MIRIAM HALPERN PEREIRA
Professora Catedrática Emérita Iscte
Fundadora Centro de Estudos de História Contemporânea do Iscte
Como era o ensino universitário há 50 anos, antes e depois do 25 de abril de 1974?
O ISCTE – Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa tinha acabado de ser constituído. Tinha uma equipa em parte ligada à ala liberal do regime e uma outra parte mais independente, mais à esquerda, provinha do meio católico. Era um instituto que se apresentava como inovador e até com condições internas de liberdade de ensino. Não havia qualquer posição ideológica ou fiscalização, nada disso.
Havia alguns apoios especiais, por exemplo, para traduzir textos. Era uma época em que os livros estrangeiros circulavam pouco. As bibliotecas estavam muito desatualizadas. Faltavam traduções na área de história, economia, sociologia – sociologia, então, não se podia falar, era tabu. Por isso, o Iscte tinha essa designação de ciências do trabalho que encobria a sociologia ensinada pelo professor Adérito Sedas Nunes e sua equipa.
Mas, apesar de haver esse ambiente mais intelectual, não se podia fugir ao condicionamento geral opressivo e isso refletia-se no acesso ao cargo de professor: tinha que passar pelo Ministério e pela seleção da comissão interuniversitária, mas depois todos os professores tinham de ser aprovados pela PIDE, que tinha sempre a última palavra. Logo aí se via o peso repressivo do regime.
Como é que a juventude vivia esses tempos? Qual era o ambiente?
Havia um ambiente de grande descontentamento entre a juventude. Com a guerra colonial, o futuro deles estava em causa. Sem acabar com a guerra colonial, sem dar a independência às colónias, não era possível fazer uma liberalização a sério. Esse ambiente era um grande problema. Como é que se pode ensinar num ambiente de tensão e de insegurança?!
E, tendo vivido, dez anos num país (França) onde havia liberdade de expressão e de ação, eu tinha grande dificuldade em aceitar e integrar este ambiente. E achava que a prática letiva era, de facto, difícil. Mesmo ao nível do conselho escolar havia uma preocupação excessiva em falar dos chamados cabecilhas. Toda essa linguagem me incomodava imenso e eu teria saído do ensino universitário, se não tivesse havido o 25 de abril. Provavelmente teria ido para o ensino secundário particular, talvez para o Colégio Moderno, como tantas pessoas da oposição. Não conseguia aguentar esse ambiente, estava a ficar deprimida e desencorajada.
Por sua vez, os alunos estavam muito ansiosos com o início das aulas. Comecei a ensinar em meados de dezembro de 1973. Na realidade acabei por ensinar três meses e meio e deu-se o 25 de abril!
E então o ambiente universitário também se modificou.
Claro! Discute-se muito se há revoluções ou simplesmente uma evolução, porque no dia seguinte a uma revolução o passado vem ao de cima. As duas coisas são verdade. De facto, as mudanças na sociedade portuguesa, desde os anos 60, estavam simplesmente comprimidas. E, ao virem ao de cima, desabrocharam: e isso foi a revolução. No dia 26/4 o país estava a mudar, foi uma coisa extraordinária. Houve, de facto uma revolução naqueles dias. Foi uma mudança que desestruturou o que havia, claro, mas não houve propriamente uma desorganização. Também variou muito de local para local.
Na realidade essas mudanças vieram acompanhadas de novas formas de organização, isso já estava em gérmen. E explica que se tivessem organizado tão depressa partidos, sindicatos, porque de facto estava lá o gérmen. As pessoas já sabiam, mais ou menos, o que queriam fazer.
E ao nível do ensino superior aconteceu o mesmo. Havia as pessoas que iriam renovar a universidade, algumas não estavam ainda no país. E a renovação ocorreu muito rapidamente. Houve uma enorme afluência de estudantes à universidade. Foi criado o ano do serviço cívico, porque não era possível acolher tanta gente.
Eram pessoas das mais diversas formações, de vários grupos etários, que queriam melhorar a sua formação, atualizar-se, ou simplesmente aprender para compreender o mundo.
Entretanto, acabou por optar pelo Iscte para lecionar História, mas tinha outro convite do ISCEF, atual ISEG.
Comecei a colaborar com o professor Joel Serrão, que me tinha convidado para o ISCEF ainda eu estava em França. Doutorei-me uns cinco anos antes do 25 de abril e logo me convidou. Fiquei muito admirada, até porque eu não estava para voltar para Portugal.
Entretanto surgiu a proposta do Professor Sedas Nunes e eu aceitei, justamente porque via que no Iscte havia uma equipa com vontade de renovação e pensei que o ambiente seria mais interessante que no ISCEF, onde tinha tido uma reunião com o diretor e tinha ficado muito mal impressionada. O ISCEF vivia também um ambiente muito tenso, pois tinha havido a morte de um estudante, o Ribeiro dos Santos. Optei e consegui fazer no Iscte o que pretendia, ao longo da minha vida de professora e de investigadora.
Foi convidada pelo Professor Sedas Nunes? Adérito Sedas Nunes foi um dos fundadores do Iscte.
Conheci-o ainda estava em Paris, através de uma das primeiras pessoas a tirar o curso de sociologia, o José Carlos Ferreira de Almeida. Ele era discípulo do Adérito, estava ligado ao GIS (Gabinete de Investigações Sociais). Eu estava a fazer o meu doutoramento e conheci o Adérito nesse contexto. Nessa altura eu não tinha publicado nada e ele convidou-me para publicar um artigo na revista Análise Social. Foi o meu primeiro trabalho de monografia histórica publicado em Portugal. Era o primeiro capítulo do meu primeiro livro.
O Iscte viveu um ambiente de grande ebulição a seguir ao 25 de abril, muito violento, com saneamentos injustificados e muito radicais, como aconteceu em toda a parte. E o Adérito não se adaptou, como aconteceu a outros professores. Ainda assim conseguiu que o curso de Sociologia fosse reconhecido, o que aconteceria em 1978. Uma das primeiras batalhas científicas e pedagógicas foi constituir um curso com o nome de sociologia – a palavra era proibida no tempo de Salazar!
Nesse período, convivi com ele nos conselhos científicos. E foi muito interessante porque tínhamos uma conceção muito semelhante do que devia ser o ensino universitário. Ele achava que o ensino universitário devia ser acompanhado de investigação, o que não era consensual nessa época.
O Iscte, no início, esteve instalado num palacete no Campo Grande, numa zona de quintas. No palacete só estava a parte administrativa. O Iscte funcionava nuns barracões que tinham sido construídos atrás, onde funcionavam aulas, em grandes anfiteatros, com mais de cem alunos!
Como se chamava a cadeira que veio lecionar?
Chamava-se História Económica. Uma das coisas que introduzi, ao nível universitário, foi o ensino de História Económica de Portugal Contemporâneo. Não se fazia em nenhuma outra escola e demorou muito tempo a aparecer noutras escolas. Recorri muito a textos da época, a literatura histórica. Os meus alunos liam obrigatoriamente Alexandre Herculano e Oliveira Martins, entre outros autores que vieram, a meu pedido, para a biblioteca.
Nessa época, ao contrário de hoje, havia muitos mais homens na universidade do que mulheres. Como é que vivia essa realidade?
Não estranhei muito. Era a realidade em toda a parte, nos locais de trabalho, universidades, etc. havia uma maioria de homens. Comecei a pensar nisso na Escola Prática de Altos Estudos (École Pratique des Hautes Études – EPHE), em França, mas não me incomodou, não constituiu um problema.
Mas no seu entender havia discriminação?
Podia contar algumas histórias anedóticas significativas, mas não quero ir por aí. Havia uma discriminação em relação às mulheres ao nível da sociedade, portanto as mulheres cresciam nesse contexto, e tinham de encontrar o seu caminho, pensando como levar por diante o que queriam fazer. Eu acho que consegui encontrar o meu caminho, e passou por ter ido para França. Foi uma coisa completamente inesperada na minha vida e foi um corte dramático em todos os aspetos, com o meu modo de vida, nas relações familiares, amigos… foi um transplante brutal e difícil.
E como surge o seu doutoramento neste percurso?
Era impossível e nem era interessante fazer um doutoramento na Faculdade de Letras, sobretudo para mim, que era uma pessoa de esquerda que nunca escondeu as suas ideias.
Ao chegar a França tive a sorte de encontrar um orientador – o historiador Pierre Vilar – que aceitou a minha incipiente proposta de tese. Passados poucos dias estava inscrita na Escola Prática para fazer a parte curricular do doutoramento.
Depois regressa…
Ao regressar o meu propósito foi desenvolver a área de História depois do 25 de abril. Estava preocupada com a prática letiva, era preciso escolher textos, traduzir, etc. Isso tomava muito tempo, incluindo fins de semana. Era preciso contratar assistentes competentes e constituir uma equipa com pessoas que tinham vindo de vários países. Fiz uma escolha e consegui formar uma equipa que durante muito tempo teve uma maioria de mulheres. Mas foi um acaso.
CARTAZ da conferência organizada pelo Iscte que trouxe a Lisboa o historiador E. J. Hobsbawm.
Nesse início que preocupações tinha?
Tive duas grandes preocupações: o ensino e a investigação. No que diz respeito ao ensino havia a questão básica de constituir uma equipa com alguma unidade, com pessoas de formações tão diferentes. Tinha, por exemplo uma pessoa de agronomia que estava a fazer o doutoramento em História, havia outra pessoa com formação em Direito, etc. É importante dizer que as pessoas que vieram de fora do país tiveram muitos problemas ao nível das equivalências, chegaram a ter de fazer exames! Não bastava apresentar o título. Era vergonhoso.
Então para dar unidade à equipa usei um método: discuti com eles ponto por ponto o programa. No fundo organizei um curso de pós-graduação, que ninguém me pagava. Tínhamos também sessões de discussão de livros. Era um debate científico interessante. As pessoas não eram passivas, intervinham. Gastei muito tempo com a formação das pessoas, tinha muito gosto nisso, também achava que isso me enriquecia.
Também havia outra dimensão, que era o acompanhamento dos alunos. Queríamos inovar. Organizávamos trabalhos de grupo que eram monitorizados de perto. Como havia pouca bibliografia fazíamos uma seleção de textos da época, eu fazia uma introdução geral a cada caderno e cada texto tinha também uma introdução. Esses cadernos estão todos no arquivo do Iscte. Esse material foi posteriormente muito procurado por colegas de outras escolas.
Com esse material organizei o meu primeiro livro, sobre a revolução liberal: “Revolução, finanças e dependência externa”.
PALACETE no Campo Grande, Lisboa, que albergou o Iscte nos primeiros anos.
A Professora Miriam fez “escola”, criou uma abordagem inovadora, estruturada e participada de forma diferente.
Acho que sim, isso tem sido referido por colegas meus, mais do que por mim.
Quanto à investigação, era preciso que os assistentes fizessem doutoramento. E foi para isso que criei o Centro de Estudos de História Contemporânea de Portugal, como se chamava inicialmente. Foi o primeiro centro de investigação criado no Iscte, logo em 1975. O Centro de Estudos de História Contemporânea foi o primeiro que existiu e, posso dizer, que teve uma atuação fulgurante na primeira fase. Era, aliás, uma preocupação do Iscte nesse tempo: integrar professores que vinham do estrangeiro.
Havia uma grande preocupação de internacionalização, que no caso do Centro se traduzia nos convites a imensos historiadores, que vinham a Portugal para seminários, conferências e tinham sempre enorme êxito, como o E. J. Hobsbawm. Tínhamos um sistema de divulgação feito por meio de cartazes extraordinários, muito bonitos, feitos por um pintor que fazia isso graciosamente. Não tínhamos apoio administrativo, nenhum secretariado, mas havia um grande empenho e entusiasmo de todos.
Fizemos também um colóquio sobre o Liberalismo na Península Ibérica, o qual teve um impacto enorme. Decorreu na Fundação Gulbenkian, teve 600 pessoas na sessão de abertura! É preciso dizer que nessa altura os professores do Secundário também sentiam uma grande necessidade de se atualizar e apareciam em todas as atividades em que podiam participar.
Tendo formado a sua equipa no Iscte, o que destacaria como mais relevante?
Havia uma preocupação interdisciplinar, característica do Iscte desde o início, mesmo antes do 25 de abril. Os cursos que havia então eram: Gestão, Economia e Organização do Trabalho – este era a Sociologia encapotada, não é? A História, como outras cadeiras, no primeiro ano era transversal a todos os cursos. Essa preocupação interdisciplinar era uma marca no Iscte desde o início, que depois se manteve.
Não havia uma licenciatura em História, nem mestrado ou doutoramento. Isso foi depois um processo muito lento. Muito mais tarde começamos pelo mestrado; depois foi muito difícil criar um doutoramento, houve uma grande resistência. Mas depois foi um sucesso, tínhamos muitos alunos, muito bons. Só em último lugar é que foi criada a licenciatura, num processo muito complicado do ponto de vista administrativo.
Foi um curso concebido com uma orientação inovadora, embora exista neste formato noutros países. É um curso só de História Moderna e Contemporânea. Estava muito pensado para relações internacionais, corpo diplomático, organizações internacionais e foi muito inovador pela panóplia de optativas que oferecia; tínhamos, por exemplo, uma cadeira de História do Brasil. Depois, com o andar dos tempos, o curso mudou muito, em parte por razões financeiras, mas também é normal que vá mudando.
Em relação à participação dos estudantes, o que lembra desses tempos?
Bom, foi muito importante, até se disse que os estudantes tinham a última palavra.
Os estudantes tinham uma participação muito grande, mas a certa altura isso foi considerado excessivo, porque no que diz respeito às questões pedagógicas tem interesse falar com os estudantes e ouvi-los, mas não faz sentido serem eles a decidir. Estão a aprender e nós ensinamos. Ao nível das assembleias de escola, se se abria uma nova licenciatura, os alunos estavam a decidir por alunos que não estavam cá. Isso não fazia muito sentido. Às vezes as decisões não tinham nada a ver com uma organização democrática. Suplantou-se o problema, mas não foi fácil resolve-lo.