DEMOCRACIA

Portugal está nas 25 melhores democracias do mundo




TIAGO FERNANDES

Professor  Iscte Sociologia e Políticas Públicas

Investigador  CEI-Iscte



O Democracy Report, produzido pelo V-Dem Institute da Universidade de Gotemburgo, reúne análises às instituições políticas, por um vasto grupo de peritos através de critérios rigorosos. A edição de 2023 evidencia que Portugal tem vindo a perder posições no Índice de Democracia Liberal, sobretudo por deficiente funcionamento da justiça e dos media




Portugal sai bem no retrato das democracias no mundo?

Nos relatórios anuais publicados pelo Instituto V-Dem (Varieties of Democracy), Portugal tem estado entre as melhores democracias do mundo, nomeadamente nas dimensões associadas ao que se designa por democracia liberal, com critérios como a qualidade das eleições e do processo eleitoral.
Portugal nunca teve casos de corrupção eleitoral. Em termos de autonomia dos parlamentos, de níveis de Estado de Direito, Portugal não tem grandes problemas.

 

No último relatório do V-Dem, em 2023 Portugal desceu alguns lugares. Porque é que isso aconteceu?

Há uma ligeira erosão, mas Portugal ainda está nas 25 melhores democracias do mundo, em quase 180 países! Se Portugal desce um pouco, o que acontece desde 2018, também se deve a outros países terem subido de posição no relatório. No entanto, há áreas onde houve uma erosão que vai para além do que é a margem de erro.

 

Que áreas são?

Uma das áreas é a qualidade dos media e o pluralismo da informação. Há muita opinião e pouca informação. Segundo o relatório, aquilo que se pode chamar o pluralismo informativo sofreu declínio, deteta-se também alguma permeabilidade na independência dos media, provavelmente por influências políticas. Há muito ‘comentariado’ político e muito partidarizado. Penso que pode haver problemas financeiros associados aos grupos de media, o que terá algum impacto.
O segundo aspeto tem que ver com o declínio no acesso à justiça e a sua qualidade. Isso reflete-se depois na igualdade dos cidadãos em terem os seus direitos cumpridos. Também nesse aspeto houve alguma erosão. Há alguma tensão também entre o sistema político e o sistema judicial..

 

Essa conflitualidade entre os sistemas político e judicial contribui para um menor prestígio de ambos, aos olhos da população?

Sim, de ambos. Portugal sempre teve esses problemas, mas eles agravaram-se nos últimos anos. Há um terceiro aspeto, que se agravou com a maioria absoluta: a menor capacidade de controlo do parlamento sobre o governo. Houve alguma tensão entre executivo e parlamento, que foi patente no funcionamento das comissões de inquérito que – segundo o relatório – não fizeram propriamente um grande trabalho de fiscalização.
Há também alguma tensão provocada por certos processos legislativos apresentados pelo governo que colidiam com algumas liberdades cívicas e tiveram chumbo do Tribunal Constitucional. Foi o caso dos metadados, da lei das secretas e o diploma sobre a morte medicamente assistida. Houve várias propostas do Governo sobre estas leis, que foram sempre recusadas, e gerou-se tensão.
Há ainda um quarto aspeto que contribuiu para uma menor autonomia do governo. A partir de certa altura, a capacidade do primeiro-ministro ser quem nomeia ou demite os ministros, na prática passou a estar um pouco coartada por causa da tensão com o Presidente da República. Isso prejudicou também a capacidade de atuação do governo. Estas são as principais causas da erosão democrática, mas não se pode dizer que Portugal esteja numa crise democrática.


O relatório V-Dem, ao contrário do que se diz nos media, afirma que Portugal não tem uma corrupção generalizada. Ao longo de décadas os níveis de corrupção na democracia portuguesa têm vindo a diminuir, até porque há mais controlo e vigilância


O relatório do V-Dem denuncia que 42 países no mundo estão a viver episódios de autocratização e, desses, 28 eram ainda democracias recentes. Que fenómeno é este?

Identificamos dois tipos de autocratização. Há os regimes que não são democráticos e se tornam ainda mais autoritários, como a China que, na última década, é um regime ainda mais centralizado e personalizado na figura do líder, Xi Jinping, ou a Rússia, com eleições falseadas e manipuladas, mas que era um regime híbrido e gradualmente tornou-se uma autocracia fechada. Outros casos são a Venezuela, Cuba e a Coreia do Norte.
Há, depois, um fenómeno interessante que, de certa maneira, põe em causa as teorias desenvolvidas a partir da revolução portuguesa de 1974/1975, que originou a chamada terceira vaga de democratização, em que a democracia se expandiu no mundo como nunca acontecera. Na terceira vaga de democratização, mas também em democracias mais antigas, começa a haver um processo de erosão democrática em que liberdades cívicas começam a estar em causa, enquanto a capacidade de manipulação eleitoral aumenta. Há também a restrição de direitos, baseada na identidade religiosa ou étnica.
Começamos a observar declínio democrático importante em países como os EUA, a Índia e, na Europa, na Grécia ou Itália. Já a Polónia, como o Brasil, conseguiram reverter essa situação. Temos assim democracias que estão sob ataque e algumas deixaram de ser democracias, como a Hungria.

O relatório V-Dem também adverte que a ascensão do populismo se revela como fenómeno global, mas de que forma?

O relatório enfatiza que, com a ascensão dos populismos à escala global – muitos deles são partidos autoritários e etno-nacionalistas, como o de Modi, na Índia – a erosão é menos visível se contarmos por países, mas se contabilizarmos por população é muito maior, porque são sobretudo grandes países que têm tendências autocratizadoras.
A China, Rússia, Irão, Venezuela nunca foram propriamente regimes democráticos, mas também estes regimes estão em crise séria.
Os Estados Unidos, o Brasil, a Indonésia, a própria África do Sul são países com muita gente. Por isso, à escala global, a percentagem de população que vive em autocratização está praticamente nos 70%. Se analisarmos por país, essa tendência é menos visível.


Índice de Democracia Liberal – Como se forma?

A metodologia dos relatórios Instituto V-Dem usa dados objetivos. Por exemplo, em que medida é que os parlamentos têm capacidade de trazer o governo a ‘prestar contas’? Qual é a capacidade de investigação das comissões parlamentares? São quase 70 variáveis! Outra parte que compõe este índice são avaliações de um número grande de peritos, mas também de outras pessoas com habilitações adequadas. A partir das avaliações dos académicos, que respondem a um questionário sobre os indicadores de democracia, faz-se depois o cálculo, uma média ponderada.

A maioria dos inquéritos de avaliação da democracia à escala mundial têm apenas um ou dois peritos, mas no V-Dem há muitos por pergunta, grande diversidade de opiniões de especialistas no tema, equilíbrio de género mas também entre os que vivem no país e os que vivem fora.

Os índices do The Economist ou da Freedom House têm muito poucos peritos a responder a uma multiplicidade de perguntas e países. Já neste projeto do V-Dem, quem define a conceptualização, a avaliação e a compreensão dos dados são académicos. Assim, tudo é feito segundo o rigor académico. Procede-se sempre a revisão dos índices, introduzindo-se novos critérios, o que torna este ranking V-Dem a avaliação mais completa que existe à escala global, com mais de 300 indicadores.

Devo notar que Portugal é um país particularmente crítico de si próprio, o que pode traduzir-se numa avaliação particularmente negativa, tanto da opinião pública como dos peritos sobre a situação política do momento.


Como se identificam essas tendências autocratizantes?

Os regimes presidencialistas têm maior propensão a ter crises democráticas no contexto atual. Estados Unidos, Brasil, Índia são sistemas presidencialistas e são países federais. Portanto, o presidencialismo permite uma concentração de poder num só individuo, e legitima essa concentração de poder. Alguém com uma personalidade carismática potencializa essa concentração. Ao invés, nos sistemas parlamentaristas, tem de haver mais negociação.
Em segundo lugar, nos sistemas presidencialistas há uma menor capacidade de controlo do órgão legislativo sobre o governo, porque há duas legitimidades separadas. O governo é nomeado e precisa da legitimação do parlamento. Nos sistemas presidenciais não é assim: o presidente é eleito diretamente e a relação com o congresso ou parlamento nacional é uma dupla legitimidade. O presidente mais dificilmente pode ser destituído ou controlado. É o problema que estamos a ver nos Estados Unidos e que no Brasil paradoxalmente foi resolvido. Na recandidatura de Lula houve também uma oposição toda unida, da esquerda à direita, e isso não acontece nos EUA, com o Partido Republicano.

Estamos a assistir, na Europa, ao crescimento dos partidos populistas com a sua normalização em sistemas democráticos?

Os partidos populistas exploram também o descrédito dos políticos, seja real ou imaginado. E afirmam- -se, eles mesmos, como representantes do povo impoluto contra as elites corruptas. Mas é um discurso ideológico sem qualquer adesão à realidade. O relatório V-Dem, ao contrário do que se diz nos media, afirma que Portugal não tem uma corrupção generalizada. Podia estar melhor, mas ainda está nas trinta melhores democracias no mundo. Ao longo de décadas os níveis de corrupção na democracia portuguesa têm vindo a diminuir, até porque há mais controlo e vigilância.
O descrédito da classe política, que também é um fenómeno global, é explorado pelo partido Chega. No entanto, houve aqui uma conjuntura que favoreceu isso: a crise inflacionária, a crise da habitação e a crise da saúde, real, mas também empolada com algum exagero. Por outro lado, a relação entre o sistema judicial e o sistema político, e os sucessivos casos lançados pela Procuradoria. As procuradorias têm de balançar a sua atuação de independência com alguma responsabilidade e, por vezes, há aí algum desequilíbrio que pode ser explorado negativamente.


Os partidos democráticos têm agora o desafio de encontrar novas formas de colaboração, que não eram possíveis por divisões entre esquerda e direita


Disse recentemente, numa entrevista, que os populismos se centram na figura de um líder carismático “porta-voz do povo”. Pode explicar?

O populismo procura isso: um líder que representa a vontade da grande maioria do povo e tem uma base plebiscitária direta. Por isso é que se apresenta democrático.
A maioria dos movimentos populistas põe em causa outras dimensões da democracia: certas liberdades e direitos de minorias; liberdades cívicas e igualdade perante o Estado de Direito.
Outro aspeto é que a qualidade do debate público tende a diminuir, os insultos, os ataques pessoais, a desinformação – isso viu-se agora com o Chega a ficar inibido no Facebook durante dez anos. Num terceiro aspeto relevo que, uma vez no poder, este tipo de partido começa por limitar a capacidade que outras instituições democráticas têm sobre os governos, como o parlamento e os tribunais independentes. Ou a possibilidade de nomear para tribunais superiores fiéis políticos seus e, portanto, controlar os órgãos independentes que deviam fiscalizar o governo. Isso aconteceu na Hungria, onde Orban aproveitou a pandemia para instalar o estado de emergência sem prazo.


A democracia pode nascer de uma revolução

Além de professor de Ciência Política e Políticas Públicas do Iscte, Tiago Fernandes é também diretor do Centro Regional para a Europa do Sul do Instituto V-Dem (Varieties of Democracy), da Universidade de Gotemburgo, que publica o relatório anual sobre o estado da democracia no mundo.

O relatório analisa a evolução de um conjunto de dimensões dos regimes democráticos à escala global, para praticamente todos os países do mundo. Integra a equipa responsável pela análise e coordenação dos dados, concretamente relacionados com Portugal, Espanha, Itália, Grécia e França.

Este ano, Tiago Fernandes lança dois livros, ambos apoiados pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FMMS) e relacionados com projetos desenvolvidos no CEI-Iscte.


“Portugal 1974/1975 Revolução, Contrarevolução e Democracia”

“O livro compara a revolução portuguesa com outras como a revolução russa, a revolução jugoslava, a Guerra Civil espanhola, etc., mas também com as revoluções recentes da Europa de leste. Compara Portugal com essas dinâmicas revolucionárias do século xx europeu, em vez de comparar com as ‘transições democráticas’. Tenta perceber porque é que há revoluções que originam regimes democráticos. O caso português mostra que, a partir de ditaduras de direita, é possível democratizar com uma revolução. Portugal tem também uma transição revolucionária relativamente pacífica, apesar dos métodos disruptivos, como ocupações de casas, reforma agrária, etc. Creio que isso tudo foi possível por causa do fim imediato da Guerra Colonial”, diz.

“Democratic Quality In Southern Europe – France, Greece, Italy, Portugal and Spain”

O autor sublinha que “tanto o CEI, com o enquadramento institucional e apoio logístico e administrativo, como o apoio financeiro da FFMS foram fundamentais para fazer os dois livros. Os dados do relatório V-Dem sobre Portugal são também financiados pela FFMS”, com a qual colabora desde 2015.



Sobre esse mesmo fenómeno, em Portugal, no jornal Público, afirmou que “a democracia portuguesa é suficientemente robusta para que a sociedade resista ao Chega”. Em que se baseia?

Em primeiro lugar, porque os partidos do centro – PS e PSD – têm mais de 60% dos votos, o que é robusto quando comparado com a maioria das democracias europeias. Em segundo lugar, embora haja tensões entre os dois partidos, também há sinais de possibilidade de colaboração em algumas áreas. E o governo (da AD) também deu sinais de que prefere falar com a sua esquerda do que com o partido de extrema-direita – o que é um sinal positivo. As propostas do Chega são, muitas delas, antiliberais e enquadram-se num programa antidemocrático e são irrealistas no domínio das políticas públicas. O fenómeno tem muito a ver com o contexto de incerteza. O contexto de crise inflacionária, a insegurança em aspetos fundamentais como o acesso à saúde e a crise na habitação, esses problemas agravaram-se nos últimos dois anos – embora os media exagerem – e isso cria pânico nas pessoas. Num inquérito que fiz, as atitudes de populismo na população portuguesa revelam que os portugueses são bastante abertos aos imigrantes, os preconceitos anti-imigração são minoritários, mas, quando se fala no acesso à habitação, maioritariamente defendem que seja dada preferência a cidadãos nacionais e não a estrangeiros. A questão da habitação é hoje transversal em toda a Europa. A revista The Economist fez capa recente com “a grande crise habitacional, a nível mundial”. Os impactos da crise na habitação são vários e depende do país.


Para fazer contra mobilização face ao populismo, Portugal tem uma sociedade civil relativamente robusta, nomeadamente no movimento sindical. Embora os sindicatos estejam em declínio em todo lado, em Portugal conseguem juntar nas ruas cerca de meio milhão de pessoas




Qual é o papel da sociedade civil, com expressão nas ruas, face ao crescimento eleitoral dos populismos?

Esse papel é pouco considerado, mas é importante para fazer contra mobilização face ao populismo. Portugal tem uma sociedade civil relativamente robusta, nomeadamente no movimento sindical. Embora os sindicatos estejam em declínio em todo lado, em Portugal conseguem juntar nas ruas cerca de meio milhão de pessoas associadas. Se lhes juntarmos os agregados familiares, podemos estar a falar de mais de 1,5 milhão de pessoas.
Sabemos que nos países que reverteram ataques populistas ao sistema, a mobilização nas ruas foi importante. Os inquéritos revelam que há cerca de 24% de sindicalizados na população portuguesa. No global, 80% dos inquiridos acham que os sindicatos são muito importantes: confiam nos sindicatos e, em parte, no sistema judicial. Estes aspetos dão-nos razão para otimismo.
O que acontece com partidos como o Chega é que geralmente têm um teto eleitoral que, nas democracias europeias, está nos 20%-25%. Mas depois também têm declínios. Mesmo nas situações em que chegam aos 30%, como em Itália e na Hungria, o acesso destes partidos ao poder acontece em coligação com partidos do centro, ou centro direita. A questão não é tanto o peso eleitoral deles, andam sempre entre os 10%-20%, mas o que os países do sistema fazem com eles. Aí é que os perigos começam.

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