PSICOLOGIA

O cérebro musical e as emoções


César Lima 1


CÉSAR LIMA

Professor Iscte Ciências Sociais e Humanas

Investigador CIS‑Iscte


É preciso perceber que mecanismos fundamentam estas associações – entre música e outros domínios – e o que é que isso nos diz sobre a forma como o nosso cérebro funciona



Quais as questões que o projeto MUSE pretende responder?

MUSE significa Música para o Desenvolvimento de Competências Socio‑Emocionais e é um projeto (*) que se insere na área das neurociências cognitivas. Queremos contribuir para compreender dois conceitos fundamentais. O de “plasticidade cerebral”, ou seja, como é que o cérebro muda e se adapta em função da experiência; e o de “transferência de aprendizagem”, ou seja, como é que a aprendizagem num determinado domínio pode ter consequências que vão para lá desse domínio. Para estudarmos estes conceitos utilizamos como modelo a experiência musical.
A pergunta que fazemos é a de saber se a plasticidade cerebral causada pela aprendizagem de um instrumento musical pode ter consequências, não só nas competências musicais que obviamente melhoram, mas também em competências extramusicais. Esta questão é importante, até pelas implicações educativas que pode ter.
Há estudos que perguntam se aprender música aumenta o QI ou o raciocínio visuoespacial, por exemplo, mas é pouco estudado se aprender música melhora as nossas competências socio‑emocionais, como a capacidade de reconhecer emoções nos outros. Estudámos crianças e adultos, e combinámos técnicas da psicologia experimental com técnicas das neurociências, como a eletroencefalografia e a ressonância magnética.

 

Como é que foi formada esta equipa de investigação?

A equipa que coordeno envolve vários colaboradores internacionais e nacionais. Tivemos como parceiros a Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto – onde me formei e estava na altura em que concorri a este projeto, que trouxe para o Iscte – e a Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. Ter uma parceria na Universidade do Porto foi útil pois o grupo de investigação local tinha experiência em estudos longitudinais sobre experiência musical e o estudo que fizemos, com crianças, foi implementado na zona do Porto. Na Psicologia da Universidade de Lisboa há um grupo liderado pela Professora Ana Pinheiro, que tem ampla experiência no âmbito da encefalografia, que é também uma componente deste projeto.
No Iscte houve outras pessoas envolvidas, incluindo estudantes de doutoramento e uma investigadora pos‑doutorada, a Doutora Marta Martins. Temos também um investigador FCT sénior, que veio de Toronto, Glenn Schellenberg, e outros colaboradores internacionais, nomeadamente do Reino Unido, com quem eu já trabalhava antes deste projeto: Sophie Scott, neurocientista da Universidade de Londres, e Samuel Evans, do King’s College de Londres. Todos colaboraram em diferentes dimensões do projeto.
Quando falamos em projetos na área das neurociências, o facto de se reunirem equipas diversificadas é comum. Muitas vezes precisamos de conjugar pessoas com diferentes perfis, com diferentes expertises, para podermos dar conta das exigências das várias facetas do projeto.

 


O problema da causalidade é central e muito debatido na investigação. Por isso conjugamos estudos correlacionais com estudos longitudinais


E do ponto de vista das metodologias utilizadas?

O projeto inclui vários estudos. Com adultos utilizamos uma abordagem correlacional, em que comparamos pessoas com e sem experiência musical para vermos até que ponto há diferenças, por exemplo, no funcionamento cerebral, seja com ressonância magnética ou com eletroencefalografia. Mas estes estudos têm a limitação de não permitirem inferir causalidade. Se os músicos têm uma atividade cerebral, em determinada área, distinta de pessoas que nunca aprenderam música, neste tipo de estudos não conseguimos perceber se isso é uma consequência de terem aprendido música – um reflexo de plasticidade – ou se a diferença já lá estava antes e foi na verdade o que fez com que essas pessoas tivessem aprendido música. Este problema da causalidade é central e muito debatido na investigação.
Por isso, conjugamos estudos correlacionais com estudos longitudinais, nomeadamente em crianças. Exemplificando: numa escola, criamos grupos de crianças; um determinado grupo tem um programa de treino musical, outro grupo tem um programa de desporto, e um terceiro grupo não faz nada. Garantimos que antes desses programas de treino os grupos são semelhantes, do ponto de vista demográfico, idade e em termos cognitivos. Depois, administramos esses programas de treino e verificamos até que ponto os grupos diferem. Se eles diferem depois do treino e não antes do treino isso dá‑nos evidência mais forte de causalidade.

 

Quais foram as conclusões deste projeto de investigação?

Alguns dados estão ainda em análise ou em via de ser publicados. Em termos de contributo central, confirmamos que a plasticidade cerebral que é induzida pela experiência musical pode ter consequências para além da música. Mas essas consequências não vão tão longe quanto muitos autores argumentam. Criou‑ se, nos últimos 20 anos, a ideia de que a música nos torna mais inteligentes, inspirada pela descoberta do efeito Mozart nos anos 90. Uma série de estudos documentaram que, de facto, o treino em música está correlacionado com melhor desempenho em testes de QI. E isto sugeriria que a prática musical pode ter consequências muito além do que é saber tocar piano, por exemplo.
Os nossos resultados vêm moderar este argumento. Descobrimos que em domínios relativamente próximos da música – tarefas auditivas ou de controlo motor – efetivamente o treino musical parece induzir pequenas melhorias. Estas tarefas mais próximas da música são o que chamamos near transfer ou transferência próxima. Mas se a pergunta for: será que há efeitos de far transfer ou transferência distante? Nesse caso, não há ou são negligenciáveis. Verificamos isso empiricamente, e numa metaanálise que reviu todos os estudos de efeitos da música na linguagem, observamos que os efeitos são inexistentes ou muito pequenos. Na área central do projeto, o processamento socio‑emocional (capacidade de reconhecer emoções em expressões faciais – por exemplo, saber pelo tom de voz se alguém está alegre ou triste) – concluímos que não houve vantagens causadas pelo treino musical.

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A plasticidade cerebral que é induzida pela experiência musical pode ter consequências para além da música. Mas essas consequências não vão tão longe quanto muitos autores argumentam



É uma conclusão contracorrente…

Sim. Verificámos que os efeitos de transferência do treino musical são mais pequenos do que pensávamos e parecem limitar‑se a tarefas muito próximas do que é treinado.
Outro contributo: embora os investigadores estejam muito focados na plasticidade e transferência – no que potencialmente acontece na sequência de aprendermos a tocar um instrumento musical – devemos começar a pensar no que acontece antes. O que é que faz com que alguém vá aprender música? Haverá diferenças à partida?
Há associações entre musicalidade ‘natural’ e capacidades socio‑musicais que não precisam de treino para emergirem. Se avaliarmos a musicalidade natural de pessoas que nunca aprenderam música, verificamos que pode estar associada a aspetos extramusicais. Por exemplo, pessoas naturalmente mais musicais também são capazes de identificar melhor emoções através do tom de voz.
Estas associações entre a música e outros domínios cognitivos fazem‑nos questionar como é que a música está organizada no cérebro em relação a outras funções cognitivas. Podemos pensar que alguém que tem mais aptidão musical vai mais provavelmente querer aprender a tocar um instrumento. Por isso, quando encontramos correlações entre treino musical e QI, ou entre treino musical e capacidades socio‑emocionais, por exemplo, talvez não seja devido ao treino, mas sim devido à maior aptidão musical, provavelmente já presente antes do treino. As diversas vantagens que vemos associadas ao treino musical podem assim refletir não só plasticidade cerebral, mas associações inerentes entre musicalidade e outras competências. Daqui nascem novas questões: que áreas cerebrais são comuns à música e à linguagem? Ou à música e ao processamento emocional?

 


Concluímos que pessoas com treino, mas que não são profissionais têm capacidades cognitivas globais, um pouco superiores às dos não músicos


E o que descobriram?

Uma das descobertas importantes veio justamente na sequência do interesse em saber se a música melhora a cognição, ou se há outras variáveis que devem ser consideradas. No caso do QI, se a resposta fosse positiva, os grandes músicos deviam ser ‘génios’ e intuitivamente não é isso que acontece necessariamente.
Estudamos um grupo grande de músicos e comparamos as pessoas que aprenderam música e depois abandonaram essa aprendizagem/prática – é o meu caso, estudei piano – com músicos que fizeram carreira, que estão nas orquestras, no jazz, que fizeram conservatório, etc. Concluímos que as pessoas com treino, mas que não são profissionais, têm capacidades cognitivas globais um pouco superiores às dos não músicos.Contudo, os músicos profissionais, cuja experiência na música é mais elevada, não apresentam esta vantagem. São semelhantes a não músicos.
Este resultado aparentemente contraintuitivo foi importante porque mostra claramente que a relação entre treino musical e desempenho cognitivo não é de causa‑efeito. Se assim fosse, mais treino estaria associado a maiores vantagens. Com esta descoberta vem uma série de novas questões sobre causalidade e diferentes perfis de expertise musical.

 

E agora, que caminhos poderiam ser explorados no seguimento deste projeto?

Os projetos de investigação geram mais perguntas do que respostas. Isso é bom, pois encontramos perguntas que nem sabíamos que iríamos colocar à partida.
A partir daqui queremos perceber melhor quais são os limites da plasticidade no domínio do treino musical e temos mais cuidado com extrapolações exageradas a partir de correlações. A maior parte dos estudos não são longitudinais e, não o sendo, não sabemos se as diferenças detetadas não estariam presentes já antes… esta é uma cautela que precisamos ter. Mas as perguntas que agora me entusiasmam passam por perceber o que é que torna alguém mais ou menos musical, independentemente dessa pessoa vir ou não a aprender um instrumento musical.
Outra pergunta: quais são as implicações de ser mais ou menos musical para domínios extramusicais? Será que alguém musicalmente mais ‘talentoso’ é melhor a compreender a fala num ambiente ruidoso, por exemplo? E o que há de comum aos dois aspetos, a perceção da música e a perceção de fala? É preciso perceber que mecanismos fundamentam estas associações – entre música e outros domínios – e o que é que isso nos diz sobre a forma como o nosso cérebro funciona. Esta linha de investigação sobre a associação da música com outros domínios permite‑nos obter informação útil. Há já projetos de doutoramento a investigar nestes campos, na área das capacidades psicoacústicas.

 

Há fundamento em pensar que haja bases biológicas para uma pessoa, na sua expressão, ser mais ou menos musical?

Sem dúvida! Há diversos estudos, muitos feitos com gémeos, que comprovam que a componente hereditária da música pode ser muito forte, cerca de 40% em média, podendo ir até aos 80%, dependendo da competência musical de que estamos a falar. Mas mais interessante é que não só as capacidades musicais têm uma componente genética, como a propensão para aprender música, e o tempo que a pessoa vai investir nessa aprendizagem, têm também uma influência genética. E mesmo associações entre a música e capacidades cognitivas – tipicamente consideradas como uma relação causa‑ efeito, como falamos – sabemos hoje que têm uma componente biológica. Parece haver uma componente genética partilhada entre música e competências cognitivas gerais, que contribui para explicar a associação.

 

* O projeto foi financiado pela FCT (PTDC/PSI‑GER/ 28274/2017) e cofinanciado pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) através do Programa Operacional Regional de Lisboa 2020 (LISBOA‑01‑0145‑FEDER‑028274) e do Programa Operacional Competitividade e Internacionalização (POCI‑01‑0145‑FEDER‑028274).


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