SOCIEDADE

Pessoas LGBTI+ e Políticas Públicas



Sandra Saleiro 1


SANDRA SALEIRO

Professora Iscte Sociologia e Políticas Públicas

Investigadora CIES‑Iscte


A própria comunidade LGBTI+ é muito diversa e uma das coisas que nos interessava perceber era quais os grupos mais discriminados dentro da própria sigla.



Como é que o Iscte se envolve num estudo de âmbito nacional sobre as necessidades e discriminações na comunidade LGBTI+?  

O CIES‑Iscte concorreu e ganhou um concurso lançado pela Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) que visava a realização específica deste estudo, previsto no Plano Nacional de Ação Contra a Discriminação em função da Orientação sexual, Identidade e Expressão de género e Características sexuais (OIEC). Este plano faz parte da Estratégia Nacional para a Igualdade de Género e Não Discriminação e entrou em vigor em 2018. Um dos objetivos era recolher informação para sustentar um novo plano de ação, no âmbito das políticas públicas. É por isso que, no Estudo (que está disponível no site da CIG) há um capítulo com recomendações de medidas para a promoção da igualdade e não discriminação em função da OIEC.

 

Em termos de metodologias, como é que o estudo foi desenvolvido?

Para o levantamento da discriminação e das necessidades das pessoas LGBTI+ (Lésbica, Gay, Bissexual, Transgénero, Intersexo e com outras orientações sexuais e identidades de género não normativas) optámos por uma metodologia qualitativa, através da auscultação de entidades representativas e/ou que trabalham com esta população. Quisemos ter, de forma abrangente, entidades de âmbito nacional, regional ou local. E também, de uma perspetiva interseccional, entidades que, não sendo direcionadas especificamente para o trabalho com esta população, a abarcam na sua intervenção: por exemplo, que trabalham com população migrante, ou com população sem abrigo, ou com trabalhadoras do sexo. Promovemos quatro grupos focais com essas entidades e fizemos entrevistas a representantes das associações LGBTI+ que fazem parte da rede nacional de apoio às vítimas de violência doméstica: ILGA Portugal, Associação Ponto i e Casa Qui.

 

E porquê essas três entidades?

São as que têm uma ação mais institucionalizada de apoio às pessoas LGBTI+, incorporada nas políticas públicas. Partimos também dos dados destas associações para, numa componente mais quantitativa, sistematizar e analisar os dados dos atendimentos que estas três associações fazem. Acautelando naturalmente todas as questões éticas e de sigilo, essas associações facultaram‑nos o acesso anonimizado aos dados de recurso para os trabalharmos: quem recorre a essas associações e quais as necessidades que têm ou as discriminações que reportam. Isto correspondeu a um levantamento mais quantitativo dentro do mapeamento da discriminação.
Um outro objetivo do estudo passava por discutir, à luz da legislação nacional e comunitária, a questão dos crimes de ódio de natureza, homofóbica, transfóbica e interfóbica.
Uma das características da nossa realidade é a elevada sub denúncia. Sabemos que a discriminação existe e está documentada, nomeadamente nestes dados de atendimento das associações, mas depois não chega à denúncia formal e interessava‑nos saber porquê.

 

Reconhecer publicamente este tipo de discriminação e crimes, pelas autoridades, é complexo e criou obstáculos à investigação?

É bastante complexo porque há muitas denúncias que são feitas às associações, pese embora sejam, ainda assim, uma pequena parte da discriminação que acontece na realidade, mas são muito menos as que avançam para denúncia formal. E mesmo na denúncia formal não se consegue identificar qual é a motivação, porque a nossa legislação também não tem uma figura independente para o crime de ódio motivado pelas questões da OIEC. Contámos com a colaboração de entidades como a própria CIG e a Procuradoria‑Geral da República (PGR) e das forças de segurança para a disponibilização de dados e processos das denúncias.
Fomos analisar as denúncias por palavras‑chave para ver quais as que podiam indiciar crimes de ódio motivados pela OIEC. O resultado permitiu perceber que são muito poucas e é muito difícil perceber se é esta a motivação.

 

A equipa de investigação mobilizou também estudantes?

O estudo contou com uma equipa multidisciplinar, da área da sociologia, da psicologia e do serviço social e integrou investigadores e investigadoras sénior e júnior, nomeadamente estudantes de mestrado e de doutoramento. Decorreu entre agosto de 2021 a março de 2022.   

 


As forças de segurança e os serviços de proteção social foram também referidos como contextos de discriminação



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Em termos de recomendações produzidas neste trabalho, o que há a destacar?

Tivemos a preocupação de detalhar medidas concretas que fossem possíveis de operacionalizar, e isso foi reconhecido aquando do lançamento dos resultados do Estudo pela tutela.
Mapeamos as necessidades setoriais e transversais. Através da análise de conteúdo, fomos perceber no discurso das pessoas participantes quais eram os contextos mais referidos, quer em termos de discriminação ou necessitando de medidas. E em quase todos os contextos foi denunciada discriminação e necessidade de intervenção das políticas públicas. Em primeiro lugar continua a evidenciar‑ se o setor da saúde, como aquele em que há grande discriminação deste tipo de população; não exclusivamente, mas muito por conta das pessoas trans, pois uma parte significativa tem necessidade de recorrer aos serviços de saúde no decurso do seu processo de transição. Estas matérias continuam a não estar inscritas nos curricula dos cursos de saúde, pelo que resta obter conhecimento por iniciativa própria. Muitas vezes a discriminação deriva do desconhecimento; outras do preconceito dos e das profissionais de saúde.

 

Em termos setoriais, quais são os outros contextos relevantes das discriminações?

Para além da saúde, a educação, a habitação, o emprego (no acesso e no próprio local de trabalho). De referir que as forças de segurança e também os serviços de proteção social foram também referidos como contextos de discriminação. O caso das forças de segurança é particularmente grave porque são as entidades a quem as pessoas que se sentem discriminadas vão ter de recorrer. Ora, se também aí há discriminação, as pessoas ou não recorrem a elas mesmo quando precisariam ou vão ser duplamente discriminadas, ao invés de serem protegidas.
As estruturas de proteção social, como os centros de acolhimento temporário e as estruturas residenciais, surgiram também bastante evidenciadas porque o estudo foi realizado logo no rescaldo da pandemia. E uma das conclusões do estudo é a de que a crise pandémica acentuou a discriminação sobre as pessoas LGBTI+.

 

De que forma?

Colocou as famílias a viver sob o mesmo teto, 24 sobre 24 horas. Sobretudo na população mais jovem, essa situação proporcionou a perceção ou a confirmação que se estava perante um familiar LGBTI+, quer isso tenha sido revelado ou tenha sido percebido. E tristemente houve muitas famílias a colocar os seus e as suas jovens fora de casa. Nesta situação, os centros de acolhimento e estruturas residenciais, as “casas abrigo para vítimas de violência” seriam um apoio muito importante. Mas este tempo de crise também veio ampliar o que já se sabia: não apenas que estas estruturas são insuficientes para a procura, como que não estão preparadas, por exemplo, para acolher um ou uma jovem trans, porque recebem as pessoas de acordo como sexo atribuído à nascença.
Já agora, é também importante referir que o estudo revelou também que um dos principais contextos de discriminação da população LGBTI+ é a própria família. E a família é absolutamente essencial para a estruturação e a trajetória de vida destas como de todas as pessoas. Os dados dos atendimentos indicaram que, ao contrário daquilo que acontece para a população em geral, a principal violência reportada na população LGBTI+ é a violência parental. Esta particularidade deve ser tida em conta nas políticas públicas.

 

Quais as vossas recomendações? Campanhas de sensibilização? Formação?

Temos de passar das ações de sensibilização e formação pontuais para introduzir estas matérias nos curricula dos cursos de formação de base, não apenas na saúde, mas também na formação em serviço social, de docentes, etc. Assim não dependerá do interesse pessoal em saber mais, será uma formação profissional e universal.
A forma de estruturalmente combatermos esta discriminação é incluir as questões da OIEC nos curricula de todos os níveis de ensino e nas próprias práticas pedagógicas. Não se trata apenas de haver matérias que abordam estas questões, mas de incluir a diversidade e, neste caso, a diversidade de género, de identidades e de características sexuais, nas matérias lecionadas. Por exemplo, continua a ser ensinado, nas ciências da natureza e na biologia, que existem apenas dois tipos de corpos – os machos e as fêmeas – deixando de fora os corpos intersexo. E já sabemos que existem tantas pessoas intersexo como pessoas ruivas.
Dou outro exemplo: num manual escolar podemos ilustrar com uma família de pessoas do mesmo sexo quando surge a menção a uma família.

 

Há necessidade de censos que permita conhecer com maior detalhe a realidade desta população?

É uma das recomendações de carácter transversal, e tem a ver com termos informação que nos permita sustentar a intervenção. Uma das recomendações é trabalhar a possibilidade de introdução das variáveis da orientação sexual, da identidade de género e das características sexuais, nos novos censos, como está a acontecer, por exemplo, no Reino Unido.
Propusemos outras medidas transversais que têm a ver com os próprios serviços públicos adaptarem a sua comunicação, os seus formulários, à realidade destas pessoas.
Dou mais um exemplo: os formulários onde diz “nome da mãe” e “nome do pai” estão desfasados da realidade. Hoje temos famílias com duas mães ou dois pais e, mesmo tendo reconhecimento legal, muitas vezes isso não é transposto para as práticas administrativas. As questões da identidade de género também têm de ser acauteladas, nomeadamente a transposição administrativa do direito adquirido legalmente de a pessoa ser tratada pelo nome com que se identifica, independentemente do nome legal. Outra recomendação vai no sentido do reforço da territorialização das políticas públicas para a OIEC, por exemplo através de planos municipais de combate à discriminação em função da OIEC.

 

Será também necessária maior intervenção a nível local?

Havendo um gap entre a lei escrita e a lei vivida, uma maneira de o estreitar, é atuar pelo lado das políticas públicas, incluindo as municipais e intermunicipais. Ou seja, não pensar só no que é que o Estado central pode fazer pela mudança necessária, mas também o que é que os municípios, que estão mais próximos das populações, podem fazer. Houve o exemplo do município de Lisboa que, no anterior mandato, foi pioneiro com um Plano especificamente para as questões LGBTI+. Há outras boas práticas, como o município de Matosinhos que apoia a Associação Plano i, que tem intervenção na zona norte. Outra medida muito importante é haver em cada distrito uma estrutura de atendimento especializada para estas pessoas, seja através de uma ONG, seja das Câmaras Municipais. Isto porque, apesar de já termos uma boa cobertura nacional de estruturas de apoio às vítimas de violência doméstica ou violência de género, por vezes não estão preparadas para atender às especificidades da população LGBTI+.
O Estudo também conclui que há uma grande diferença na situação e no apoio das pessoas que estão nas grandes cidades e no resto do país. Urge combater esta desigualdade.

 

E em termos dos grupos mais discriminados?

Na base da discriminação em função da orientação sexual, da identidade de género e das características sexuais está a ideia de que a humanidade se divide em dois sexos/tipos de corpos, que dão origem respetivamente a duas identidades de género e a atrações sexuais pelo “sexo oposto”. Esta é uma compreensão simplista da humanidade, que deixa muitas pessoas de fora e que deve ser combatida. A humanidade é muito mais diversa do que isto. A própria comunidade LGBTI+ é muito diversa e uma das coisas que nos interessava perceber era quais os grupos mais discriminados dentro da própria sigla.
Concluiu‑se que são as pessoas trans, e sobretudo as mulheres trans, as maiores vítimas de discriminação porque juntam ao cisgenderismo (a ideia de que a humanidade é toda cisgénero, ou seja, em que há consonância entre o sexo atribuído à nascença e a identidade de género) e o sexismo (a discriminação do feminino). E se, ao facto de ser uma mulher trans, acrescentarmos, por exemplo, ser imigrante, ser trabalhadora sexual, ser sem abrigo, ter HIV ou não ter uma situação legal, então, a discriminação vai ser exponencial e adquirir contornos específicos, com consequências ao nível das necessidades.

 

Tornase necessário prosseguir este trabalho?

A expectativa para estas recomendações seria a sua inclusão num novo Plano Nacional de combate à discriminação em função da OIEC. O novo plano acabou de sair e o que se percebe é que algumas medidas foram contempladas, outras não. A decisão de implementar as recomendações é sempre uma decisão política. A nós, investigadoras e investigadores, compete‑nos recolher a informação, trata‑ la, sistematiza‑ la, tirar as conclusões e depois fazer as recomendações que tenham em conta aquilo que foram as principais conclusões. Mas uma das grandes conclusões do estudo é que há, na sociedade portuguesa, um grande hiato entre os direitos reconhecidos na lei e a realidade das pessoas. Portugal fica sempre muito bem posicionado nos rankings dos direitos, mas depois, quando vamos fazer inquéritos à população LGBTI+, Portugal já não fica assim tão bem posicionado.


grafico sandra saleiro


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