Professor Iscte-Sintra
Investigador ISTAR-Iscte
Professora Iscte Business School
Investigadora BRU‑Iscte
Blockchainé uma palavra que começa a entrar no nosso quotidiano. De que se trata?
João Carlos Ferreira (JCF) Sendo o blockchain uma tecnologia emergente, é imprescindível consciencializar empresas e instituições para as suas potencialidades.
Em Portugal, o Iscte foi pioneiro na formação em blockchain, apostando na apresentação de conceitos básicos orientados para o negócio e na aplicação dos Smart Contracts, que são processos programados para serem automatizados. Realizámos também, até ao momento, seis escolas de verão em parceria com empresas de vários setores. Ao abrigo do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), o Iscte foi a única instituição que criou oferta formativa e seminários sobre esta tecnologia; abrangemos 70 estudantes, tendo a procura sido muito superior à oferta.
Qual o papel do blockchain no negócio?
JCF Nos negócios digitais, a confiança é uma fragilidade, tal como a partilha segura de informação e a necessidade de apurar quem está do outro lado a fazer o negócio (conceito de identidade digital). Ao partilharmos informação, nunca estamos seguros sobre o que lhe vai acontecer, nem sobre quem a criou. A maioria dos problemas da Internet deve-se à informação falsa, sem ser possível responsabilizar alguém, dado ser difícil confirmar o seu criador. O blockchain é, essencialmente, uma tecnologia que permite a partilha segura. Nos bastidores desta tecnologia está a criptografia que, através de códigos/chaves, permite ocultar a mensagem, mantendo-a apenas decifrável por quem tem a chave certa. A partilha de informações, muitas vezes, envolve a criação de acessos diretos às bases de dados, o que abre brechas de segurança e aumenta a vulnerabilidade a ataques.
O blockchain resolve problemas quotidianos da web. É possível gerir identidades de forma segura e criar um registo imutável, garantindo uma identidade única e confiável. Isso é especialmente relevante em negócios de alto valor.
Na área do ensino, por exemplo, o certificado vai deixar de ser em papel, será em blockchain. Um exemplo recente desta potencialidade foi o Certificado Digital Covid, bastando a qualquer pessoa apresentar o certificado no telemóvel.
Ana Lúcia Martins (ALM) No fundo, a palavra blockchain já diz muito: uma cadeia de blocos! A informação não está numa base de dados central, mas dispersa por várias identidades. O blockchain permite, em simultâneo, que a informação seja partilhada entre várias entidades e dá confiança ao cliente. Por exemplo, se eu quiser saber de onde vem um vinho, não consulto a base de dados, dado que é adulterável. Posso ir à cadeia buscar informação e sei que ela estará correta. Se uma das entidades procurar adulterar os dados, os outros vão saber identificar essa situação. Isto é muito importante especialmente para produtos de marca, para combater a contrafação.
O blockchain não poderá criar uma rutura entre os utilizadores dessa tecnologia e os que dela estão excluídos?
ALM Não vemos isso assim. Olhando na vertente da gestão, por exemplo, uma cadeia de abastecimento funciona muito com base na confiança entre as organizações que fazem parte dela. O que o blockchain permite é trabalhar com outras entidades, que aquela cadeia não conhece, mas que uma entidade na cadeia já validou ser confiável.
JCF Atualmente, quando precisamos de um empréstimo, vamos a um banco, pedem-nos um conjunto grande de documentos e informação e, ao fim de algum tempo, dizem se somos idóneos ou não. Se formos a outro banco teremos de repetir o processo todo. Com blockchain, se uma organização disser que somos uma pessoa idónea, as outras vão aceitá-la, dado estarmos num processo de partilha de informação segura. A vantagem é permitir a ligação entre entidades que não confiam entre si. A tecnologia possibilitará gerir negócios com maior confiança e segurança de blockchains públicos ou privados, adaptados a um negócio específico.
Onde é que esse registo vai estar alojado?
JCF Será algo a funcionar por áreas. Por exemplo, o registo predial da casa está hoje, por vezes, em vários sítios. É algo feito em papel, o que é falível. Em blockchain uma casa é um asset, que está alocado a um dono; depois faz-se o seguimento do processo: foi hipotecada, não foi, etc. Ou seja, há transparência da informação. O blockchain é um conjunto de nós, distribuídos espacialmente e cada nó tem a replicação de toda a informação.
Onde se encontram esses nós?
JCF Poderão estar em entidades que tenham um computador e que queiram ligar-se. Uma Conservatória do Registo Predial pode ter um nó. Mas não faz sentido as pessoas em casa terem um nó!
Se toda a tecnologia tem a ver com códigos, know-how digital, com intervenção humana, continuará a ser possível questionar a sua segurança?
JFC É possível questionar a segurança de qualquer tecnologia. Apesar do blockchain ser altamente seguro devido à sua criptografia e estrutura descentralizada, a intervenção humana introduz vulnerabilidades que podem comprometer essa segurança.
Quais são os mecanismos de controlo sobre a veiculação de informação errada, por exemplo, na cadeia de abastecimento?
JCF Uma entidade que cometa erros ou pratique má conduta terá a sua reputação registada permanentemente, passando de uma reputação local para uma reputação global e transparente. O blockchain facilita esses processos colaborativos, permitindo que todos contribuam para garantir a integridade dos dados.
Há projetos experimentais de blockchain em funcionamento, em que o documento ou o produto leve atrás de si todo o seu ADN?
ALM Sim. Há projetos-piloto na área de cadeia de abastecimento, na energia, na saúde, sustentabilidade, transporte. Mas estamos numa fase inicial. À escala mundial ter isto a funcionar com o respetivo número de nós é algo realmente grande. Quer as transações, quer os mecanismos de validação, são hoje muito pesados.
O projeto Blockchain.PT é uma iniciativa em linha com os objetivos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) de Portugal e da União Europeia.
Com um financiamento de cerca de 58 milhões de euros, o projeto reúne um consórcio composto por 24 pequenas e médias empresas (PME), 15 organizações de investigação e tecnologia, cinco entidades públicas e outros parceiros. O Blockchain.PT está dividido em várias áreas de atuação, como a saúde, na qual o Iscte está envolvido e concentra grande parte do seu trabalho.
Na formação, o Iscte foi a primeira entidade do consórcio a criar conteúdos e a dar formação, tendo realizado seis eventos de formação, dois cursos de curta duração, formando 250 pessoas.
JCF Na área da saúde, atualmente, se fizer exames num hospital, os resultados ficam armazenados lá; ao dirigir-se a outro hospital, é obrigado a levar os exames em formato físico. A proposta do blockchain é resolver essa limitação, permitindo o acesso e partilha rápida e eficiente dessas informações, entre diferentes entidades, independentemente da localização.
Qual está a ser a intervenção do ISTAR-Iscte neste processo de investigação?
JCF O ISTAR tem-se focado na área da saúde e na formação, nomeadamente com a criação de conteúdos, com base na experiência acumulada nos últimos oito anos. Realizámos seminários especializados, cursos de curta duração, formação online onde tivemos cerca de 120 participantes, maioritariamente de empresas. No final de outubro, decorreu o primeiro curso creditado, com a unidade curricular Blockchain – Fundamentos e as suas Aplicações, para 42 alunos. Pela primeira vez, demos formação a colegas de outras universidades inseridas no consórcio do projeto. Em junho, tínhamos realizado um workshop na conferência internacional MELECON, com cerca de 200 participantes da comunidade científica e empresarial, aos quais explicámos a relevância do blockchain.
De que forma o Iscte tem estado a contribuir para o estudo e aplicação desta tecnologia na área da saúde?
JCF Na área da saúde, estamos focados na aplicação com recurso à IA (Inteligência Artificial) e na partilha de informação de forma segura, recorrendo a carteiras digitais. Uma carteira digital em blockchain é uma aplicação que permite armazenar, enviar e receber ativos digitais, como criptomoedas, tokens e NFTs (tokens não fungíveis), de forma segura. Funciona como um cofre digital. Na área da Inteligência Artificial, em colaboração com o Hospital Santa Maria na área da Cardiologia, estamos a perceber padrões nos dados para gerar alertas, classificar ressonâncias, raios X e ecografias, recorrendo a redes neuronais, onde replicamos o conhecimento do profissional de saúde sob forma digital. O objetivo é reduzir a sua carga de trabalho, criando um processo semiautomático onde o ser humano assume o controlo da informação criada.
Nesse processo, a IA não substitui o ser humano?
JCF A IA não substitui o humano, liberta-o para funções de validação. Também temos trabalhos na área do texto, com o processo de criação e análise dos relatórios médicos. Estamos a reduzir o tempo e a passar o elemento humano para o papel do validador, dada a sua capacidade de raciocínio. Fizemos uma adaptação experimental, carregando relatórios médicos no sistema e depois criámos um modelo para extrair desses relatórios, nomes e idades, moradas, doenças, medicamentos prescritos. Também estamos a construir um conjunto de ferramentas para o médico ser mais eficiente. Por exemplo, pretende-se que da voz se origine automaticamente o texto. Com este processo os profissionais de saúde poupam tempo e podem atender mais pessoas. Estamos a usar muito a IA para aumentar a eficiência na saúde, ou seja, torná-la numa ferramenta para aumentar a produtividade. O que a IA faz é perceber os padrões e replicá-los.
Qual é a relação entre blockchain e IA?
JCF O blockchain permite partilhar dados e a IA usa dados. Assim, podemos ter uma sinergia com o blockchain a potenciar maior partilha e a IA a beneficiar de mais dados partilhados.
Como asseguramos a proteção na partilha de dados recorrendo ao blockchain?
JCF O acesso é sempre controlado por chaves/códigos e a tecnologia de blockchain permite gerir/controlar o acesso. Na área da saúde, os doentes podem escolher o que querem partilhar, mas não há sequer a necessidade de saber a sua identidade.
ALM Muitas vezes o que interessa não é a pessoa em si, mas sim a faixa etária, a região onde vive, o ambiente e é esta a informação que pode ser partilhada. Para um médico, o tempo é um recurso extremamente precioso e escasso. Se conseguirmos que ele tenha o seu relatório parcialmente feito pela IA e só precise de conferir e fazer algum ajuste, em vez de quatro doentes por hora ele poderá atender cinco. Se conseguirmos que utilize o seu tempo apenas para aquilo que é a prestação direta do serviço estamos a permitir-lhe que preste muito melhor serviço. No caso do blockchain, o acesso a mais informação que é partilhada por outros elos da rede permite que a visão do paciente seja mais completa e, com isso, melhora-se a qualidade dos cuidados de saúde prestados.
Comummente há a ideia de o blockchain estar associado à bitcoin. De onde advém esta relação?
JCF Sim, é verdade, daí a necessidade de formação. A moeda digital é importante, mas a tecnologia que está por trás é que permite ir mais além, dado o potencial da partilha de informação de forma segura, a gestão da identidade e a automatização de processos com recurso a Smart Contracts. Hoje é habitual termos o negócio moldado a um sistema de informação rígido. Também aqui o blockchain é uma mais-valia, uma vez que permite moldar facilmente os processos do negócio pela partilha de informação de forma segura e imutável. É relevante que, ao nível da moeda digital, no processo em blockchain a segurança é natural, ou seja, não tenho de investir milhões em segurança como acontece nos sistemas de transação atuais. Assim, o custo da transação, em blockchain é quase zero.
Quais são as vantagens do blockchain para a gestão?
ALM Há um exemplo-piloto que tem a ver com o peixe congelado numa grande cadeia de distribuição alimentar em Portugal. O cliente pode ler com o telemóvel as informações sobre o peixe, sabe de onde veio, por onde passou, se esteve sempre em condições de frio adequadas. Toda a informação está disponível para se saber a origem do peixe e o caminho que seguiu até chegar ao ponto de venda. Saber que a informação está disponível, transmite maior confiança para a compra em segurança. Por si só, isso é já uma vantagem competitiva de quem está no mercado a disponibilizar produtos. A tecnologia surge aqui como um fator de criação de vantagem competitiva.
Esta é uma grande aposta da União Europeia em termos de investigação. Quais são as vantagens para o mercado único?
JCF Sim, a UE está a apostar muito nas chamadas tecnologias disruptivas, que estão a ganhar maturidade. A UE necessita de coesão e partilha de informação ao nível do espaço europeu; o blockchain é facilitador desse processo. Outro aspeto importante é a identidade digital, a qual deve ser única, à semelhança da que existe no mundo físico. O blockchain potencia esta aplicação e a UE apoia este tipo de iniciativas em diversas áreas: uma é na saúde, outra é no ensino com a necessidade de termos diplomas académicos uniformizados no espaço europeu.
ALM Uma grande vantagem desta tecnologia é conferir transparência e, falando em termos de cadeia de abastecimento, dá também visibilidade, aspeto que num mercado livre permite, por exemplo, maior eficiência no planeamento de recursos e melhoria na tomada de decisões.
Qual foi o compromisso do Iscte relativamente ao desenvolvimento de projetos até final de 2025?
JCF O foco está na área da saúde, onde uma equipa de 15 pessoas combina o uso de Inteligência Artificial e de tecnologia blockchain. O Iscte em estreita colaboração com a empresa BioGHP está a desenvolver uma carteira digital que centraliza e padroniza os dados clínicos dos doentes, permitindo a sua partilha de forma rápida e segura. Contamos apresentar uma prova de conceito com dados reais, num piloto de pequena escala. Este projeto está em linha com o trabalho realizado em colaboração com o projeto europeu XpanDH, onde a interoperabilidade é um dos pilares fundamentais.
Na área da IA, o Iscte desenvolveu modelos de linguagem médica, incluindo um modelo de Named Entity Recognition (NER), em português. Este modelo foi treinado com cerca de 13 mil relatórios médicos, usando o BERT da Google como base e já está disponível. Permite a extração automática de informações de relatórios médicos, com aplicações práticas como triagem de doentes e criação de dashboards que apresentam diagnósticos, sintomas, medicamentos prescritos e a evolução do doente. Também estão em curso projetos relevantes na área de classificação de doenças, a partir de imagens médicas, utilizando diversas tecnologias como ressonâncias magnéticas, raios X e ecografias. Através de redes neurais convolucionais (CNNs), o sistema analisa e classifica automaticamente imagens médicas, auxiliando no diagnóstico e tratamento de diversas patologias. O Iscte já publicou dez artigos científicos relacionados com este trabalho e formou especialistas na área da IA aplicada à saúde.
ALM O Iscte, como tem várias Escolas no mesmo campus, tem a possibilidade de criar uma oferta multidisciplinar. A área de blockchain não é exceção. Também tivemos já a unidade curricular Blockchain para a Gestão da Cadeia de Abastecimento oferecida pela Iscte Business School, a qual, pela sua multidisciplinariedade, envolveu vários docentes, incluindo da Escola de Tecnologias e Arquitetura.
Qual o contributo da BRU-Iscte para este projeto?
ALM Dentro da BRU há duas vertentes. Mas a minha contribuição para este projeto é a dois níveis. Num estamos a trabalhar com o Hospital de Santa Maria, na área de cardiologia e também com o Hospital de Santo António, no Porto. Observamos todo o processo desde a geração inicial de informação, analisamos por onde passa, que dados existem, onde há dificuldades de partilha e onde essa informação pode parar no sistema e identificamos as ações necessárias para ultrapassar essas dificuldades. Fazemos o levantamento das necessidades do fluxo de informação, das dificuldades e iniciativas, para as eliminar – de forma a que o ISTAR consiga depois fazer com que a informação seja partilhada e esteja disponível. Esta tecnologia vai servir pessoas: a comunidade, todos nós, os profissionais de saúde e tem a missão de identificar possíveis stakeholders com outras necessidades. É este o segundo nível em que estou, com a minha equipa.
Face a novos projetos é natural que as pessoas tenham desconfiança, mas passando a conhecer percebem as potencialidades e daí nascem oportunidades. Esta complementaridade que existe no Iscte, não só ao nível das Escolas como das Unidades de Investigação, permite uma capacidade de oferta integrada que muitos outros centros não conseguem ter. Temos muitas competências distintas de investigação e este projeto é apenas um exemplo da cooperação possível. Graças às sinergias temos um potencial de investigação no Iscte que nos permite uma enorme vantagem.
O projeto Blockchain.PT é uma combinação perfeita do esforço entre a academia, a indústria, o tecido empresarial, hospitais e a sociedade civil, no desenvolvimento de uma tecnologia, de forma responsável, respondendo às necessidades das pessoas. Ao Iscte traz uma oportunidade única e muito rica de colaboração entre as ciências sociais e as ciências tecnológicas, e sinergias entre colegas de vários centros de investigação do Iscte – CIES, ISTAR, CIS e BRU.
Na vertente social auscultaremos a opinião pública sobre a partilha de dados de saúde, literacia digital e potencial uso desta aplicação que recorre ao uso da tecnologia blockchain. Não faz sentido desenvolver uma tecnologia se a população não a adotar. Tratando-se de dados de saúde e de tecnologia nova, isto traz considerações éticas e sociais. É, pois, crucial perceber as atitudes e preocupações das pessoas sobre o assunto, sobretudo numa sociedade com pouca literacia e envelhecida.
No CIES, coordeno um estudo de larga escala sobre a opinião dos portugueses; a colega Sibila Marques, psicóloga social no CIS, coordena um estudo com a população sénior em doentes do Hospital de Santa Maria. Estes resultados irão informar o desenvolvimento da tecnologia blockchain.
A ambição do projeto requer colaborações entre profissionais dos mais variados setores, trazendo uma nova dinâmica à academia na sua função de servir a sociedade e uma nova perspetiva às ciências sociais, na sua articulação com áreas tecnológicas, médicas e de engenharia.
Marta Entradas,
Investigadora CIES-Iscte