Investigadora CEI-Iscte
O que é o projeto «MYNA – Alterações religiosas e ambientais nas zonas áridas do planeta: Um estudo comparativo» ?
Inicialmente, o projeto tinha um foco mais vasto do que a pastorícia, incluindo quatro áreas de estudo. A primeira focava os agricultores do norte de Moçambique e a segunda a população de uma reserva ameríndia do Dakota do Sul (EUA) nas suas interações com a religião.
A terceira área de estudo era o sul do Quénia, uma zona semiárida, com áreas protegidas muito conhecidas, como o Parque Nacional de Amboseli, que atrai muito turismo para o Quénia e, à sua volta, existem grandes fazendas (group ranches), cuja propriedade é exercida em comum por várias centenas de famílias de pastores masai. Eles são os donos originais daquelas savanas, incluindo a terra dentro das áreas protegidas.
A quarta área era a Mongólia, um país intrinsecamente de pastorícia, em que a terra – de acordo com a Constituição – é detida em comum pelos cidadãos. A maioria dos mongóis são criadores de animais domésticos, como cavalos, camelos, iaques, vacas, cabras e ovelhas, ou têm fortíssimas ligações à pastorícia mesmo quando vivem na capital.
O que aconteceu depois limitou os objetivos do projeto. A insegurança no norte de Moçambique impossibilitou-nos a deslocação para fazer o trabalho de campo e, pós-pandemia, a área de estudo americana também teve de ser eliminada.
Então o projeto foi reformulado?
Concentrámos esforços e recursos no Quénia e na Mongólia, aumentando o número de idas ao terreno e de áreas de estudo, para fazer um estudo comparativo aprofundado focado na pastorícia.
A pastorícia é um modo de vida, é um sistema de subsistência em que as famílias se relacionam economicamente, mas também afetivamente e esteticamente com animais domésticos em explorações de pequena escala. Há múltiplas definições de pastorícia, mas na forma mais básica, caracteriza-se pela dependência económica de animais domésticos, com uma certa mobilidade das pessoas/famílias e seus animais.
Não é uma atividade conotada com um tempo passado?
É verdade que em muitos países os pastores têm sido vistos historicamente como nómadas resistentes à modernidade, sendo discriminados, desvalorizados, mas na Mongólia a atitude é inversa, e os melhores pastores até são premiados pelo Estado. Fora da capital são todos pastores, mesmo quando vivem em pequenas cidades. A pastorícia é tão importante do ponto de vista económico, cultural e ambiental que as Nações Unidas declararam 2026 como o Ano Internacional da Pastorícia. É uma iniciativa que foi proposta pelo governo da Mongólia, um dos países mais dependentes dessa atividade. A pastorícia torna zonas áridas, onde não é possível cultivar, em zonas produtivas. Contribui para a segurança alimentar e também para conservar a biodiversidade e sequestrar carbono, entre outros benefícios.
Apesar de serem pessoas que dependem dos animais, os pastores têm cuidado com o bem-estar animal – há uma dimensão afetiva que vai para lá da importância económica dos animais.
Já conhecia o Quénia. E a Mongólia?
Fiz o doutoramento no Quénia, estava afiliada ao International Livestock Research Institute, em Nairobi. Passei lá dois anos e meio a fazer trabalho de campo, a acampar no sul do Quénia, para fazer um estudo comparativo nessa zona de savana e, regularmente, voltava para Nairobi. E foi nesse trabalho de campo entre zonas com propriedade comum e privada da terra, observando a relação dos pastores com os animais selvagens que partilham o mesmo território que o seu gado que, de forma inesperada, começou a aparecer o fator religião.
Nessa altura, alguns membros das comunidades locais já se tinham convertido à religião cristã, pertencendo a igrejas evangélicas pentecostais e isso influenciava o seu relacionamento com a “terra” e os animais selvagens.
Foi uma surpresa deparar-se com um aumento da importância dos evangélicos?
Como descrevo no meu doutoramento, os masai têm uma visão integrada das relações entre humanos, não-humanos e o que eles chamam de “terra” (enkop), em que tudo faz parte de um mesmo todo, e a sociedade humana não existe à margem da “natureza”. Para os masai, contrariamente aos mongóis, não existem espíritos, mas no céu há Enkai, uma divindade com características femininas – é uma divindade criadora, que dá a chuva, a fertilidade, etc. O cristianismo veio substituir Enkai por uma designação masculina, Olaitoriani, ou “o Senhor”.
Curiosamente alguns masai dizem que a Bíblia reflete exatamente a vida dos masai: há a pastorícia, uma só divindade, a circuncisão, falam de leite e mel, e apontam correspondências adicionais: os masai também não misturavam leite e carne na mesma refeição e não comem porco. Por isso, dizem, que tornarem-se cristãos não foi difícil e dizem, a rir, que não sabem mesmo se foram eles que “copiaram a Bíblia ou a Bíblia é um retrato da vida masai”.
E sobre a influência do cristianismo junto dos masai?
O cristianismo chegou há cem anos com missionários católicos, ao norte da Tanzânia e sul do Quénia. Esses missionários seguiram a abordagem da inculturação, um processo de aproximação cultural entre a igreja e as culturas locais.
Há uma sobreposição interessante entre os masai e os mongóis que é a bênção ou um agradecimento que ambos fazem de manhã, com leite. Na Mongólia, leite (ou vodka) é atirado às quatro direções de manhã e ao longo do dia, em sinal de agradecimento às entidades espirituais que são donas da terra.
No Quénia, as mulheres pegavam numa cabaça com leite e atiravam-no também às quatro direções dentro do curral dos animais, um ritual dirigido a Enkai. As mulheres tinham um papel espiritual de orar para pedir chuva, prosperidade, etc. Mas o seu papel social e político foi abafado pela colonização britânica e pelo modelo patriarcal. Claro que, quando chegaram, os missionários queriam lidar com homens, mas quem encheu as igrejas foram as mulheres, como explica a antropóloga Dorothy Hodgson (in "Church of Women").
A relação das mulheres masai com a religião mantém-se?
A dinâmica continua. Verificámos que quem se converte em primeiro são as mulheres que, depois, convencem os maridos e os filhos. Continua a ver-se nas igrejas mais mulheres do que homens. Por via da religião foi introduzida a agricultura irrigada, que é vista como uma forma mais moderna de desenvolvimento, protegendo os masai da seca, etc.
No entanto, observámos que o papel das instituições religiosas nestes cenários tem sido ignorado, inclusive pela literatura científica e em equipas multidisciplinares, que se concentram no papel das ONG, Estados e programas de desenvolvimento. Estas igrejas providenciam formação de vários tipos: como montar um negócio, plantação de árvores exóticas, como desenvolver pastorícia mais moderna, sedentária, com gado melhorado, traduzindo uma ideia de progresso que não se coaduna com a mobilidade dos pastores. Muitas dessas igrejas representam também “ilhas verdes” no meio de uma paisagem árida, pela plantação de árvores que fazem.
A Igreja Católica é vista localmente como apoiante da cultura masai, enquanto as igrejas pentecostais representam uma rutura, um corte com o passado das tradições e contrariam hábitos como a poligamia ou tabus alimentares.
Há uma relação entre estes povos de pastores e as novas igrejas?
No sul do Quénia, o papel das igrejas pentecostais é valorizado, mas as pessoas também se queixam das contribuições financeiras obrigatórias que ora apoiam o líder da igreja, ora apoiam pessoas carenciadas na comunidade, ou até outras regiões do Quénia afetadas pelas secas. Os próprios pastores da igreja falam das alterações climáticas, alguns apoiam a conservação da fauna selvagem e do turismo, como forma de obter rendimentos.
As maiores igrejas têm bancos, fornecem empréstimos e outros produtos financeiros que as pessoas usam através do telemóvel. O papel do pentecostalismo no desenvolvimento está bem estudado nas zonas urbanas, até por um colega do CEI-Iscte, Yonatan Gez. A igreja Kenya Assemblies of God é a mais forte na zona onde trabalhámos, mas há muitas outras igrejas pentecostais de origem local.
Qual o papel das novas igrejas nestes territórios e povos?
A minha hipótese de partida era que as igrejas, dentro daquele modelo modernizador, iriam estimular a privatização da terra. É interessante ver que muitas apoiam-se na Bíblia para dizer às pessoas: não vendam a terra. Os pastores evangélicos perceberam que vender a terra leva à pobreza. Há, portanto, aqui um comportamento alinhado com as políticas de conservação da biodiversidade.
Houve um reconhecimento tardio da importância da pastorícia móvel: onde o gado se movimenta é melhor para o movimento dos animais selvagens. Durante décadas, os pastores foram acusados de degradar o ambiente, mas essa era uma visão extremamente limitada das dinâmicas ecológicas das zonas áridas.
Onde é que as questões ambientais se cruzam com a pastorícia e a religião?
Os pastores têm um conhecimento profundo dos fenómenos da Natureza, seja pela observação das flores, estrelas, do comportamento das abelhas ou das vacas. Os pastores masai até conseguiam prever quando chegaria a chuva, mas atualmente este conhecimento etno-meteorológico está dessincronizado com os ciclos naturais. Por isso, as famílias têm sido obrigadas a diversificar o seu portefólio económico e as igrejas têm sido promotoras dessa diversificação.
Também se alterou a questão da propriedade da terra, com a sua progressiva privatização. Isto é uma faca de dois gumes: os próprios pastores querem ter os títulos de propriedade, porque têm medo de que estranhos se apropriem das suas terras, o que tem vindo a acontecer. Esta perspetiva seria impensável nas gerações mais velhas, para quem a terra pertencia a Deus (Enkai) – as vacas são dos pastores, mas não a terra.
Está em perspetiva todo o território masai ser privatizado em breve, vão surgindo vedações e a movimentação dos animais já está mais limitada, impedindo-se também a circulação dos animais selvagens, com consequências negativas para a sustentabilidade dos ecossistemas.
Que metodologias estão a aplicar no projeto?
Fazemos trabalho no terreno, com pessoas locais, outrora nossos tradutores, agora co-investigadores devido ao papel central que têm, entrevistas com indivíduos e líderes religiosos e observação participante. Depois de tanto tempo a trabalhar nestas comunidades, a Ângela e eu sentimos que fazemos parte das famílias que nos são mais próximas. É um privilégio e tem sido muito gratificante poder voltar ao Quénia através deste trabalho.
No caso da Mongólia, é praticamente o oposto. É um país gigantesco (17 vezes o tamanho de Portugal), cuja imensidão da paisagem e a mobilidade das famílias que vivem da pastorícia torna difícil criar laços e mesmo voltar a ver uma família com a qual antes estivemos. Das duas vezes que fizemos trabalho de campo na Mongólia foram muitos quilómetros de carro, colocar a tenda num sítio e ir à procura de pessoas para entrevistar.
Os meus projetos anteriores tiveram uma vertente social forte, com base em métodos participativos e resultados coproduzidos com membros das comunidades locais. Este projeto tem mais de exploratório, para gerar conhecimento.
O que podemos esperar deste projeto?
Estamos a preparar artigos para publicação em jornais científicos, realizámos um simpósio do projeto em Lisboa, em novembro, com um grupo de especialistas, em que participam três pastores quenianos, nossos co-investigadores, com papel destacado também nas suas igrejas e investigadores mongóis nossos parceiros. Participaram ainda pessoas que estão a trabalhar nestas temáticas na Europa, Índia, Estados Unidos, África e Mongólia. Temos já um site com muita informação e vídeos, vamos ter também seis ou sete podcasts. Em resumo, o projeto acabou por afunilar por razões logísticas para a pastorícia, mas isso também nos permitiu fazer comparações mais estruturadas entre os dois contextos.
Em relação às zonas de pastorícia do Quénia estamos a preencher um vazio de conhecimento pois as igrejas são como que um ator invisível no seio destas sociedades. As zonas áridas com pastorícia móvel (no Quénia) contribuem com trocas comerciais entre a África de Leste e o Médio Oriente e isso tem uma importância fundamental para a segurança alimentar regional.
Já na Mongólia, percebi que tem havido trabalho sobre respostas religiosas às mudanças introduzidas pelas alterações climáticas ou pela mineração. Algumas dessas pesquisas foram apresentadas durante o simpósio em Lisboa.
A influência da religião
Tudo começou com a constatação de que a religião aparecia associada à forma como os pastores olham para os animais selvagens. Creio que demorei vinte anos a “mastigar” isto, lendo, procurando potenciais colaboradores para uma pesquisa futura, mas sem os encontrar. Até parecia que o assunto da religião e do cristianismo, era um tema desconfortável.
Contributos da antropologia
A religião é um tema importante na antropologia, mas eu não encontrava esse interesse entre os meus colegas de outras disciplinas a trabalhar sobre alterações ambientais. Nos Estados Unidos, trabalhei em grupos multidisciplinares, com economistas, zoólogos, ecólogos, modeladores e antropólogos ambientais, onde parecia haver relutância em trazer a religião para as análises.
Há cinco anos, durante um seminário que organizei aqui no Iscte, uma das apresentações falava dos agricultores cristãos do norte de Moçambique e do seu papel na alteração do uso da terra. A conversa com essa colega (Angela Kronenburg García, Université Catholique de Louvain, hoje também membro da equipa do MYNA) conduziu ao desenho do projeto.
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A observação
O que nós observamos não é tanto o efeito da religião sobre as respostas às crises ambientais, também não é sobre as crises ambientais provocarem alterações religiosas, são interações muito mais complexas, em que existem respostas espirituais às alterações climáticas (na Mongólia) e intervenção de instituições religiosas, como igrejas pentecostais, em processos de privatização da terra (Quénia).
Observámos na Mongólia uma proliferação de estruturas religiosas, em forma de pilhas de pedra, que são marcos na paisagem. Essas estruturas religiosas chamam-se ovoo, sempre existiram, tal como no Tibete, e refletem tanto adesão ao xamanismo como ao budismo mongol.
Durante os 70 anos de regime comunista, a religião foi reprimida. Mas desde a década de 1990, com a democracia, observa-se um renascimento espiritual e essas estruturas foram-se multiplicando na paisagem, são criadas por pastores, por viajantes. Elas vão crescendo à medida que são circundadas por pessoas que lhes atiram três pedras e pedem um desejo por cada pedra. Estas estruturas localizam-se principalmente no topo de montanhas e os homens e os monges participam em rituais com oferendas para apaziguar as entidades não-humanas, que são as proprietárias dos rios, das montanhas e do subsolo. Os pastores pedem chuva, saúde dos animais, prosperidade, saúde das pessoas.
Na Mongólia, a mineração é uma grande fonte de receita, atividade que ofende esses donos não-humanos da terra, porque é tabu esburacar o solo. Há mineração artesanal em pequena escala, mas também a que é desenvolvida por grandes multinacionais. Essas atividades afetam a qualidade do ar, poluem os rios, afetam a qualidade das pastagens e a saúde dos animais.
Tem havido alguma contestação ambientalista que resgata uma consciência religiosa ancestral. É preciso dizer que a vida de pastor, na Mongólia, é duríssima. No passado inverno chegaram a estar menos 50 graus e os pastores têm apenas uma tenda circular, de lã cardada, para se abrigarem.
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