Professora Iscte Sociologia e Políticas Públicas
Investigadora CIES-Iscte
Este projeto apresenta um modelo central para a investigação: integridade, integração e instituições para a confiança/trust (3i4t). Em que consiste?
Trata-se de um modelo de abordagem teórica que vê a integridade científica (conduta e ética dos investigadores), o envolvimento das pessoas, a participação da sociedade civil na investigação e as instituições de produção de conhecimento como elementos importantes da confiança pública na ciência.
Qualquer instituição, e o Iscte não é exceção, tem a responsabilidade de fazer investigação seguindo boas práticas, mas também de a fazer em prol da sociedade, envolvendo-a e comunicando bem os resultados da investigação. Por isso, a instituição é valorizada como centro do modelo.
Há duas áreas principais que se cruzam neste projeto: a comunicação de ciência, no que respeita à integridade dos cientistas e instituições, e a confiança pública na ciência. Estamos a tentar perceber como o conhecimento científico comunicado influencia ou impacta a confiança que as pessoas depositam na ciência, sobretudo se estiverem em causa aspetos que tocam a integridade científica. Se um cientista é acusado de misconduct ou um jornalista escreve sobre um caso de conduta duvidosa (como a publicação de resultados falsos ou fabricados), avaliamos que consequências podem ter esses casos na confiança das pessoas na ciência.
A questão da integridade e confiança na ciência, produzida e divulgada, é hoje uma grande preocupação da União Europeia?
Sem dúvida. Parece haver cada vez mais casos duvidosos na conduta de boa ciência e espera-se que as instituições tenham um papel mais ativo no apoio aos seus investigadores.
Nesta investigação são analisados exemplos concretos e o seu impacto na opinião pública?
Há vários estudos de caso. Temos quatro grandes estudos a decorrer. Um envolvendo membros do público, que convidamos em consultas públicas. Organizamos grupos de discussão com moderadores a conduzir a conversa, pedimos que analisem notícias com casos veiculados em diferentes canais de comunicação, para perceber em que canais e fontes as pessoas confiam e não confiam, que fatores influenciam essa confiança ou desconfiança. Por exemplo, tentámos perceber se uma notícia de ciência escrita pelo jornalista A ou cientista B é recebida de forma diferente do que se for do gabinete de comunicação de uma instituição científica.
Outro estudo foi realizado com profissionais de comunicação que trabalham nas instituições científicas, os comunicadores de ciência e os gestores de ciência e da ética, com as quais organizámos grupos focais. Tentámos perceber como estes profissionais, com conhecimento do ambiente institucional, viam casos de falta de integridade científica e como poderiam potencialmente lidar com essas situações. Estas questões recebem ainda pouca atenção no seio das instituições em Portugal, mas começam a surgir algumas discussões e preocupações à volta do tema.
Em várias universidades na Europa existe já a figura do Science Integrity Officer, cuja principal função é lidar com as questões de integridade científica na instituição, apoio aos investigadores e formação, isto é, zelar pela boa conduta e boas práticas na investigação.
Tivemos um terceiro estudo em que entrevistámos cientistas e profissionais de comunicação, para perceber sobre o que é que comunicam, o que pensam sobre as questões de integridade e como lidam com elas. E, nos casos em que há má conduta, o que pensam da comunicação que é feita, do envolvimento de pessoas externas à investigação. Este levantamento está feito e publicado no site do projeto Poiesis, onde se encontram também os vários estudos nacionais e análises comparativas já realizadas.
O quarto estudo é quantitativo e experimental, e pretende escutar a opinião pública sobre a confiança nas instituições científicas, havendo um pequeno questionário que pergunta apenas: Se uma instituição tiver as seguintes características (…), confia nela?
As caraterísticas relacionam-se com a participação pública na investigação, a comunicação aberta e transparente de resultados, financiamentos ou conflitos de interesse, entre outras. Neste estudo a recolha de dados também é feita nos sete países europeus do projeto. Pretende apurar características das instituições em que as pessoas confiam, ou seja, o que veem como uma instituição confiável.
Em suma, com estes estudos, que seguem metodologias quantitativas e qualitativas robustas, com materiais desenvolvidos pelas várias equipas do projeto, casos de estudo debatidos, etc., vamos retirar ilações que esperamos possam ser úteis para as instituições, cientistas, profissionais de comunicação, mas acima de tudo, para repensar a comunicação de ciência de forma eficaz e transmissora de confiança aos vários grupos que dela beneficiam.
Há ideias que possam já ser extraídas dos estudos?
A partir dos eventos que na minha equipa temos organizado no Iscte e das consultas realizadas nos outros países, posso dizer que o cidadão comum não pensa tanto nas questões de integridade ou falta dela. A relação de distanciamento ou aproximação da ciência é mais complexa. Não é tanto uma questão de confiar ou desconfiar da ciência. Situações de má conduta científica acabam por ser mais associadas ao indivíduo, ao cientista, do que à instituição de ciência. Portanto, a confiança na ciência não nos parece que seja abalada. Mas o quarto estudo poderá trazer mais ideias sobre o tema. Foi criado um site para a divulgação dos resultados deste projeto. No site estão os relatórios de todos os estudos realizados. Em meados de novembro organizámos uma mesa-redonda no Iscte, com especialistas das áreas da comunicação e ética, na qual se discutiram recomendações – com base nos resultados dos estudos realizados e com o que apurámos deles. Haverá, pois, recomendações finais ao nível da governação, em forma de policy briefings que iremos levar a um evento em Bruxelas planeado para 2025 e que partilharemos com a Comissão Europeia.
Um importante resultado final deste projeto é a sua contribuição para a compreensão da integridade científica nas instituições – ou falta dela – e como lidar com estas situações, com comunicação de risco e incerteza, para melhor informar a sociedade. Igualmente importante são as recomendações a serem elaboradas, para podermos ajudar os nossos investigadores a lidar com questões de integridade científica, alertando-os para práticas questionáveis, muitas vezes já aceites na comunidade.
A importância deste tema é grande e os cientistas sociais já estão a prestar-lhe atenção. Dou-lhe o exemplo das coautorias, que se inserem nas más práticas – estas não englobam apenas situações de fabricação de resultados, falsificação ou plágio, podem ser infrações menores ou práticas questionáveis.
Se alguém não contribui significativamente para um artigo científico, não deverá ser coautor. Muitas vezes os artigos são assinados por pessoas que não contribuíram – os guest authors ou os gift authors. É comum, no entanto, a questão envolve também a conceptualização, recolha de dados, análise, interpretação ou escrita de resultados. Há uma lista de práticas questionáveis, em crescimento contínuo, que abarcam não apenas autoria, mas a própria forma como os resultados são descritos e apresentados pelo investigador – as citações, por vezes, ‘por conveniência’, ou a forma como se supervisionam os investigadores juniores.
Como se pode melhorar a situação?
Recentemente realizámos um estudo em que participaram cerca de 1500 investigadores de universidades portuguesas e perguntámos-lhes: “Quão frequentemente realizam determinadas práticas (enunciadas numa lista)” e “Quão grave consideram determinada prática?”. Os resultados revelam que certas práticas mais comuns nem são consideradas relevantes, nem são vistas como más práticas pelos investigadores – isto é transversal a áreas científicas distintas.
Começa a ser comum as universidades adotarem guidelines, códigos de conduta de ética e integridade científica. O projeto Poiesis quer contribuir e ajudar a definir as boas práticas que sirvam as instituições.
Neste sentido, haverá também resultados importantes para as instituições. Importa saber por que tem crescido imenso este tipo de más práticas. Há inúmeros exemplos recentes. Acredito que, em parte, o fenómeno tem a ver com a grande pressão que há sobre os investigadores para publicar, a cultura do publish or perish e métricas quantitativas, o aumento das revistas predatórias e a fraca revisão de pares. Segundo o nosso estudo (e outros) essa parece ser uma prática a tornar-se comum em todas as áreas da ciência.
A preocupação com a fiabilidade da investigação científica ganhou maior impacto a seguir à Covid-19?
As questões de integridade científica tiveram grande destaque a seguir à Covid-19. Houve muitos especialistas a falarem na praça pública de algo incerto, houve muita falta de informação, manipulação, desinformação, artigos no domínio público sem revisão de pares, colocados nos repositórios online. Tudo isto causa danos à ciência e à sociedade.
Após três anos de pesquisa, o projeto Poiesis vai terminar em 2025. Foi financiado pelo Programa Europa Horizonte e envolve sete instituições científicas europeias, além de Portugal: da Dinamarca, da Grécia, da Alemanha, duas instituições de investigação em França e em Espanha e ainda um parceiro associado, a London School of Economics – LSE.
Neste projeto, liderado pela Aarhus University, na Dinamarca, o Iscte participa através da colaboração da investigadora do CIES-Iscte, Marta Entradas, coordenadora nacional e líder de um dos working packages.
«Estive muitos anos em Inglaterra, na University College London e na LSE, com uma passagem pela Cornell University nos EUA. Com uma carreira internacional, mantenho bons contactos e diálogo com colegas que nos visitam regularmente no âmbito de projetos e com os quais partilho interesses de pesquisa.»