Professor Iscte Sociologia e Políticas Públicas
Investigador CIES-Iscte
Professora Iscte Sociologia e Políticas Públicas
Investigadora CIES‑Iscte
Os projetos HumAct – Humanitarian Action: Climate Change and Displacements e InovHumRe – Innovation in Humanitarian Response, que coordenou, tinham foco na Ação Humanitária, mas objetivos distintos. A que se propunha cada um dos projetos?
Paulo Pedroso (PP) Ambos os projetos têm uma forte articulação com o Mestrado em Ação Humanitária, do qual são diretoras a Joana Azevedo, da Escola de Sociologia e Políticas Públicas, e a Ana Lúcia Martins, da Escola de Gestão. Este processo começou com o mandato que a Reitora nos concedeu para pensarmos o ensino e a investigação da Ação Humanitária, numa ótica de estabelecimento de parcerias internacionais, somando os dois projetos, InovHumRe e HumAct, de capacitação para a docência e a investigação. Temos parceiros europeus, do Médio Oriente (Turquia), africanos e da América Latina. Na área da capacitação no Ensino Superior, no âmbito do Projeto HumAct, terminámos 42 meses de intenso trabalho conjunto entre sete parceiros: dois europeus – Iscte e National and Kapodistrian University of Athens, três de Moçambique – Universidade Pedagógica de Maputo, Universidade Rovuma e Universidade de Púnguè, e duas de Cabo Verde – Universidade de Cabo Verde e Universidade de Santiago.
Desta forma, foi possível criar uma rede de ensino, investigação e troca de experiências, que contribuísse para a experiência do Mestrado em Ação Humanitária do Iscte e que convergiu numa candidatura com sucesso à criação do Mestrado Erasmus Mundus Human Response.
Quais as principais preocupações nesta formação?
Houve três eixos de preocupação. Desde logo, alimentar o ensino no Iscte com experiências transnacionais e abordagens no terreno. O segundo eixo passou por fazer transferência de conhecimento entre todos os parceiros, sendo que a experiência intercontinental nos ajuda a perceber os desafios da ação humanitária mais perto dos contextos onde existe: os colegas latino-americanos, brasileiros e colombianos tinham experiência com refugiados da Venezuela, os colegas turcos e os gregos tinham-na em particular com os refugiados do Médio Oriente e os de Moçambique tinham a experiência dos desastres naturais e os problemas do terrorismo no norte do país. Gerou-se troca de experiências. O terceiro eixo é o da capacitação de parceiros. Há um paradoxo na ação humanitária que é decorrer predominantemente nos países do sul global e o ensino e investigação na área decorrer predominantemente no norte.
O trabalho com as três universidades moçambicanas e as duas universidades cabo-verdianas deu-se no sentido de criar formação em ação humanitária para que os profissionais locais possam assumir posições mais importantes nas organizações que se dedicam ao trabalho nesta área. Em Moçambique, isto teve frutos imediatos, dado que as universidades parceiras criaram já os seus próprios mestrados nesta área: a Pedagógica de Maputo vai oferecer o Mestrado em Gestão e Ação Humanitária, a Universidade Púnguè em Gestão de Emergências e Desastres e a Universidade de Rovuma em Ação Humanitária e Direitos Humanos. A par disto, há sinergias através de outras colaborações no Iscte e também nas mobilidades Erasmus.
Joana Azevedo (JA) Um dos aspetos mais relevantes do desenvolvimento do projeto é que o Iscte viu aprovadas as mobilidades internacionais (International Credit Mobility – ICM). Tal permitiu reforçar muito as mobilidades de docentes entre os países com os quais queríamos criar uma rede de ensino e investigação em ação humanitária e passámos a contar com docentes que vêm do Uganda, de Moçambique, de Cabo Verde, do Líbano, no nosso Mestrado. Vários docentes nossos também participaram com entusiasmo nas iniciativas destes dois projetos e nas mobilidades ICM. Respondemos também a alguns desafios lançados pelos parceiros como, por exemplo, da Universidade de Cabo Verde, que realizou um Curso Livre de Fundamentos em Ação Humanitária voltado para os profissionais. Houve um conjunto muito interessante de iniciativas de intercâmbio de docentes ao longo destes anos dos projetos. Aproveitámos essas mobilidades para preparar aquilo que viria a ser a nossa candidatura ao Mestrado Internacional em Ação Humanitária, que arranca no Iscte no próximo ano letivo.
Estes dois projetos estiveram sempre articulados entre si?
PP Sim, mas são completamente autónomos. O InovHumRe é sobre Inovação em Ação Humanitária, sendo inovação a palavra-chave. Conceptualmente, é um projeto de partilha de experiências e que teve o foco no ciclo de avaliação. A ação humanitária decorre em contextos exigentes, tem dificuldades operacionais e requisitos específicos. Em Portugal, verificámos que não há uma cultura disseminada de avaliação. Este projeto teve como foco desenvolver uma cultura de avaliação participativa, tendo sido criadas unidades curriculares com esta finalidade. Demos prioridade também ao desenvolvimento de materiais colaborativos para o desenho de intervenções: foi criado um handbook sobre Innovation in Humanitarian Response and Participatory Evaluation partilhado entre as universidades, para todo o ciclo de avaliação. O foco era analisar experiências diferentes a lidar com população refugiada, em particular na América Latina, como o movimento recente na Venezuela e no Médio Oriente com os refugiados sírios.
Já o HumAct é um projeto de ensino, com o objetivo de capacitar as universidades parceiras africanas através do desenvolvimento de novas unidades curriculares e pôr a funcionar uma rede de investigação para a elaboração de projetos de pesquisa e publicações conjuntas. Algo que nos enriqueceu, explorando as potencialidades do online, foi o desenvolvimento de webinars, nos quais se discutiram temas da atualidade em ação humanitária, sempre com parceiros europeus e africanos. Essas sessões tiveram o desafio de termos de combinar um fuso horário, entre Moçambique, Cabo Verde e a Grécia – o que não é fácil – além de alguns desafios linguísticos. Houve sempre um orador de contexto africano e outro europeu.
Os projetos InovHumRe e HumAct prometiam metodologias inovadoras articuladas com a prática do terreno. Como é que isto se concretizou?
JA Desde o início que a preocupação era conseguir complementar o nosso ensino nesta área com a experiência vinda do terreno, com o que já era feito em ação humanitária por profissionais das agências internacionais, dos governos e ONG locais, com quem fomos aprendendo durante estes três anos. Queríamos, com essas experiências, trazer para o ensino conteúdos e metodologias inovadoras, participativas, que pudessem dar resposta aos desafios atuais da ação humanitária. Ou seja, que a academia não ficasse dissociada do que é feito no terreno, para se começarem a discutir oportunidades de articulação. Como resultado, temos diversos trabalhos de unidades curriculares e também as primeiras dissertações de estudantes que procuram já incorporar essas metodologias e contextos.
Como resultados diretos no InovHumRe, além do handbook, foram criadas unidades curriculares e fez-se a análise da situação em matéria de avaliação da ação humanitária nos países participantes, incluindo a criação de uma unidade curricular específica de avaliação. Este projeto empenhou-se também em criar uma ponte entre a Ação Humanitária e o Serviço Social de Emergência. Na conferência final do projeto, que decorreu no Iscte, as três grandes associações internacionais da área do serviço social assinaram uma declaração conjunta para a promoção do Serviço Social de Emergência.
Um dos principais resultados do HumAct foi o desenvolvimento de ensino especializado em ação humanitária, através do trabalho de colaboração entre equipas do Iscte.
Em resumo, com estes projetos, o Iscte vê reforçada a sua participação em redes internacionais de ensino e investigação em ação humanitária, com um dos poucos programas de mestrado euro-africano em Ação Humanitária. A parceria que o Iscte coordena, a partir de 2025, é pioneira.
Paulo Pedroso
O nosso principal desafio, além de implementar o Mestrado Internacional, é elevar a investigação em ação humanitária a outro nível: ter maior intervenção e dar a conhecer os estudos que já são feitos nestes contextos, mas que veem poucas oportunidades de publicação.
Outro dos resultados foi o trabalho da academia com atores não académicos, muito impulsionado com este projeto. Daqui podem nascer cursos de formação conjuntos como resposta a necessidades provenientes de fora da academia, de profissionalização de pessoas que já estão a trabalhar em alguns organismos. Vemos que há grande entusiamo para desenhar novas iniciativas entre a academia e os parceiros não académicos.
Joana Azevedo
Em relação à formação dos profissionais de ação humanitária, qual foi a avaliação?
PP Há um dado importante transmitido pela coordenadora do projeto na Universidade Pedagógica de Maputo ao dizer “Há coisas que nós já fazíamos, mas ninguém sabia!”. Algo que este projeto e, em particular, o HumAct trouxe para Moçambique e Cabo Verde foi um forte estímulo a novas parcerias entre universidades e instituições internacionais e instituições locais da sociedade civil. O projeto teve escolas de verão/inverno, em que estimulámos muito a cooperação. Nós mesmos também acabámos por ter uma ligação mais forte ao Serviço Nacional de Proteção Civil, mas destacamos o que se passou em Moçambique e em Cabo Verde. Traduziu-se na abertura da universidade às ONG internacionais, aos organismos do sistema das Nações Unidas e mesmo aos serviços públicos. As universidades começarem a ser vistas como parceiros relevantes. A Universidade Pedagógica de Maputo, por exemplo, participou no socorro aos refugiados do ciclone Idaí (2019) e a Universidade de Rovuma, localizada no norte, tem trabalhado com os campos de refugiados da ACNUR (Agência da ONU para Refugiados) e com os que estão sob a proteção do Governo de Moçambique. Com esta parceria ganharam também visibilidade.
Regressando ao Iscte, este projeto foi apoiado por um trabalho preparatório e hoje já existe um protocolo de colaboração com as cinco universidades africanas que participaram no projeto HumAct, que se pode estender para além do projeto.
Como foram desenvolvidos os conteúdos para a primeira pós-graduação na área da ação humanitária?
JA O processo começou com uma iniciativa, em julho de 2018, que reuniu as quatro escolas do Iscte e docentes com competências relevantes para criar uma oferta de ensino nesta área. O primeiro passo foi desenhar um plano de estudos de cariz interdisciplinar, tendo como referência as boas práticas internacionais, onde esta necessidade de profissionalização já havia sido identificada. Nessa altura, pensava-se já fazer evoluir esta pós-graduação para um Mestrado Internacional em Ação Humanitária.
Além do corpo docente do Iscte, foram também convidadas pessoas com experiência de terreno e de intervenção em contextos humanitários a nível internacional. Fomos reforçando a rede de parceiros, como o Instituto Marquês de Valle Flôr, os Médicos Sem Fronteiras, a associação HELPO (Organização Não Governamental para o Desenvolvimento), a plataforma da ONGD (Organizações Não Governamentais para o Desenvolvimento), o Conselho Português para os Refugiados, entre outros. Abriu-se um ciclo de conferências com debates abertos, cujos oradores eram pessoas com atuação importante nesta área (o primeiro ciclo de conferências está publicado em livro pela Mundos Sociais).
Os projetos Capacity Building tiveram aqui um papel muito relevante. No HumAct, por exemplo, o tema inicial foram as alterações climáticas e deslocações e, a partir deste tema agregador, foi sendo alargado a outras áreas disciplinares. Esta abordagem multidisciplinar, que marca estruturalmente o projeto, foi muito interessante. Posteriormente, formaram-se grupos de trabalho que foram desenhando os conteúdos. As referidas escolas de verão/inverno permitiram identificar oportunidades de melhoria e de ajustamento. Este é um trabalho contínuo, que não está finalizado.
Qual a avaliação que recebem das entidades parceiras?
PP Da parte das universidades parceiras, há vontade de continuarmos a trabalhar juntos. Da parte das universidades moçambicanas, há um pedido para que continuemos a apoiar e a trabalhar a capacitação com eles. Creio que, do ponto de vista dos alunos, a experiência dos que vieram a Lisboa e a avaliação que tivemos tem também muito a ver com a abertura a novas experiências, novas visões – creio que isso foi muito útil. No essencial, a perceção com que ficamos é que este trabalho colaborativo acabou por provocar uma mudança que tem múltiplos reflexos. Por exemplo, a Universidade de Rovuma atribuiu recentemente um Doutoramento Honoris Causa na área da Ação Humanitária. De repente, o tema ganhou uma grande visibilidade e isso é muito importante em dois planos: aproxima os contextos de formação dos contextos de ação (estes programas em África continuam a ser raros e pioneiros) e, por outro lado, cria redes de cooperação entre docentes e investigadores e parcerias que se tendem a tornar perenes e a entrar no trabalho acadêmico regular.
JA O entusiasmo é tão grande que há universidades que criaram uma disciplina em Ação Humanitária, baseada na experiência que tínhamos tido aqui com a unidade curricular “Conceitos, Fundamentos e Desafios em Ação Humanitária”, que é hoje oferecida em vários programas.
PP Não sendo estes programas exclusivamente lusófonos, porque contavam com parceiros de língua castelhana, além de turcos e gregos, ainda assim, estes projetos ajudaram a marcar uma aproximação do Iscte ao espaço lusófono. Direta e indiretamente, reforçámos as parcerias do Iscte. As universidades africanas têm ainda as suas próprias parcerias lusófonas, que reforçam esta colaboração. É possível que venha a existir um trabalho de replicação com a Guiné-Bissau e com Angola, a partir dos parceiros africanos. As atividades de cooperação e de intercâmbio ganharam, assim, capilaridade.
Vale a pena acrescentar que a Fundação Getúlio Vargas, parceira do InovHumRe, por exemplo, veio partilhar a experiência que teve na “Operação Acolhida” em que colaborou com as Forças Armadas brasileiras, no contacto com refugiados venezuelanos em zonas muito remotas do Brasil. Na Turquia tivemos como parceira a universidade histórica no ensino do serviço social no país, a Haceteppe, a Associação Profissional de Serviço Social e uma ONG baseada em Gaziantepe, cidade que mais que duplicou a sua população devido aos refugiados sírios. Nessa cidade fronteiriça (a 120 km de Alepo), o ecossistema urbano foi completamente alterado, com a pressão que naturalmente se exerce sobre os serviços públicos, o emprego, o comércio local, etc. Temos muitas vezes a ideia de que os refugiados vão para campos de refugiados, mas uma parte substancial deles é acolhida nas comunidades transfronteiriças e isso merece muita reflexão sobre o impacto nas comunidades de acolhimento, que por vezes se negligencia.
A ação humanitária resulta sempre de uma situação de emergência. Falamos muito do nexo ação humanitária-desenvolvimento-sustentabilidade, mas a intervenção começa no restabelecimento de condições dignas de vida para pessoas que são afetadas por desastres naturais, por guerras ou por conflitos. Há um conjunto de valores fundamentais que foram sendo fixados a partir da experiência da Cruz Vermelha Internacional, relacionados com princípios de neutralidade, de não ingerência e, depois, com os projetos de desenvolvimento.
Não podemos esquecer que as pessoas são multidimensionais. Neste sentido, o papel do serviço social de emergência, como o apoio psicossocial, é o de ajudar na (re)construção de identidades pessoais e de restauração dos modos de vida. O sofrimento não resulta apenas da privação material, mas também da perturbação existencial.
Durante muito tempo, houve visões da ação humanitária que reduziam os beneficiários a sujeitos passivos de ajuda e o objetivo era restaurar a situação anterior. Isso, por muitas circunstâncias, já não é possível, justamente porque os fatores que levam às crises humanitárias têm condições de restabelecimento muito difíceis. Ora, os beneficiários são as pessoas e as comunidades. Para termos uma ideia, no Médio Oriente há campos de refugiados onde já nasceram netos dos primeiros refugiados!