EDITORIAL

Universidade: desafios para o futuro


Reitora

 

MARIA DE LURDES RODRIGUES

Reitora



A universidade é simultaneamente, como disse Ana Luísa Amaral, “um repositório de memórias e um estranho instrumento espacial dirigido ao futuro”. Por essa razão, a universidade antecipa, em cada conjuntura, o futuro do seu tempo. Hoje podemos identificar desafios que já se vêm anunciando e apresentando como imperativos futuros.

 

1. A produção de conhecimento científico, de mais e melhor ciência é talvez o desafio mais relevante para o futuro. Este desafio não se colocava à universidade há 50 anos, foi-se afirmando como um imperativo ao longo do percurso, e, não tendo deixado de ser encarado pela universidade, teve respostas difíceis e caminhos ínvios. Porém, hoje a universidade tem um papel central na produção de ciência, através dos seus 200 centros de investigação, classificados com Muito Bom ou Excelente, onde se desenvolvem cerca de 40% das atividades de I&D a nível nacional.

Desde 2002 que o Ensino Superior e a Ciência se encontram reunidos no mesmo Ministério, mas têm faltado políticas que promovam a articulação entre os dois sectores. Sobretudo numa altura em que os financiamentos da FCT são claramente insuficientes e desajustados, não garantindo sequer o funcionamento regular das infraestruturas científicas, tem sentido debater temas como o da articulação entre a carreira docente e a carreira de investigação, a atribuição às universidades de uma dotação orçamental consignada ao desenvolvimento da investigação e ciência. O reconhecimento, a responsabilização e simultaneamente a atribuição de recursos financeiros para a Ciência permitiriam às universidades, por exemplo, definirem estratégias de internacionalização das equipas e centros de investigação, terem condições para fazerem melhor, em domínios como o do estímulo ao emprego científico, o apoio a áreas do conhecimento emergentes ou o desenvolvimento de projetos de investigação estratégicos para as instituições ou para o país.

2. Paralelamente muitos outros desafios se colocam. Há muito que a universidade deixou de ser apenas um espaço de transmissão de conhecimento, há muito que deixou de ser apenas uma escola ou um espaço de difusão de conhecimento através do ensino. As exigências de desempenho pela universidade de um papel social, de diálogo com a sociedade, de envolvimento na resolução de problemas económicos, sociais e tecnológicos, através da produção de conhecimento aplicável e útil, não sendo novidade, pressionam no sentido da alteração do equilíbrio de poderes no que respeita à autonomia relativa e à especialização institucional e funcional que hoje prevalece.

As questões relacionadas com a especificidade da universidade, enquanto instituição, com autonomia pedagógica, científica e de governação, no que respeita aos modelos de financiamento, isto é, o debate sobre a quem pertence ou deve pertencer a responsabilidade de decidir e de custear o investimento na universidade enquanto bem público, mantém-se como temas de debate político.

Como se desenharão os novos equilíbrios? Como se preservará o espaço de autonomia da agenda científica necessário à produção e aprofundamento de conhecimento, com a incorporação de uma agenda de problemas de interesse público, social e económico. Em que condições podem/devem ser definidas tais agendas? Como se organizará o trabalho académico de ensino, de investigação e de transferência de conhecimento, bem como a governação das instituições, tendo em conta estas exigências?

É também um desafio a compaginação do aprofundamento do conhecimento disciplinar e a aquisição de competências altamente especializadas, com a necessidade de diálogo e de cruzamento interdisciplinar, de compreensão alargada de problemas para cuja resolução são convocados diferentes saberes.

3. Podemos ainda referir a questão do mérito no acesso e no sucesso como um desafio futuro. O desenvolvimento da educação básica e secundária foi impelido por princípios democráticos, igualitários, inscrevendo-se na sua natureza a aquisição de conhecimentos e competências necessários à participação cívica e económica de todos os cidadãos. Pelo contrário, o sistema universitário é, por natureza, múltiplo e estratificado orientado para a formação de elites, baseando-se o seu desenvolvimento em princípios de seleção meritocrática.

As universidades têm sido o local e o instrumento de homogeneização da meritocracia, isto é, da medida do mérito. Tendencialmente, fazem--no de modo unidimensional e quantitativo, no acesso ao ensino, como na organização das suas atividades e na valorização dos diplomas que outorgam e da investigação que desenvolvem. Hoje questionam-se as implicações de tal desenvolvimento. A European University Association aprovou o Agreement on Reforming Research Assessment, que propõe o abandono do uso inapropriado de métricas e rankings. Um dos responsáveis pelo processo de aprovação, Marc Schiltz, President of Science Europe, diz mesmo: «publish or perish and metrics have led us into a blind alley. Let’s start recognizing the full breadth of value created by researchers».

Mas há outro tipo de implicações no modo como se avalia o mérito. Parece estar a atingir-se o que alguns autores designam como “estagnação educativa” que exclui do acesso à universidade, à informação e ao conhecimento segmentos significativos da população. O mérito medido com base quase exclusivamente em testes e exames gera enormes riscos de redução da diversidade e de desvalorização das dimensões qualitativas e dos saberes associados ao fazer, não substituindo nem eliminando os processos de seleção baseados nos legados e nas heranças sociais.  Em que medida este debate afeta a imagem da universidade? Quais são as alternativas, as escolhas, que se oferecem? O desenvolvimento dos processos e oportunidades de aprendizagem ao longo da vida podem permitir ultrapassar os riscos identificados?

4. Finalmente, os caminhos da digitalização do ensino e da inovação pedagógica. Há hoje instituições de ensino superior com elevada reputação, que oferecem cursos online que podem ser seguidos ou frequentados gratuitamente; para obter o diploma deverá o estudante pagar a propina e deslocar-se à universidade para realizar um exame. Estes caminhos, potenciando um ensino à distância e não presencial, de autoaprendizagem individual e permitindo o acesso aberto a todo o conhecimento, questionam princípios decorrentes da ideia de campus, da funcionalidade de espaços físicos e laboratoriais, de troca e de interação alargada, como também de organização pedagógica e curricular das formações disponíveis. O futuro trará um cenário de generalização de um ensino “self service” em que a universidade reduz a sua atividade a cadeias de produção de cursos e de materiais pedagógicos oferecidos em sites interativos, dispondo de salas para a realização de exames presenciais? Ou as tecnologias digitais serão sobretudo um instrumento complementar dos processos tradicionais de ensino e de aprendizagem? Sendo a socialização e o interconhecimento uma dimensão essencial na formação das elites, corremos o risco de o acesso ao ensino presencial ficar mais reservado? Podem as tecnologias digitais ser um instrumento importante para enfrentar o desafio da aprendizagem ao longo da vida e de alargamento dos públicos, designadamente os adultos inseridos no mercado de trabalho? Ou, pelo contrário serão um instrumento de reprodução ou mesmo de amplificação das desigualdades?

 

Estes são os temas que estarão em debate no Encontro Nacional que se realiza no Iscte – Instituto Universitário de Lisboa, no dia 7 de dezembro, celebrando dessa forma os 50 anos da Reforma Veiga Simão, cujo primeiro passo foi a criação do Iscte, e os 50 anos de Democracia.

O 25 de abril de 1974 e a constituição aprovada em 1976, renovaram e atualizaram o sentido da reforma Veiga Simão tornando mais explícitos os objetivos de expansão e diversificação do ensino existente e de democratização do acesso. No essencial as mudanças foram-se consolidando e o sistema de ensino superior que hoje temos é constituído por uma grande diversidade de instituições criadas no âmbito da Reforma e maioritariamente jovens, cuja história se confunde com a do regime democrático.

Cinquenta anos volvidos sobre a criação da primeira das novas instituições – o Iscte – podemos concluir que a universidade, através das novas e das antigas instituições, desempenhou um papel decisivo na modernização do país. Formaram-se milhares de médicos, engenheiros, juristas, gestores, professores e outros diplomados que qualificam as instituições onde exercem a sua profissão. Formaram-se milhares de investigadores que integram o sistema científico e tecnológico do país produzindo-se hoje mais e melhor ciência.

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