. Houve um “casamento” de interesses. A partir daí mantivemos o processo de envolver sempre estudantes do mestrado de Psicologia Comunitária e Proteção de Crianças e Jovens em Risco, quer no desenvolvimento de materiais novos, quer no teste desses mesmos materiais. Era importante saber se, com estes jogos, as crianças aumentavam os seus conhecimentos ou se, por exemplo, podíamos utilizar o jogo pensado para a idade pré‑escolar em crianças um pouco mais velhas.
Nesta linha de investigação aplicada pensamos primeiro no que é que os profissionais em Portugal precisam, procurando avaliar a eficácia dos materiais desenvolvidos.
RA O então presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), Dr. Armando Leandro, decidiu oferecer o jogo “Búzio e Coral” a todas as CPCJ às quais nós demos formação para poderem levar a cabo iniciativas de prevenção primária com recurso ao jogo. Ao mesmo tempo, as CPCJ colaboraram com um primeiro estudo de avaliação do jogo junto das crianças. Foi uma sinergia. Hoje em dia, o jogo acaba por ser um recurso de toda a comunidade e tem havido um feedback muito positivo.
Não há linhas de investigação financiada em Portugal orientadas para investigação‑ação sobre abusos e violência sobre crianças e jovens?
JA Quanto ao financiamento da investigação, temos de o procurar. Mas também fazemos advocacy nos direitos da criança – p. ex., como devem ser ouvidas em tribunal – e até foi com esse propósito que iniciamos uma colaboração com Cabo Verde. Também temos estado envolvidas em projetos na área da Justiça Amiga das Crianças, e foi nesse âmbito que desenvolvemos um site – Projeto 12 – pensado para crianças de diversas idades e para os profissionais que as ouvem. Reúne diversos materiais para crianças a partir da idade pré‑escolar e foi criado no âmbito de uma linha de financiamento, à qual concorreu a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens, tendo como parceiros a Logframe (que fez uma primeira identificação de necessidades) e o Iscte (através de nós as duas).
Fomos também convidadas pela Cooperativa Aproximar a ir à Grécia apresentar os nossos materiais num projeto Eramus+, e notamos muito interesse neles. Ao trabalharmos em rede surgem sempre oportunidades.
Esta área suscita interesse da parte de mestrandos?
JA Sem dúvida! Todos os anos temos alunos interessados em fazer mestrado com este tema.
Identificam carência de formação nas entidades que operacionalizam a denúncia de abusos?
RA O nosso sistema tem várias arestas que precisam de ser limadas. Na primeira linha de intervenção, importa repensar a atuação das escolas ou dos centros de saúde, por exemplo. Depois, num segundo nível, temos as CPCJ que precisam de formação e supervisão e carecem de uniformizar os seus procedimentos. Por fim, temos o tribunal, a Polícia Judiciária ou o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, por exemplo, também com aspetos a melhorar.
Damos formação sobre a audição da criança em tribunal aos auditores de justiça e a magistrados no Centro de Estudos Judiciários. Todos juntos, pretendemos melhorar a intervenção dos tribunais. A Polícia Judiciária (PJ) também tem feito um trabalho importante de sensibilização das CPCJ e das escolas, para que, face a uma suspeita de abuso sexual, seja chamada de imediato a intervir. Algumas escolas ainda chamam a PSP quando surge uma suspeita de abuso sexual mas é a PJ que deve ser chamada.
JA Quando há muitas entidades a trabalhar com o mesmo fim, o grande desafio é trabalhar, mas trabalhar bem, em rede. Tem sido um processo gradual e hoje os procedimentos estão mais claros. Mas é preciso formação contínua e muito diálogo entre as diversas entidades. Por exemplo, quando uma criança é vítima de violência doméstica ou assiste a um homicídio, tem de se atuar logo, em articulação com a escola, com a CPCJ, com a polícia, pelo superior interesse da criança vítima.
Neste contexto, o Iscte é já responsável pela monitorização do trabalho em rede desencadeado por um projeto piloto (EEA Grants), designado A teu Lado, que está na Amadora, Loures, Seixal, Almada, Loulé e Faro. A atuação é muito diferente de território para território. No final vamos informar de que forma é que o trabalho em rede se torna mais eficaz.
Em Cabo Verde, onde colaborámos mais recentemente, as oportunidades e as fragilidades do trabalho em rede são as mesmas. Há lacunas e desafios que são transversais.
A realidade do abuso sexual em Cabo Verde é análoga à portuguesa?
RA Tem semelhanças e especificidades. Os abusos sexuais acontecem com maior frequência no contexto da rede familiar da criança, seja por familiares ou por vizinhos, à semelhança do que acontece no nosso país. No entanto, e desde 2020, com a pandemia, aumentaram os crimes sexuais contra crianças via online.
Em Cabo Verde, existe uma outra realidade que as diversas entidades ainda sentem dificuldade em assumir, que é o turismo sexual de crianças, nas ilhas do Sal e Boavista. Sobre este fenómeno temos informações muito díspares: alguns serviços afirmam que é uma realidade camuflada, enquanto outros negam a sua existência. Não podemos esquecer que grande parte do PIB de Cabo Verde vem destas ilhas mais turísticas.
Não existem também dados concertados: temos os dados do Ministério Público, das polícias e do ICCA – Instituto Cabo‑Verdiano da Criança e do Adolescente. Mas não existe ainda um relatório anual integrado. Sem dados, a problemática mantém‑se mais silenciada; tal não pode acontecer.
Quando começou o vosso trabalho em Cabo Verde e quem são os parceiros locais?
RA No contexto de um evento online organizado pela ACRIDES – Associação de Crianças Desfavorecidas de Cabo Verde começou uma reflexão sobre a justiça amiga das crianças. Pediram apoio ao CEJ que indicou o meu nome, e assim surgiu esta ponte com Cabo Verde.
A ACRIDES pretende instalar uma sala de escuta de crianças em cada ilha, sendo que já existem em quatro ilhas (Santiago, Sal, Boavista e São Vicente). As salas de escuta seguem o modelo norte‑americano, e são um espaço com várias salas onde as crianças vítimas de abuso sexual são avaliadas e entrevistadas. Dispõem também de uma sala de observação médica. Estas salas de escuta são equipadas com um sistema de gravação audiovisual e os diversos profissionais assistem à sua entrevista noutra sala. Isto permite que a criança seja entrevistada menos vezes e facilita uma abordagem mais integrada e holística.
Posteriormente, pediram‑nos formação para melhor capacitar os profissionais que vão utilizar estes espaços. Estivemos em Cabo Verde em novembro do ano passado e, mais recentemente, em março, a dar formação a grupos interdisciplinares, constituídos por magistrados, polícias, professores, psicólogos, médicos, etc.
JA Para além disso, desenvolvemos um Guia de Procedimentos, pensado especificamente para esta realidade. Em Portugal, começamos por publicar um Manual de Boas Práticas para a Audição da Criança, em parceria com o Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, que inclui histórias para as crianças que vão ser ouvidas em tribunal, em e‑book: O Dia que a Mariana não queria + O João vai a tribunal. São materiais totalmente gratuitos. Mais recentemente, no contexto do Projeto 12, elaboramos um Guia de Boas Práticas para Profissionais sobre a Audição da Criança, disponível no site. É muito importante a capacitação de profissionais, não só em termos formativos, mas também com a disponibilização de recursos. Criamos também uma check list que ajuda os profissionais a rever e autoavaliar a forma como ouviram uma criança, de modo a melhorarem a sua prática ao longo do tempo. É sempre possível melhorar, tendo em conta que o objetivo é reduzir o risco de revitimização da criança.
E como surgiu a ideia de criar um jogo específico para Cabo Verde?
RA Levamos para Cabo Verde os jogos que já tínhamos desenvolvido em Portugal, e pensamos se não seria melhor criar um novo jogo adequado às especificidades da realidade local, nomeadamente, as dinâmicas familiares (os cuidados das crianças são acima de tudo assegurados pela mãe, sendo que em muitas situações o pai é mesmo desconhecido) ou a enorme fragilidade ao nível dos cuidados de saúde e educação.
Pensamos que Cabo Verde são nove ilhas, logo, podíamos criar nove temas – mantemos os mais transversais e que a literatura indica como sendo especialmente relevantes – e acrescentamos três outros: a violência baseada no género, os direitos das crianças e as competências sociais e emocionais. Este jogo foi realizado para a ACRIDES, com a colaboração do Ministério da Justiça de Cabo Verde e o apoio da Embaixada dos Estados Unidos da América. E assim nasceu o “Picos e Avelã à Descoberta das Ilhas do Tesouro”, um jogo “gigante” destinado a crianças entre os 7 e os 12 anos de idade.
JA A ACRIDES criou uma rede nacional de proteção de crianças e jovens contra a violência sexual e cada ilha tem uma rede local. O trabalho em rede é também um legado da fundadora da ACRIDES, a Lourença Tavares. Um dos seus objetivos é que esta rede seja sustentável ao longo do tempo, impactando positivamente as comunidades.
Têm afirmado que o problema dos abusos sexuais na infância é um sério problema de saúde pública…
Não somos só nós que afirmamos isso! Relaciona‑se com a elevada prevalência, com o facto de ser uma problemática global e não uma realidade de países mais ou menos desenvolvidos. Há um forte impacto negativo, a curto, médio e longo prazo, não só nas vítimas, mas também nas famílias, nos irmãos, nos colegas de turma, na comunidade em geral. Este impacto é sistémico. É a elevada prevalência e a globalidade do fenómeno que permitem enquadrar o abuso sexual de crianças como um problema de saúde pública.
Em Portugal existe sensibilidade para abordar o bullying, a violência doméstica ou a violência no namoro, que acabam por ser abordados de forma mais transversal no contexto escolar. É fundamental abordar estes temas nos currículos escolares, envolvendo as crianças desde cedo – sugerimos a partir dos três anos – de modo a aumentar os seus conhecimentos e a desenvolver as suas competências. No nosso país, a abordagem do abuso sexual de crianças nas escolas ainda depende do interesse dos professores e educadores, pois não existe qualquer orientação superior nesse sentido.
Trabalhar a prevenção primária com materiais lúdicos e atrativos, dirigidos para as crianças, é algo que deve acontecer de uma forma sistemática, ao longo do tempo. O que não significa colocar o ónus da proteção e da prevenção na criança. A proteção é um dever dos adultos, de todos nós enquanto comunidade.
Rute Agulhas, que já integrava a Comissão Diocesana de Lisboa, coordena desde o início deste mês o grupo VITA, criado pela Conferência Episcopal Portuguesa para fazer acompanhamento de vítimas de abusos sexuais na Igreja Católica em Portugal. A juntar ao acompanhamento psicológico, o grupo dará também apoio social e jurídico.
Além de receber eventuais novas denúncias, este organismo de acompanhamento de vítimas vai redigir o “manual de prevenção”. E, a partir de 22 de maio de 2023, tem ativadas as plataformas de contacto: pelo telemóvel 915 090 000 ou, por email geral@grupovita.pt. O atendimento telefónico faz‑ se de segunda a sexta‑ feira, entre as 9h e as 19h, e é feito por um dos membros executivos do VITA. O trabalho será ainda articulado com o INEM, para casos de maior fragilidade.
Além da psicóloga Rute Agulhas, o grupo VITA é constituído por outros psicólogos com diferentes especializações: Alexandra Anciães, Joana Alexandre e Ricardo Barroso e ainda o assistente social Jorge Neo Costa e a psiquiatra Márcia Mota.