SAÚDE

Dados de saúde partilhados num sistema europeu




HENRIQUE MARTINS

Professor  Iscte-Sintra

Investigador Integrado BRU-Iscte



Sabe que com o simples telemóvel pode aviar uma receita médica noutro país? Ou que poderá vir a aceder, de forma fácil, aos seus exames médicos e consultá-los num hospital de outra cidade europeia? Com 25 parceiros, o Iscte lançou um projeto para criação de soluções de saúde digital em formato partilhável, permitindo o intercâmbio transfronteiriço desses dados




O projeto XpanDH, que coordena, propôs a criação de um formato comum e de um conjunto de regras que permitam que sistemas informáticos de países diferentes possam trocar dados de saúde de forma segura e clinicamente útil. Como é que se torna operacional este projeto europeu de interligar hospitais, centros de saúde, laboratórios e registos nacionais?

Quando criámos o consórcio, utilizámos uma abordagem open consortium, ou seja, fizemos uma busca ativa de novas adesões. Assim, fomos buscar parceiros estratégicos. Conseguimos envolver os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) e o Ministério da Saúde de Espanha, que não estavam no projeto inicial. Dessa forma, expandimos de 26 para 33 o número de parceiros envolvidos. No Iscte, estão envolvidas três unidades de investigação: Business Research Unit (BRU), Centro de Investigação e Intervenção Social (CIS) e Centro de Investigação em Ciências da Informação, Tecnologias e Arquitetura (ISTAR).

 

Há mais pessoas no projeto, possivelmente com diferentes tipos de know-how, para possibilitar a partilha de dados de saúde de forma transnacional?

Estes projetos europeus têm os chamados work packages – os pacotes de trabalho, as subdivisões do projeto. A coordenação está com o Iscte, que tem também o work package 1, liderado por mim e com a inestimável ajuda do Gestor de Projeto, Anderson Carmo.
Temos pessoas muito experientes, que já coordenaram muitos projetos europeus. O Giorgio Cangioli, italiano, está à frente do work package 2 e tem muita experiência informática e na área dos standards. No work package 3 temos uma pessoa da indústria digital, a francesa Sofia Franconi, que conhece a indústria que desenvolve soluções informáticas e traz esse know-how para a discussão. No work package 4, temos a Maria Marques, da Uninova, com formação em sistemas de controlo em computadores. No work package 5 temos uma pequena consultora alemã, a Empirica, especializada em projetos europeus de saúde e estratégia, com a Carola Schulz. O work package 6 é liderado pelo Dipak Karla, um médico inglês de Medicina Geral e Familiar, que se especializou em data analitics (dados de saúde), mas também já liderou vários projetos para uso dos dados na investigação científica e, no 7, temos um parceiro polaco, através da rede ECHAlliance (European Connected Health Alliance), onde a Karolina Mackiewicz, diretora de inovação, ficou com a disseminação e networking. Temos, pois, know-how técnico, mas também saberes da engenharia à sociologia.
E é disso exemplo a professora Luisa Lima, do Iscte Saúde, que organizou a primeira reunião com as associações de doentes portuguesas sobre este processo do registo eletrónico europeu e vai conduzir as reuniões noutros países. A Marta Matos, também investigadora do Iscte, está com uma área de cocriação entre engenharia informática e doentes.

 


Em Portugal temos muita ligação no setor público, temos muita ligação no setor privado, mas não temos ligação do público com o privado



Que outros aspetos importantes destacam neste projeto?

O projeto abarca todas as vertentes de uma universidade, quer o ensino, quer a investigação, quer o relacionamento com o resto da sociedade, por exemplo, a transferência da tecnologia e do conhecimento com o chamado ecossistema.
Neste projeto, os parceiros do ecossistema têm vários perfis, desde organizações não governamentais (ONG), entidades públicas e empresas. Temos uma empresa da área da informática, a Área Metropolitana de Lisboa, a CP, algumas ONG como a Inovar Autismo, a Confederação Portuguesa de Coletividades de Cultura e Recreio ou a Confederação Portuguesa de Voluntariado. Há duas organizações finlandesas, outras da Eslováquia, e temos também, fora da Europa, a Universidade de Sherbrooke, no Canadá, como parceiro associado.

Como é que tudo se coordena para fazer avançar o projeto?

Estes projetos europeus têm, de início, um plano de trabalho aprovado pela Comissão Europeia. Há um conjunto de tarefas, com um tempo de duração e, a meio do percurso ou no final, é suposto produzir- -se algo de concreto – deliverables (entregáveis). Temos uma reunião mensal dos work packages líderes e, cada um destes, tem também as suas reuniões com os parceiros que participam na sua área e as respetivas equipas. Temos ainda o consortium meeting, em que participam todos os parceiros, e que se realiza de dois em dois meses. Temos também webinars que são realizados pela parte de disseminação de informação, normalmente envolvendo vários parceiros.
O website é muito importante, pois é um ponto de confluência de informação. Este projeto tem pouco dinheiro: dois milhões de euros para dois anos, a distribuir por 26 parceiros! Em dezembro de 2023, fizemos uma reunião em Bruxelas, a pedido da própria Comissão Europeia, o que foi uma honra – não estava previsto no projeto – e acabamos por ter muita gente. Em dezembro de 2024, iremos ter o encerramento do projeto no Iscte e será uma oportunidade para divulgar o ecossistema português.


A origem do serviço MyHealth@EU

O facto de uma receita já poder ser legível noutro país – através do serviço MyHealth@EU – e haver alguma interoperabilidade no acesso a dados de saúde nos Estados-membros, partiu de uma decisão política da Comissão Europeia ou foi motivado por iniciativa dos Estados?
Henrique Martins Ambos. Essa é uma história interessante que começa antes da Diretiva 2011/24/EU, de 9 de março de 2011.
Em 2007/2008, entrou uma queixa no Tribunal de Justiça da União Europeia de um doente alemão que denunciava que as seguradoras alemãs se recusavam a pagar despesas de saúde efetuadas fora da Alemanha – no caso dele, tratava-se de óculos. O caso foi parar ao tribunal da UE. O pressuposto era simples: se a UE é um espaço de livre circulação de pessoas e mercadorias e um cidadão vai comprar um dispositivo ótico a outro país, havendo um seguro de saúde, não há motivo para não ser ressarcido da despesa, pelo menos com o equivalente que teria no país de origem.
Isto fez tanto sentido que o Tribunal proferiu uma condenação e exortou a Comissão Europeia – com esta decisão jurisprudencial – a criar um instrumento legal que permitisse esse reconhecimento transfronteiriço.
Por isso se chama Cross Border Directive of Patients Rights. No fundo, é uma diretiva de direitos. Quando isso aconteceu já estava a decorrer um projeto chamado epSOS – European Patient Smart Open Services, que foi o primeiro projeto para partilha de dados entre países. Começou em 2008 e os países que o integravam contribuíram para a escrita da Diretiva: a França, a Alemanha e a Áustria. E, nessa ocasião, foi decidido incluir um artigo sobre Patient Summary e sobre ePrescription.
Desta forma, a Diretiva passou a ter uma estrutura de policy e também o conceito de partilha de dados transfronteiriços, com o argumento maravilhoso de: se os doentes circulam e vamos pagar a despesa que fazem, mais vale que tenham pouca despesa. E devem ter acesso aos medicamentos que tomam, independentemente de onde estejam.
No setor da saúde os tratados europeus empurram para os países tudo o que é do funcionamento de sistemas de saúde. As exceções são a aprovação de medicamentos, dos produtos derivados do sangue, as questões da política do tabaco e das infeções transfronteiriças, como a Covid – são estes os únicos aspetos da área da saúde objeto de política legislativa europeia.
Assim, a base legal da Diretiva não são as questões de saúde, mas sim o mercado livre! – argumentos que se mantêm com o mercado livre digital.


… Ecossistema português de saúde que considera muito evoluído.

É. O nosso ecossistema é perfeito para este projeto. Acontece que temos muita ligação no setor público, temos muita ligação no setor privado, mas não temos ligação do público com o privado.
Os SPMS têm estado muito alinhados com este projeto, porque a ideia é criar regras europeias dentro do sistema português. Isso vai permitir que, uma vez resolvidas as ligações, por exemplo, do Hospital da Luz com o Hospital de Santa Maria, estaremos também a resolver as ligações do Santa Maria com o Hospital Universitário Charité, de Berlim. Um dos parceiros que integrou o projeto a meio foi a SIBS (Forward Payment Solutions, SA). Estar no negócio das transações na saúde é o futuro. Não há nenhum estabelecimento de saúde que não tenha um multibanco. Talvez seja possível que, em vez de fazermos a ligação pelo Ministério da Saúde, possamos vir a usar essas ligações do multibanco, por exemplo, para imprimir as receitas! O multibanco é um mecanismo de comunicação poderosíssimo.
No limite – imagine – o que seria podermos picar um dedo num multibanco para fazer um teste? Seria tornar as caixas multibanco em minis pontos de saúde! É importante projetar o uso destas coisas, para além daquilo que é habitual, criando novos serviços digitais, novas formas de olhar para a circulação de informação (objeto do work package 6).

Cada work package tem, pois, a sua especificidade.

Os work packages 2, 3 e 4 dão conta de como as empresas tecnológicas, os hospitais e as outras áreas do setor da saúde se preparam e usam o formato, tal qual ele vem sendo definido, discutido e vai sendo usado.
Os work packages 5, 6 e 7 são mais em torno do ecossistema, ou seja, como é que nós podemos motivar o ecossistema – associações de empresas, associações de doentes, associações da sociedade civil como a DECO, a academia – desde os académicos de software aos que estudam questões de inclusão digital, literacia – como é que o ecossistema pode ser, no fundo, dinamizado.
Nestas interações, descobrimos, por exemplo, que é relativamente inútil fazer um seminário para todas as associações de doentes porque não há uniformidade entre elas. É algo a ser feito no contexto de cada país. Em Portugal, se falarmos da receita eletrónica a maioria das pessoas conhece e já usou; na Alemanha não há receita eletrónica, é uma realidade que desconhecem. Já a participação em estudos clínicos, por exemplo, é mais elevada na Alemanha do que em Portugal. Quando se fala do processo clínico para efeitos de investigação e dos standards, é pacífico para um finlandês, já que a Finlândia tem uma Lei de Dados de Saúde há vários anos.


Em Portugal, o doente já vê algumas coisas online, mas outros países nem há um portal ou app do Serviço Nacional de Saúde



A partilha dos dados comporta riscos para a confidencialidade. É ou não um problema para este projeto poder avançar?

É certamente um problema conseguir conciliar a proteção dos meus dados e conseguir que os que cuidam de mim tenham acesso a dados relevantes.
Há uma terceira dimensão, que é o “uso primário”. Em Portugal, o doente já vê algumas coisas online/i>, mas outros países nem há um portal ou app do Serviço Nacional de Saúde. Há ainda a questão de quem trata da minha saúde aceder à minha informação, mas depois há também o plano dos investigadores – ou das pessoas do sistema de saúde pública – terem acesso a esses dados, sempre sem identificação nominal das pessoas. São dados administrativos que têm interesse para planeamento e nenhum interesse do ponto de vista clínico.

Há ainda muita renitência na partilha de dados, apesar da digitalização avançar em várias áreas?

Normalmente as pessoas estão predispostas a partilhar os dados contrariamente ao que é o entendimento dos sistemas jurídicos – há estudos a comprovar isto. Sabemos também que as associações de doentes são quase sempre a favor destes projetos, pois entendem a partilha como algo que vai trazer valor clínico para o doente.
Os medos sobre a privacidade são muito diferentes conforme as culturas. Os alemães são mais nervosos em relação à partilha de dados do que os cidadãos dos países do sul. Os mais descontraídos são os nórdicos, que não se preocupam que o governo saiba que problemas de saúde têm.

A União Europeia já impõe muitos limites em relação à proteção de dados?

Sim. Os limites do regime de RGPD são excessivos e não são claros. Ou seja, dois países podem fazer interpretações diferentes da mesma lei europeia e isso tem causado muitos problemas. A única forma de resolver a situação foi desenhando o Multilateral Agreement, um acordo legal entre países, que resolve o que estava por clarificar no RGPD.

Quando este projeto XpanDH terminar, no final de 2024, que resultados podemos esperar?

Iremos entregar dois projetos com um conjunto de evidências.
Num caso, iremos entregar propostas do que será a futura regulamentação deste Electronic Health Record. Uma vez aprovado o Regulamento, uma peça legal fundamental para cada uma das áreas – a receita médica, a nota de alta hospitalar, as imagens de exames, etc. – há um Implementing Act. E esse texto vai receber fortes contributos que nos foram pedidos, quer na estrutura, quer ao nível de conteúdos do documento.
O outro entregável é mais intangível: são as X-nets, ou seja, redes de parceiros que fomos aproximando e que queremos que se mantenham ativas quando o projeto terminar. Por exemplo, temos quinze associações de doentes portuguesas e, se conseguirmos mais dez sessões como a que tivemos com a professora Luísa Lima, podemos estar a falar de uma rede de 150 associações de doentes espalhadas por toda a Europa.
Vamos entregar este ativo ao Projeto xShare, que é liderado pela Catherine Chronaki, que também participa no XpanDH – como referi. Ela vai continuar estes esforços, no projeto xShare por mais dois anos. Vamos, pois, entregar documentos que ajudam hospitais, as empresas de IT e outras a adaptarem- se, e vamos também entregar as tais “redes de pessoas”


Glossário


CSA

Coordination Support Activation

EHDS

European Health Data Space

eHDSI ou eHealth DSI

eHealth Digital Service Infrastructure

EEHRxF

European Electronic Health

Record Exchange Format

(Ficheiro europeu para o Processo

Clínico Eletrónico) ou Registo de Saúde

Eletrónico Europeu

Projeto xShare

Expanding the European EHRxF to

share and effectively use health data

within the EHDS (a yellow button to

get your data in the European EHR

Exchange Format)

RGPD

Regime Geral de Proteção de Dados

SDOs

Standard Development Organizations

SIBS

Forward Payment Solutions, SA.,

ou anteriormente denominada

Sociedade Interbancária de Serviços, SA

SPMS

Serviços Partilhados

do Ministério da Saúde

XpanDH

Expanding Digital Health

(Standards for Health Data Ecosystem)

https://xpandh-project.iscte-iul.pt/


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