RESISTÊNCIA

Resistência às ditaduras numa Europa democrática




LUÍS NUNO RODRIGUES

Professor  Iscte Sociologia e Políticas Públicas

Investigador  CEI-Iscte



Portugal, Espanha e Grécia estiveram envolvidos num projeto que investigou o papel dos jovens europeus na resistência às ditaduras do sul da Europa, na segunda metade do século xx. Esta investigação, liderada pelo Iscte, sucede a outra sobre o papel dos vários países europeus na queda do muro de Berlim e no fim da Guerra Fria




O que se pretendeu com um projeto sobre o ativismo juvenil no sul da Europa em tempos de ditadura?

O projeto Free your mind: Youth Activism in Southern Europe in Times of Dictatorship procurou destacar a importância do ativismo juvenil e estudantil na oposição e no eventual derrube dos regimes ditatoriais da Europa do sul, na segunda metade do século xx. O projeto foi financiado pela Comissão Europeia no âmbito do programa Europe for Citizens, mais concretamente na linha European Remembrance 2020, sendo por isso um projeto de transferência de conhecimento que se destina sobretudo a atividades públicas e de disseminação, como conferências e exposições. Privilegia também um público jovem, pelo que a nossa ideia seria, com base na investigação, demonstrar a jovens europeus do século xxi como, apesar dos constrangimentos políticos e legais existentes, gerações anteriores de jovens foram capazes de se organizar, mobilizar e lutar nos países do sul da Europa contra regimes ditatoriais, contribuindo ativamente para o advento de democracias. A justificação teórica do projeto – essencial para o seu financiamento – era a explicação de que, apesar da 2.ª Guerra Mundial significar, em teoria, o triunfo das democracias sobre as ditaduras, houve determinados países, quer no sul da Europa, quer no leste europeu, em que permaneceram regimes ditatoriais. E explicar também que esses regimes adotaram leis e disposições legais que restringiam em muito os jovens, mas não só, as liberdades mais elementares: liberdade de associação, de manifestação, de reunião, etc. Pretendeu-se que os jovens atuais compreendessem que esses valores e direitos são preciosos, mas não são direitos ‘naturais’ – e como, ainda há tão pouco tempo, eles não existiam em países como Portugal, Espanha e Grécia.

 

Há, então, uma ausência de conhecimento dessa memória coletiva nas novas gerações, que procuraram colmatar?

Não digo que haja uma ausência de conhecimento, uma vez que esses temas já vão fazendo parte dos curricula universitários. Aqui no Iscte, por exemplo, os nossos cursos dão grande destaque à segunda metade do século xx, quer em Portugal, quer no resto do mundo. Mas queria enfatizar a ideia de que os pais e avós destas gerações, apesar de viverem em sociedades onde esses direitos lhes eram negados, tiveram capacidade para se organizar e lutar e, em última análise, tiveram um papel fundamental no derrube dessas ditaduras.
É certo que as ditaduras da Europa do sul não caíram só pelo ativismo juvenil, mas, no caso português, as sucessivas crises estudantis de 1962, de 1969, a crescente oposição dos jovens às guerras coloniais e o impacto de eventos internacionais, como a mobilização coletiva de Maio de 1968, ou, nos Estados Unidos contra a Guerra do Vietname, foi muito importante. Essa é uma história muito interessante de ser contada aos jovens de hoje, também para terem consciência de que têm de estar atentos, empenhados e manter uma cidadania ativa e consciente para garantirem os seus direitos. Por outro lado, importa perceber que a queda das ditaduras não ocorreu apenas naquele momento final em que, por exemplo em Portugal, pela intervenção das Forças Armadas, o regime caiu. Desde o início da década de 1960 que o ativismo juvenil está presente nos meios universitários, estendendo-se depois inclusivamente ao ensino secundário. E o “movimento dos capitães” acaba por ser também a expressão do inconformismo de uma geração mais jovem das Forças Armadas. Por outro lado, boa parte da geração que vai assumir liderança política no pós-25 de Abril foi forjada no ativismo de resistência à ditadura, e o antigo presidente Jorge Sampaio é disso um bom exemplo. Esse ativismo estudantil contra a ditadura foi uma escola política para uma jovem geração, no nosso país, mas também em Espanha e na Grécia.

 

A investigação inseriu-se, portanto, num projeto europeu de evocação de memória coletiva?

Esta linha de financiamento não se destinava a projetos unicamente de investigação, estando integrada no programa designado por Europe for Citizens e na linha European Rememberance 2020. O financiamento é atribuído pelo tipo de atividades que organizamos e privilegia muito o envolvimento de organizações da sociedade civil e não apenas de universidades. São projetos de transferência de conhecimento. Quanto maior for a audiência e mais diversificada em termos de nacionalidade e representatividade, maior é também o financiamento. Antes deste, tínhamos já desenvolvido um outro projeto que se debruçava sobre o papel dos países europeus na fase final da Guerra Fria e na queda do muro de Berlim. Essa é uma narrativa que normalmente associamos aos Estados Unidos e à União Soviética, mas sabemos que a Europa teve um papel importante no desanuviamento e depois no final da Guerra Fria, desde os anos 1970, tendo como ponto alto a cimeira de Helsínquia. Esse foi um projeto que desenvolvemos com parceiros da Finlândia, da Holanda e da Alemanha.
O nosso desafio às associações juvenis com que colaborámos foi o de identificar os “muros” que hoje em dia se erguem nas sociedades contemporâneas. Aqui, no Iscte, há um público natural para este tipo de projetos. Dirijo o Mestrado em Estudos Internacionais, lecionado em língua inglesa, em que cerca de 60% dos estudantes são de fora de Portugal. Todos os anos recebemos 90 alunos e, por conseguinte, conseguimos facilmente encher um auditório com estudantes interessadíssimos por estes temas, o que aconteceu tanto no primeiro como no segundo projeto, sobretudo se a eles juntarmos estudantes de História, Ciência Política e outras áreas.


A nossa ideia seria demonstrar a jovens europeus do século xxi, que apesar dos constrangimentos políticos e legais existentes, gerações anteriores de jovens foram capazes de se organizar, mobilizar e lutar contra regimes ditatoriais, contribuindo ativamente para o advento de democracias



Em termos de equipa e parcerias, como geriu o FYM – Free your mind: Youth Activism in Southern Europe in Times of Dictatorship?

Tivemos, desde o início, a colaboração da professora Guya Accornero, que é, no Iscte, a grande especialista no estudo dos movimentos estudantis. Ajudou-nos muito a compor a equipa e a identificar parceiros.
Como parceiros internacionais tivemos a Universidade Complutense de Madrid, com quem já tínhamos uma relação através do professor Óscar Garcia (que estudou o ativismo estudantil em Espanha nos anos 1960 e 1970) e a Universidade de Creta (Grécia), onde pontifica a professora Maria Kousis, uma autoridade nestes temas.
Foram também envolvidas associações da sociedade civil: na Grécia, a Sociedade de Estudos Históricos de Creta, que gere o museu histórico da cidade de Heraclião. Em Portugal, o parceiro da sociedade civil foi a Associação Ephemera, dirigida por José Pacheco Pereira.
Sendo projetos que privilegiam a divulgação e a transferência do conhecimento, aproveitamos este financiamento também para produzir conhecimento. A Ephemera tem um arquivo fantástico sobre o ativismo estudantil durante a ditadura e o próprio Pacheco Pereira tem esse passado. Um dos pontos altos do projeto foi a realização, aqui, no Iscte, de uma grande exposição, só com base no arquivo da Ephemera, que foi inaugurada pelo Presidente da Assembleia da República, e que esteve vários meses aberta, com visitas guiadas para estudantes de licenciatura, mestrado, etc.
Realizámos também uma conferência de abertura do projeto, com três painéis: um primeiro painel composto por académicos e investigadores, que faziam o ponto de situação do que sabemos, em termos históricos, sobre este assunto. Depois tivemos dois painéis de ativistas jovens: o primeiro de ativistas anteriores ao 25 de Abril e um segundo painel com ativistas do presente, envolvendo também a nossa Associação de Estudantes. Foi muito interessante perceber o contraste das preocupações de uns e de outros enquanto jovens. A sustentabilidade, as alterações climáticas, a inclusão, o direito à diferença são, hoje em dia, os temas pelos quais os jovens se mobilizam.


O risco de uma deriva autocrática e de uma erosão dos valores da democracia e da liberdade torna importante estudar momentos no passado em que isso já aconteceu


Relatórios sobre o estado da democracia, de que se fala noutra entrevista nesta revista, indicam que há hoje mais líderes autocráticos na Europa. Isso torna mais pertinente estes estudos?

Penso que sim. Como disse o historiador Marc Bloch, estudar e conhecer o passado também nos ajuda a melhor compreender o que acontece nos dias de hoje. Se existe esse risco de uma deriva autocrática e de uma erosão dos valores da democracia e da liberdade, torna-se importante estudar momentos do passado onde isso já aconteceu. É evidente que os contextos são diferentes, mas a preocupação dos historiadores é também salientar que, se há uma lição que a história nos ensina, é a de que o presente não é algo adquirido, mas um arranjo momentâneo. Vivemos num mundo em que os direitos adquiridos podem ser postos em causa, não durar para sempre, há avanços e recuos, e as novas gerações devem estar atentas a essas tendências e às propostas políticas que possam vir a pôr em causa esses direitos.
Insistimos há muitos anos, com os nossos alunos de História, sobre a importância do fact checking quando lidam com o passado: não fazer afirmações sobre a História, não escrever teses, artigos, livros, sem que as conclusões estejam devidamente sustentadas em documentação fidedigna, em fontes primárias, que comprovem aquilo que estamos a dizer.

O projeto apostava muito no impacto quantitativo que teria sobre as audiências. Além da exposição da Ephemera e da grande conferência que a acompanhou, que outras atividades integraram o projeto?

Houve uma atividade com estudantes de escolas secundárias, em Madrid, e um workshop seguido de um debate público na Grécia, este com intervenções de vários especialistas e vários testemunhos sobre a ditadura na Grécia. Houve também uma conferência mais académica, a conferência final. Tudo isto foi muito afetado pelo período da pandemia, que se revelou um desafio extra: como concretizar um projeto, pensado e preparado para atrair público, mas não ter esse público presencialmente?
Algumas atividades foram desenvolvidas por zoom, uma solução que além de não nos ter retirado audiência, permitiu contabilizar os participantes. Penso que globalmente conseguimos passar a mensagem a um público diferenciado em termos etários, geográficos, de nacionalidade. Realizámos atividades mais académicas e outras com cariz público e isso correspondeu bem àquilo que era o espírito do projeto.


Quais são os requisitos que um investigador em História Moderna e Contemporânea deve ter em conta ao formular uma proposta de projeto de investigação similar a estes?

Há duas dimensões importantes. Uma é a preocupação com a contextualização internacional da investigação em História de Portugal, neste caso com um projeto que se debruça sobre a segunda metade do século xx. Partimos do princípio de que só podemos estudar e entender a história da ditadura portuguesa se o fizermos no contexto internacional. Nesta linha, o historiador Vitorino Magalhães Godinho falava dos chamados “complexos histórico-geográficos”, conceito que julgo ser muito pertinente. A segunda premissa advém da tradição da história que se faz no Iscte. A fundadora do nosso departamento, a professora Miriam Halpern Pereira, insistia muito na dimensão da “história comparada”. Quer dizer que só conseguimos compreender verdadeiramente a História de Portugal se o fizermos numa perspetiva comparada, porque isso é também o que permite ultrapassar o mito da excecionalidade, ou da originalidade portuguesa, e identificar semelhanças e diferenças com as realidades que nos são comparáveis.
Em síntese: é muito importante a dimensão do contexto e a dimensão comparativa. É isto também que permite que haja financiamento europeu, porque só dessa forma conseguimos inserir a História de Portugal nas agendas de investigação internacional. Seria um conselho que eu deixaria aos nossos estudantes e aos jovens historiadores.

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