Investigadora CRIA | Iscte – Centro em Rede de Investigação em Antropologia
Doutoranda Iscte Ciências Sociais e Humanas
Como partiu para este projeto de investigação?
No projeto de mestrado, que entreguei no final de 2020, tinha estudado apenas cuidados informais não pagos, nomeadamente o processo de criação do Estatuto do Cuidador Informal, entre 2016 e 2019.
Apesar de um consenso político generalizado sobre a necessidade de apoiar os cuidadores informais, a escolha e justificação das medidas divergiu muito. Existe um confronto entre diferentes visões ideológicas sobre o papel dos cuidados informais na sociedade, com tensões em torno da sua definição e natureza. Essas tensões variam entre uma interpretação do cuidado como uma obrigação familiar, idealmente sustentada por laços de afeto e amor, e uma visão que o reconhece como uma atividade laboral com valor económico, que não é devidamente valorizado, revelando-se ambivalências entre essas perspetivas.
Há também a perspetiva de "desfamiliarização" dos cuidados, defendendo-se que é uma função que deve ser assumida pelo Estado. Entre visões contrastantes, há diferentes entendimentos sobre o papel do Estado, da família, da comunidade e do mercado na prestação de cuidados.
Do Estatuto do Cuidador Informal veio a aprovação de um subsídio de apoio a situações de pobreza muito delimitadas, pois a visão que prevalece é a de que o apoio à família é um complemento para uma função que se considera familiar, e das mulheres em particular.
Por outro lado, num contexto de transformação familiar e de retração do Estado Providência, a vontade política de contenção de recursos e a necessidade de sustentabilidade dos sistemas sociais e de saúde reproduzem a responsabilização pelo cuidado prestado na família.
No Parlamento, aquando do processo de criação do Estatuto do Cuidador Informal, observou-se que várias associações representantes de cuidadores e pessoas cuidadas apresentaram diferentes posições sobre a responsabilidade de cuidado que os cuidadores informais querem ou podem assumir. Na realidade não existe, para a maioria, opção de escolha, seja por falta da cobertura, de acessibilidade ou de qualidade dos cuidados formais e públicos existentes. Também quem é cuidado não tem estas opções, sendo-lhes retirada a autonomia e o acesso a direitos básicos de cidadania. A partir daqui, ficou claro que não era suficiente olhar só para os cuidados informais, porque eles estão ligados à forma como se vê e se distribui o cuidado pelas diferentes esferas da sociedade. Daí surgiu-me a necessidade de estudar também o cuidado pago, marcado pela invisibilidade, desvalorização e feminização.
A investigação centra-se na velhice?
É uma opção decorrente da relevância do tema do envelhecimento da população, mas também pela necessidade de delimitação da pesquisa. Mantenho, no entanto, um enfoque teórico ligado a problemáticas abordadas pelos Estudos da Deficiência, pois a discriminação que existe na velhice também é uma discriminação da dependência.
Mesmo nas Políticas Públicas, há uma divisão entre o que é o envelhecimento ativo e o que é a velhice com dependência, associada a apoios sociais. A pessoa idosa deixa de ser considerada como produtora de valor e vê-se que a divisão entre indivíduos autónomos e dependentes é também uma construção social, que invisibiliza a interdependência que é característica da sociedade.
Escolhi também cuidados no domicílio e não os cuidados em contexto institucional porque é o espaço onde ocorre a maior parte do cuidado historicamente invisibilizado. É um espaço entendido como lugar privado fora da esfera pública, em que o cuidado é naturalizado como função familiar e de atributo feminino, e em que as pessoas cuidadas são também invisibilizadas.
Existe uma tendência crescente nas políticas públicas, descrita em diversos relatórios internacionais, incluindo da Comissão Europeia, para a desinstitucionalização. Em Portugal, nunca houve, na realidade, uma tendência para a institucionalização, até porque nunca tivemos uma cobertura suficiente de cuidados formais. As políticas de envelhecimento têm crescido numa perspetiva de preferência pelos cuidados no domicílio, seguindo abordagens como o ageing in place, e as próprias políticas para os cuidadores informais vêm nesta linha.
Como vê essa orientação para uma menor institucionalização?
Havendo estudos que apontam os benefícios sociais e de saúde de a pessoa se manter no seu contexto conhecido, existe, no entanto, uma grande complexidade de fatores sociais, económicos e habitacionais que influenciam a existência ou falta de condições para um bom cuidado, que também tem elementos idiossincráticos.
Em termos de políticas, o contexto de contenção de recursos, com uma preocupação centrada na sustentabilidade financeira dos sistemas sociais e de saúde, exige uma forte atenção aos riscos de uma contínua privatização e (re)familiarização dos cuidados domiciliários. É preciso questionar de forma aprofundada como se dará este aumento da prestação de cuidados no domicílio e com que implicações. É preciso observar isto junto de diferentes atores e das próprias pessoas que realizam o cuidado.
Quando refiro configurações do cuidado no domicílio, quero dizer configurações pagas e não pagas, no setor com fins lucrativos e no setor social sem fins lucrativos.
O seu projeto “Práticas e representações do cuidar na velhice: continuidades e heterogeneidades entre diferentes configurações do cuidado no domicílio" requer uma análise em diversos ângulos?
Sim, porque o cuidado tem diversos ângulos. É uma atividade que se desenvolve na relação com os outros, associada a um conjunto de valores.
O trabalho tem três ângulos: uma análise político-jurídica (entender as políticas públicas relacionadas com o cuidar), uma análise institucional (falar e entrevistar empresas, IPSS, Misericórdias) e, por fim, uma parte importante, o plano relacional. Nesta última, em que pretendo fazer trabalho de campo mais intenso, vou analisar as práticas junto de entidades com serviço de apoio domiciliário e junto de algumas famílias, para acompanhar todo o processo do cuidado, no quotidiano, junto dos diferentes elementos envolvidos no cuidado.
A visão “familista" que se revela, por exemplo, na culpabilização das famílias por não cuidarem, ou pela opção de transferir o cuidado para o lar, decorre de certos valores morais atribuídos ao papel do cuidado familiar. Esta responsabilização familiar está inscrita na própria lei portuguesa, como na lei do apoio domiciliário, que define que o serviço de cuidado só é prestado quando há ausência da possibilidade de os familiares cuidarem.
Que metodologias está a usar no trabalho de investigação?
O projeto de investigação assenta em análise e levantamento político-jurídico, entrevistas a instituições, empresas e organizações representativas dos cuidadores e, sendo um trabalho de antropologia, é preciso ver o que o terreno nos diz. Tem esta dimensão do tempo no terreno e o objetivo é aprofundar o trabalho etnográfico através de observação participante e não-participante, com certas pessoas em certos casos.
O que espera encontrar na conclusão deste trabalho: recomendações para políticas públicas? Uma melhor compreensão da realidade?
Já existe muita literatura sobre cuidado e há estudos que se focam numa das dimensões, seja a da família, seja a partir das instituições ou num tipo de temática (género, migrações, entre outros).
O meu objetivo é estudar a construção do cuidado e seus significados através de diferentes escalas e relações. Há estruturas dominantes que categorizam o cuidado e marcam as desigualdades, mas o estudo antropológico traz esta dimensão de agência nas práticas, que está em ligação com a escala política, institucional e relacional. Proponho-me fazer uma análise integrada e multiescalar, que possa vir a contribuir para as políticas públicas nesta área.
Pode especificar?
A minha pergunta de pesquisa é: “Como é que diferentes configurações de cuidado produzem ou reproduzem os significados e valores que sustentam estas fronteiras do cuidado pago/não pago, formal/informal?" Neste sentido, a pesquisa questiona os regimes de valor e os significados morais que ligam ou separam as formas de prestação de cuidado pago ou não pago.
Existe uma invisibilidade do cuidado no domicílio, assunto que tem sido abordado por estudos feministas, que demonstram a divisão histórica entre público e privado, produção e reprodução, autonomia e dependência.
Historicamente, o cuidado não é considerado trabalho, e essa desconsideração é estrutural na nossa sociedade, reflete-se na invisibilidade do cuidado no domicílio. Esta desvalorização é também visível quando o trabalho é realizado de forma paga. A falta de regulamentação e valorização da profissão mostra e também reproduz ambivalências sobre o significado e âmbito do cuidado.
Deste projeto de doutoramento, que descobertas pode já partilhar?
Ainda não tenho resultados, mas têm surgido dimensões às quais vou dar mais atenção, como a questão das migrações. Se há algumas décadas os cuidados nas instituições eram maioritariamente realizados por pessoas portuguesas, atualmente a maior parte são pessoas imigrantes. Face à penosidade e precariedade do setor, esta situação coloca cada vez mais pessoas, nomeadamente imigrantes, em situações de más condições e até riscos laborais. Esta é uma lente que eu não tinha inicialmente e que tem vindo a tornar-se central. Estando na literatura, também a segmentação étnico-racial do cuidado se tem mostrado muito presente, com atribuição de características estereotipadas a certas nacionalidades e grupos.
Há também uma ideia, que surge de modo forte, relacionada com as ambivalências entre profissionalismo e afeto, e até contradições que enriquecem a investigação. Por exemplo, nas instituições, em alguns casos, veicula-se a ideia de que o profissionalismo significa um distanciamento emocional e afetivo, mas também há quem, pelo contrário, defenda que a ligação afetiva é o que permite o bom cuidado. Isto leva-nos a questionar o que é o “bom cuidado", dependendo de contextos diferentes e em diferentes escalas.
Qual foi a sua motivação para abordar as questões do cuidado nas suas pesquisas?
Tudo começou nos trabalhos de licenciatura, em que qualquer assunto estudado me levava a observar a dimensão de género. Depois, no mestrado, na disciplina de Direito e Políticas Públicas, tive de escolher uma política que aparecesse nos media para analisar a legislação, e estava a ser criado o Estatuto do Cuidador Informal.
Constatei que, no Parlamento, havia uma invisibilidade da perspetiva de género nos projetos em apreciação e nos debates realizados. Verifiquei também que as recomendações da Comissão Europeia, numa diretiva de 2019, e outros documentos europeus, avaliam uma dimensão de género que os deputados envolvidos na comissão de trabalho para a criação do Estatuto do Cuidador Informal em Portugal não tinham.
Estamos a falar de 2018/2019, altura em que todos os partidos apresentaram os seus projetos. A questão de género é central e não estar presente na discussão e na lei aprovada reproduz uma naturalização da desigualdade de género no cuidado. Haver apoios aos cuidadores informais não significa uma diminuição da desigualdade de género. Sendo o estatuto construído, juntamente com outras políticas públicas, mas ignorando o fator género, poderá até ter efeitos reversivos, na medida em que pode reproduzir a responsabilidade das mulheres como cuidadoras no domicílio. Ao transferir o cuidado para alguém profissional, a feminização e a desvalorização continuam. É preciso olhar para as desigualdades socioeconómicas que se agravam em condições de cuidado variadas.