Investigadora Dinâmia’CET‑Iscte
De que forma esta bolsa do Conselho Europeu de Investigação impacta o seu trabalho e para que vai servir?
Este financiamento é fundamental. Até agora, os financiamentos que eu tinha, com a exceção de fellowships para trabalhar em instituições e centros de estudo avançados, eram sempre fundos nacionais. Este ERC Advanced Grant é o maior apoio financeiro que se pode dar a um investigador a título individual. Vai permitir fazer algo que nunca consegui fazer antes: dedicar‑me a 100% à investigação. O trabalho como professora é muito envolvente e a investigação parecia que ficava sempre para trás.
No Iscte tenho vindo a criar uma equipa com gente muito diversa, maioritariamente formada por mulheres. Desde 2010 que ganhamos projetos que têm a sua geografia relacionada com a antiga África colonial portuguesa, sempre na nossa área disciplinar, a arquitetura. Nesses projetos, fomos introduzindo temas que se tornaram muito pertinentes, como o da habitação.
Esta ERC permite‑nos explorar um novo tema que é o trabalho colonial não qualificado, de estaleiro: dos serventes, das mulheres que carregavam areia, dos pedreiros – homens, mulheres e crianças que faziam trabalho olhado como desqualificado.
Existindo muita investigação sobre o trabalho nas antigas colónias portuguesas – mais ligado ao setor primário, agricultura, indústria e minas – não tem havido uma grande atenção em relação a estes trabalhadores das obras públicas, que construíram caminhos de ferro, portos, estradas, também edifícios públicos. Essas infraestruturas permitiram à máquina colonial estar ativa e ter sucesso.
O projeto foca‑se em que países?
Aborda os países africanos colonizados pelos portugueses: os dois insulares – Cabo Verde e São Tomé e Príncipe – e os três continentais – Guiné‑Bissau, Angola e Moçambique.
Interessa‑nos perceber como é que a conceção arquitetónica sofreu algum impacto ou foi influenciada por estes trabalhadores, aparentemente sem recursos específicos, sem especialidade.
Temos uma ideia de como os engenheiros e arquitetos ligados às obras públicas operavam, como tomavam decisões, que tipo de cultura arquitetónica havia à época, qual a sua relação na hierarquia e como se relacionavam com a política, mas nunca nos tínhamos questionado sobre o impacto destes trabalhadores não qualificados. Será que os arquitetos tomavam em consideração o know‑how destes trabalhadores? Ou desenhavam tábua rasa sem ter em consideração esses conhecimentos?
Em síntese, o projeto vai estudar o impacto da falta de qualificação dos trabalhadores colonizados nas obras das colónias?
Sim. Quando os arquitetos portugueses migravam para África não sabiam que técnicas é que as populações locais poderiam oferecer e com o que poderiam contar no seu trabalho/projeto. Este desfasamento de contexto, por si só, já é interessante.
A nossa pergunta é sobre as centenas ou milhares de pessoas recrutadas para fazer uma linha férrea, por exemplo, num recrutamento de grande escala. Não sabemos que impacto estas massas de trabalhadores tiveram na conceção das obras e infraestruturas de transportes.
Mesmo que as pessoas trabalhassem em regime compulsivo – uma escravatura moderna – estas comunidades e grupos de trabalhadores também ofereciam resistência (ao colonizador). Eles conhecem o território e há narrativas de fugas, etc.
Esta investigação faz‑se em tempo longo, não em tempo curto. Começámos por estudar os materiais dos gabinetes da administração colonial.
Depois fomos estudar as obras públicas coloniais, os relatórios dos inspetores e, nesses documentos, nunca era muito clara a questão do trabalho. Há, por vezes, referência a que os trabalhadores não tinham domínio de determinada técnica, pelo que havia que adaptar o projeto.
Qual vai ser a vossa abordagem em termos de método de trabalho?
Criamos uma espécie de chave de leitura. Propusemos à Comissão Europeia estudar com base em palavras‑chave: Subalternidade; Políticas; Raça; Género; Conflito; Resiliência (das comunidades).
A subalternidade é uma questão já muito interiorizada nos estudos pós‑coloniais. Nos estudos clássicos, a subalternidade é apresentada como uma desvantagem, mas nos últimos tempos é mais encarada como uma forma de resistência (porque pode exigir do outro que haja uma adaptação, caso contrário nada se faz, e o colonizador precisa das massas de trabalhadores para cumprir o seu projeto colonial).
Outra palavra‑chave é a questão das políticas (de trabalho) ligadas ao ambiente colonial, que são diversas: há o trabalho rural, nas minas, etc. e também há visões diversas do que é um regime de trabalho em Cabo Verde ou em Angola, por exemplo, uma vez que são colónias diferentes. Em determinado período, em Cabo Verde, não há homens e são as mulheres que trabalham nas obras; enquanto isso, em Angola ou Moçambique, elas também trabalham, mas estão escondidas nas unidades familiares. O homem é quem recebe salário naquela unidade familiar e, assim, as mulheres desaparecem dos registos.
Outra questão é a da raça, porque estamos a falar de um estaleiro e nele há uma hierarquia. Dificilmente se encontraria num estaleiro destes um branco desqualificado. Mesmo os brancos condenados não estavam no final da pirâmide. Por outro lado, o estaleiro pode também ser um local de emancipação.
Encontramos nos registos, por exemplo, uma autonomização das identidades dos cabo‑verdianos, referidos como um contingente, a par dos europeus ou dos africanos. Os cabo‑verdianos eram trabalhadores excecionais, na visão colonial preconceituosa, e estavam enquadrados em destacamentos à parte por terem sensibilidade artística. Até determinado momento, os capatazes, chefes de obra, são todos europeus.
E relativamente às outras três palavras‑chave da análise, pode detalhar?
A quarta palavra‑chave tem a ver com a questão do género: qual é o papel das mulheres? Por exemplo, em Cabo Verde não há, a dada altura, homens – que iam para as roças de São Tomé ou para as outras colónias – pelo que são as mulheres quem surge como mão‑de‑obra.
Outra palavra‑chave é conflito. Muita da consciência pela independência teve a ver com conflitos laborais, em que os colonizados estavam a ser maltratados. Muitos destes conflitos foram inicialmente despoletadas por greves nos portos (na Guiné‑ Bissau) ou porque se ia obrigar as pessoas a trabalhar de graça (em São Tomé). Precisamos de perceber estes conflitos para entender como impactaram a própria sociedade colonial. O trabalho em massa nas obras públicas implica muita gente, que é desviada do setor agrícola, mineiro, e isso fez com que a sociedade colonial não estivesse satisfeita.
O último parâmetro é a resiliência: a capacidade de resistência que muitas destas comunidades têm ao serem recrutadas, a aprender técnicas que não são as delas, etc.
Estas são as seis palavras de leitura do projeto.
Como é que vão desenvolver a investigação?
A primeira parte tem a ver com a questão dos arquivos, com a identificação dos principais casos de estudo. Já temos quinze arquivos identificados e temos muita informação recolhida de anteriores projetos de investigação, do Arquivo Histórico Ultramarino, Torre do Tombo, Arquivo Histórico Militar. Também há alguns arquivos semelhantes em África. A partir de 1960, com as novas leis orgânicas do Ultramar, as colónias passaram a ter, em termos de administração pública, governos muito mais autónomos. Há muito material que só existe nesses países. A segunda parte é consolidar os casos de estudo e começar a traçar o perfil dos trabalhadores e destes estaleiros de obra.
Depois queremos trabalhar a história oral destas comunidades: recolher os testemunhos possíveis onde houve recrutamento de mão‑de‑obra. A construção da narrativa à volta deste processo poderá ajudar os nossos colegas arquitetos de prancheta, que trabalham com comunidades com muitas limitações de fundos. Acreditamos que o conhecimento de populações que não têm expertise na área da construção pode contribuir para o desenho espacializado.
Quais são os parâmetros temporais desta investigação?
Basicamente vamos do final da Monarquia Constitucional, a partir da Conferência de Berlim, até aos dois ou três anos depois da independência destes países (1978‑79).
Para este trabalho, com várias interseções temáticas, reuniu uma equipa multidisciplinar?
Sim, uma equipa com grande domínio sobre o território africano. Somos maioritariamente arquitetos e historiadores de arquitetura. Além de mim, a coordenação da equipa inclui a Inês Lima Rodrigues, investigadora sénior do Dinâmia’CET, perita em referenciação geográfica e mapeamento (ver Equipa).
Qual é o vosso compromisso de apresentação de resultados finais deste projeto?
Vamos fazer um congresso que, aliás, será o terceiro da série Colonial and Post-Colonial Landscapes, na Fundação Calouste Gulbenkian. Vamos voltar a reunir em Lisboa um grupo de pessoas da área de estudos pós‑coloniais em arquitetura. Haverá também a produção normal de artigos, e prevemos fazer workshops com algumas das comunidades dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), onde vamos tentar ver se houve técnicas apreendidas e posteriormente aplicadas. Espero retomar uma coluna de divulgação de arquitetura na imprensa e ponderamos criar um podcast ou um programa de rádio. Vamos ainda ter um site interativo, onde estarão os documentos do projeto, e pretendemos que as pessoas possam contribuir com conteúdos e partilhar nele fotos ou depoimentos
O projeto “COST Action CA18137 – European Middle Class Mass Housing”, coordenado pela arquiteta e investigadora Ana Vaz Milheiro, reúne investigadoras do Dinâmia’CET – Inês Lima Rodrigues, Filipa Fiúza, Francesca Vita e Sónia Henrique, no âmbito dos Arquivos, ainda Beatriz Serrazina, do CES Coimbra, bem como Patricia Noormahomed (Unitiva Maputo e Universidade Politécnica de Madrid) na área da Arquitetura e História da Arquitetura.