ENSINO

Ensino mais democrático mas ainda muito desigual


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SUSANA DA CRUZ MARTINS

Docente Iscte

Investigadora CIES-Iscte


Estudo europeu conclui que rendimento das famílias determina percurso no ensino superior em Portugal. Eurostudent identifica tendência e ajuda a formular políticas públicas



Trabalha, já há uns anos, no projeto Eurostudent. Quais os objetivos do projeto?

O Eurostudent é uma rede europeia que estuda as condições sociais e económicas dos estudantes do ensino superior na Europa, não apenas da União Europeia. De três em três anos, são realizados inquéritos, que permitem, não apenas conhecer a realidade de cada país, como fazer um retrato mais global e comparativo. O CIES-Iscte participou na segunda e terceira edições (2005 e 2008) e depois nos de 2018 e 2021. Em Portugal, este constitui o maior inquérito realizado aos estudantes do ensino superior.

 

Este último inquérito foi prejudicado pelas restrições motivadas pela pandemia?

Apanhou o sistema em grande disrupção. Foi um trabalho muito desafiante, desde logo no que respeita à recolha de informação de uma população com condições de vida e de estudo profundamente alteradas, mas também no trabalho comparativo, porque os países realizaram o trabalho de campo em momentos muito diversos, com condicionantes também elas diferentes, e isso obrigou a um esforço acrescido de análise comparativa.



A família continua a ser a principal fonte de financiamento do estudante no ensino superior, apesar de os apoios terem vindo a crescer. Esses apoios são fator de redução das desigualdades, mas são ainda insuficientes para a resolverem


 

Os inquéritos são realizados presencialmente, ou online?

Os primeiros foram feitos de forma presencial, com amostras por quotas, de acordo com as caraterísticas do sistema que já conhecíamos, com entrevistadores que percorriam o país a fazer inquéritos. Atualmente, esse inquérito é online e levado a cabo pelas instituições de ensino e mediado através da Direção-Geral do Ensino Superior, o que tem a vantagem de termos mais respostas, mas torna mais exigente a validação dos dados.

 

Quanto ao relatório nacional, quais são as principais conclusões, no que respeita à caraterização dos estudantes do ensino superior?

Os resultados são dinâmicos, de edição para edição, mas é possível identificar um conjunto de traços que distinguem os estudantes portugueses dos do resto da Europa. Desde logo, os portugueses, a par dos italianos, são dos que se mantêm mais tempo a viver com os pais. Isso resulta da estrutura social e das estratégias das próprias famílias, mas, acima de tudo, tem a ver com as condições sociais e económicas dos estudantes, que os obrigam a transitar para a vida adulta mais tardiamente. De um ponto de vista evolutivo, os estudantes portugueses têm cada vez mais atividade profissional e estudam em horário pós-laboral; há maior diversidade migratória, quer dos pais, quer deles próprios; há cada vez mais alunos com experiências de mobilidade internacional, mas a nossa taxa ainda é inferior à média europeia, sendo que a pandemia teve um efeito compressor nessa realidade; somos dos países em que os estudantes são mais desiguais, quer nos rendimentos, quer nas despesas; somos também dos países com menores taxas de estudantes em residências apoiadas; e somos dos países em que estudar na capital tem um elevado custo económico. Os custos do alojamento são frequentemente apontados como um fator condicionante no ensino superior.


dados ensino


FONTE: Inquérito às condições socioeconómicas
dos estudantes do ensino superior em Portugal
– EUROSTUDENT VI e VII.


 

A democratização do acesso tem como consequência a desigualdade?

Apenas após o 25 de abril começaram a chegar ao ensino superior, em número significativo, estudantes cujos pais não tinham esse grau, mas foi nos últimos que tal se tornou mais expressivo e que se estabeleceu um duplo padrão: há cursos e áreas em que os estudantes reproduzem o perfil dos pais. Por exemplo, há muitos estudantes de medicina com pais médicos, mas há áreas do sistema que se abriram a filhos de pais com menos escolaridade, menos qualificados. E é claro que essa desigualdade de origem se reflete no ensino superior. A origem familiar e os respetivos perfis económicos determinam muito, quer os percursos escolares, quer, por exemplo, a possibilidade de estudar no estrangeiro. A família continua a ser a principal fonte de financiamento do estudante no ensino superior, apesar de os apoios terem vindo a crescer. Esses apoios são fator de redução das desigualdades, mas são ainda insuficientes para a resolverem.

  

A relação dos estudantes com o mercado de trabalho também tem evoluído?

Os estudantes portugueses têm hoje mais experiências no mercado de trabalho do que tinham no passado. Há 20/30 anos, era dominante o perfil do estudante que fazia o seu percurso sem qualquer contacto com realidades profissionais. Essa realidade tem vindo a alterar-se, mesmo que em alguns casos em atividades não diretamente relacionadas com a sua área de estudo.

  

Quais são as grandes tendências na Europa?

Na maior parte dos países, verifica-se um grande crescimento nas taxas de entrada e de conclusão por parte das mulheres. Em quase todos os países, já há mais mulheres que homens no ensino superior. As exceções estão, sobretudo, na Europa Central e de Leste. E são cada vez menos os cursos e áreas em que as mulheres não entram. Há casos, como as engenharias clássicas, em que ainda se regista um desequilíbrio favorável aos homens. Em contrapartida, áreas como a da saúde ou a da educação, em especial da educação de infância, continuam a ter um forte predomínio feminino.



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Além dessas tendências de género, que outras dinâmicas encontramos na Europa?

Cada vez há mais diversificação de percursos, tendência que se acentuou na última década. E isso acontece, quer por via da mobilidade internacional, quer por combinação da formação com as fases da vida, nomeadamente com o trabalho. Em alguns países, especialmente do Norte, como a Suécia, essa tendência há muito que se verificava, noutros surgiu mais tarde.

 

Estes relatórios têm funcionado como fator de influência, ou de aproximação, entre países?

Desde sempre, este relatório foi um suporte para a definição de políticas para o setor. Em Portugal, aconteceu logo no início, com Mariano Gago como ministro desta área. Isso foi muito flagrante nas orientações para os maiores de 23. Temos em Portugal uma população com níveis baixos de qualificação e isso reflete-se num distanciamento dos adultos face ao sistema, que importa inverter. Outro exemplo: os tempos letivos em Portugal eram muito sobrecarregados, com uma grande carga de aulas, quando comparados com outros países. Nas comparações internacionais, esse aspeto contribuía fortemente para a relativa demora dos nossos estudantes a concluírem os cursos. Muitos países tinham um regime parcial, que foi introduzido mais tarde em Portugal.

 


Na Europa verifica-se um grande crescimento nas taxas de entrada e de conclusão por parte das mulheres. E são cada vez menos os cursos e áreas em que as mulheres não entram


  

Este estudo parece ir mais além das anunciadas condições sócio-económicas dos estudantes.

Apesar do propósito anunciado, o estudo é bem mais abrangente. Neste estudo, temos as dimensões fundamentais das caraterísticas dos estudantes, sejam elas demográficas, sociais ou outras, temos os percursos no interior do sistema, temos os tipos e modos de estudo e agora, mais recentemente, as perceções dos estudantes sobre a relação com os docentes, com os colegas, etc. E, claro, há as questões dos custos, dos rendimentos, do alojamento, da mobilidade. Acaba por ser um forte instrumento orientador de políticas públicas. Não há outros estudos que forneçam tanta informação quanto o Eurostudent.

  

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Como é que o Eurostudent se enquadra nas linhas de investigação do Iscte?

O interesse do Iscte, ou mais propriamente do CIES-Iscte, começou pela caracterização social e dos percursos dos estudantes do ensino superior, em especial nas áreas da Sociologia, e surgiu muito cedo, logo nos anos de 1980, por exemplo através do João Ferreira de Almeida, António Firmino da Costa e Fernando Luís Machado. Por um lado, tratava-se de uma população que estava próxima mas, fundamentalmente, esta é uma população que é protagonista de grandes mudanças sociais. Ou seja, os estudantes do ensino superior eram então ainda poucos, em termos relativos, mas protagonizavam novos valores ou mesmo alterações na estrutura social, e viriam a integrar uma classe média mais qualificada e modernizada. Depois, em 1999, houve uma grande iniciativa de um inquérito nacional, no qual já participei, com uma equipa mais alargada no CIES-Iscte.

O Eurostudent surge como sequência natural deste percurso. De um ponto de vista pessoal, a participação neste estudo tem-me permitido responder às minhas preocupações iniciais no estudo das classes sociais e das desigualdades, a que juntei as relacionadas com a educação, nomeadamente em relação às políticas educativas e a um olhar comparativo.

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