ENSINO

Capacitar artistas para intervirem nas escolas públicas




LUÍSA VELOSO

Professora  Iscte Sociologia e Políticas Públicas

Investigadora  CIES-Iscte



Com apoio do Programa Europa Criativa, o CIES-Iscte integra a equipa de um projeto liderado pela Associação Cultural Sete Anos para criar e validar um modelo de práticas artísticas como práticas pedagógicas na escola pública, através do qual se pretende capacitar artistas para a intervenção em escolas




Qual é o foco do projeto ARECA?

O projeto “Educação Artística e Capacitação: metodologias, instrumentos usados pelos artistas para atuar nas escolas” tem como foco fundamental a capacitação dos artistas para trabalharem em escolas públicas. É um projeto colaborativo interdisciplinar focado na relação entre práticas artísticas contemporâneas e práticas de aprendizagem. É liderado por Cláudia Dias, que é uma pessoa da dança, uma performer que criou a Associação Sete Anos e que trabalha com artistas de várias áreas, como a música e o teatro. Mas este projeto tem um passado…

 

Qual é o contexto?

O projeto Sete Anos Sete Escolas teve origem em 2016, em Almada, com o apoio da Câmara Municipal e de outras entidades. Teve o apoio também da Fundação Calouste Gulbenkian, no quadro do programa PARTIS – Práticas Artísticas para a Inclusão Social e da Fundação la Caixa. Nessa altura eu e outras pessoas das ciências sociais fomos convidadas para acompanhar o projeto da Cláudia Dias durante três anos. Depois foi criada a Associação Sete Anos e o projeto Sete Anos Setes Escolas está, neste momento, a ser realizado no Seixal, no âmbito das Comunidades em Ação – Operações integradas metropolitanas, apoiado pelo PRR – Plano de Recuperação e Resiliência e pelos Fundos Europeus Next Generation EU.

 

O ARECA trabalha com artistas, mas é também um projeto internacional?

O ARECA, no fundo, responde ao objetivo de capacitar artistas para trabalharem em escolas e tem a preocupação de ter uma dimensão internacional para poder chegar a mais pessoas, não ser só desenvolvido no contexto português.
Assim, há dois parceiros internacionais. Em Espanha, a Azala, projeto que combina um projeto cultural e um projeto de alojamento rural. No país basco francês, a Rouge Elea, na Nova Aquitánia, uma companhia que cruza circo, dança e música.
Quando foi elaborada a candidatura ao programa Europa Criativa, que tem também como objetivo financiar projetos de cooperação, a Cláudia convidou-me para, mais uma vez, acompanhar o projeto de forma a que fosse possível produzir trabalho de carácter científico, importante para os artistas e pessoas que levam a cabo estes projetos.

O papel da universidade nesta parceria é sobretudo de validação e homologação do rigor no trabalho desenvolvido?

O trabalho da equipa do CIES no projeto – eu, a Joana Marques e a Carlota Quintão – é de acompanhamento, fazendo, por exemplo, entrevistas às pessoas que estão a trabalhar nas escolas, artistas, professores. Desenvolvemos, também, um amplo conjunto de outras atividades, como oficinas com os jovens, etc. É uma atividade que realizamos em estreita colaboração com a Sete Anos. E, como o país líder é Portugal, iremos depois coordenar o trabalho de investigadores que estão em Espanha e França.
Como é normal num projeto de investigação científica, vamos fazer um ‘estado da arte’ sobre educação artística e cultural, acionar vários procedimentos metodológicos, como, por exemplo, grupos focais com professores e estudantes, para chegar a resultados científicos sobre a problemática – sobre a criação artística e cultural e a sua relação com a educação e, neste sentido, sobre o papel dos artistas nesse domínio. Como envolve cooperação, temos também o papel de acompanhar o projeto, como fizemos no PARTIS: assistindo a sessões dinamizadas pelos artistas nas escolas, promovendo reflexões conjuntas, etc.


O ARECA é um projeto colaborativo interdisciplinar, focado na relação entre práticas artísticas contemporâneas e práticas de aprendizagem


Em que escola está a ser desenvolvida esta iniciativa?

Estamos a trabalhar na Escola Básica 2, 3 de Corroios, do Agrupamento de Escolas João de Barros. De uma maneira geral, trata-se sempre de escolas com públicos com vulnerabilidades sociais com diferentes configurações.
O trabalho na escola do Seixal decorre entre janeiro e maio. Durante este período realizamos pontos de situação, reuniões, grupos focais, entrevistas aos artistas, oficinas com os estudantes e com os professores, para irmos produzindo conhecimento e darmos retorno à equipa, que considera muito importante este olhar externo. No final, está pensado um handbook que condense práticas e metodologias de intervenção artística em escolas.
É ponto assente o projeto só trabalhar com as escolas públicas, assumindo uma atitude de valorização do papel fundamental da escola pública, não só para contribuir para a educação dos jovens, mas também para fomentar um espírito de cidadania.

O projeto vai só passar pelo Seixal?

Não. A partir de setembro do corrente ano, o método será aplicado nas realidades espanhola e francesa. A candidatura do projeto contempla nove artistas, 24 professores e 150 estudantes, mas há outros beneficiários, como o poder local. Está subjacente a ideia de democratizar o acesso à criação artística.

Quais são os requisitos que um investigador em História Moderna e Contemporânea deve ter em conta ao formular uma proposta de projeto de investigação similar a estes?

O objetivo é formalizar um método pedagógico que a Cláudia Dias está a trabalhar desde 2016. Espera-se produzir um resultado final que possa ser utilizado por outras pessoas, por outros artistas, a partir de um processo participado de reflexão e experimentação, mas em que as aprendizagens possam ser sistematizadas e o projeto possa ser desenvolvido noutros contextos.
A Cláudia Dias mobiliza uma metodologia específica de trabalho intitulada “Técnica de Composição em Tempo Real”. É adotada no trabalho com os jovens tendo, neste caso, como ponto de partida um trabalho da Cláudia, mas são eles que criam as peças. Portanto, ela não vai ensiná-los. Todas as semanas há um espaço de tempo, que está definido com as escolas, e durante várias sessões vão trabalhando diferentes temas, diferentes abordagens. Depois, a Cláudia vai convocando os artistas que convidou em função das suas especificidades, um músico ou um treinador de Kick Boxing e de Muay-Thai.

Esses são os tais nove artistas que o projeto refere como beneficiários diretos?

Sim. E um dos aspetos relevantes é a possibilidade do trabalho que a artista faz poder articular-se e integrar conteúdos formais de aprendizagem.
Ela trabalha imenso o português, é exigente do ponto de vista da linguagem, da precisão, nas questões da história, na formação de cidadania, no ser uma pessoa politicamente ativa, e isso permite convocar o conhecimento dos jovens com práticas que decorrem na aprendizagem formal ao longo do ano letivo. Este trabalho, como referi, evolui porque estão juntos praticamente todas as semanas e culmina com apresentações públicas do trabalho de criação realizado pelos estudantes. Mas, note-se, ela não vai ensinar nada: eles dizem o que querem fazer, trabalham em conjunto.
Outra coisa que me agrada profundamente, até como docente, é que muitas vezes é mais importante o processo do que o resultado final. O resultado são os jovens e as suas circunstâncias. Penso que existe esta visão: o que podemos dar a estes jovens? O que aprendemos com eles? O resultado depende do que querem fazer.
O projeto tem também um espetáculo final por que, para um ser humano, é importante o reconhecimento público. Há jovens que dão muita importância a isso, porque é a oportunidade de os familiares verem o trabalho que realizam (quando até os achavam incapazes de o fazer).


O ARECA é um projeto colaborativo a partir da metodologia “Técnica de composição em Tempo Real” espera-se produzir um resultado que possa ser utilizado por outras pessoas, por outros artistas, a partir de um processo participado de reflexão e experimentação


O manual que sairá deste projeto vai expor essa metodologia assente na ‘Composição em Tempo Real’?

Será um manual de ferramentas para artistas quando estão a trabalhar em contexto escolar. Mas pode ser usado por outros profissionais, como os professores. Não sabemos ainda qual será o formato final, mas, seguramente, será disponibilizado para toda a gente e em várias línguas. Vamos colaborar no handbook e vamos, também, publicar artigos científicos.

Para a investigação académica, para o CIES-Iscte, o que é mais enriquecedor na participação num projeto como este?

Para uma instituição como a nossa é muito importante encontrar artistas como a Cláudia Dias que consideram o trabalho de investigadores relevante para a sua prática. O trabalho que fazemos com o projeto é cientificamente rigoroso e cumpre exatamente os trâmites de qualquer outra investigação. Tem uma base teórica, tem metodologia, ferramentas, conclusões, trabalho analítico, tudo. Cruzar o trabalho artístico com o trabalho nas escolas e a investigação tem o papel crucial de fundamentar e produzir conhecimento para estas práticas. Dá sustentação aos artistas.
Outro aspeto importante, para o CIES e para o Iscte, é o conjunto de resultados científicos produzidos. Como o foco é a escola pública – e o Iscte tem uma área muito relevante nas políticas públicas – esta é, ainda, uma oportunidade para discutir políticas educativas e políticas no domínio das artes e da cultura.
Os artistas que trabalham a escola pública e as artes podem fazer a diferença no trabalho com populações socialmente mais vulneráveis. Mas também nos permite perceber a importância do trabalho artístico na vida de todos nós, enquanto cidadãos. Trabalho com artistas há alguns anos e considero que estes projetos têm ainda uma particularidade importante: tentar colmatar a precariedade dos artistas, através do financiamento do projeto.
Por último, muito importante também para o Iscte, é perceber que a criação artística é uma forma de produção de conhecimento tão válida quanto o trabalho científico, só que se faz noutros moldes.

E, da parte da academia, há essa sensibilidade?

Não, acho que não há. Mas estes projetos servem também para mudar isso. Nós produzimos conhecimento científico, temos os indicadores que a academia valoriza, mas também temos este reconhecimento daquilo que nós próprios aprendemos com os artistas. É investigação-ação.

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